Folha de S. Paulo
Radicalismo identitário é tão obscurantista
quanto o bolsonarismo
Para o bolsonarismo, a universidade representou
um problema.
Aos conservadores de direita incomoda a
existência de um setor influente da sociedade no qual o predomínio dos
progressistas não é desafiado há décadas. Além disso, não lhes parece certo que
toda a sociedade pague por um sistema que, no fundo, seria um aparelho
ideológico para reproduzir progressistas e esquerdistas. Daí a insistência
retórica em representações da universidade como centro de "doutrinação
ideológica", de formação em "ideologia de gênero" e, enfim, de
balbúrdia e outras imoralidades.
Nos quatro anos de governo Bolsonaro, as universidades federais comeram o pão que o diabo amassou. A ideia era colocar um cabresto na autonomia universitária, reprimir e punir tanto a resistência acadêmica ao bolsonarismo quanto as liberalidades e liberdades universitárias, garrotear as instituições com severos cortes de verbas, além, enfim, de interferir acintosamente para garantir reitores bolsonaristas.
Ao mesmo tempo, o bolsonarismo atuou de forma
consistente contra a educação em
geral. O movimento Escola
sem Partido foi uma parte importante da carga contra as escolas. De um
lado, atuou para entulhar as casas legislativas de projetos de lei voltados
para impedir que os professores inculcassem atitudes e ideias não conservadoras
nos estudantes, enquanto com a outra mão defendia o presumido direito dos pais
dos alunos a que seus filhos recebessem uma educação religiosa e moral
conservadora.
Além disso, integrou-se a outros movimentos
que então orbitavam o bolsonarismo, como o MBL, para espalhar a crença de que
as escolas eram um espaço de "contaminação político-ideológica" e que
"um exército organizado de militantes travestidos de professores"
tirava vantagem da "liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas
de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo".
Disso decorriam as iniciativas para coletar
depoimentos de estudantes oprimidos ideologicamente por docentes, para
documentar a doutrinação progressista dos livros didáticos e para dar apoio
jurídico a quem quisesse acionar a Justiça contra professores. No centro da
estratégia, as denúncias de casos de assédio escolar contra pessoas de convicção
conservadora e de proselitismo liberal descaradamente praticado contra os
inocentes.
Mas, enquanto o bolsonarismo distraía a
opinião pública, uma outra facção política, igualmente obscurantista e
autoritária, ganhava força e tração para golpear a instituição em pontos muito
semelhantes aos que incomodavam o bolsonarismo: o radicalismo identitário.
Como os bolsonaristas, essa facção acredita
que a universidade é um aparelho ideológico usado para a opressão do seu grupo
e para reprodução de pessoas e mentalidades hostis à sua posição. Como os
bolsonaristas, reclama da instituição universitária como centro de doutrinação,
de reprodução ideológica e de práticas de inúmeras imoralidades.
Quer um exemplo? Vá ao perfil da Rede
Trans Uerj no Instagram. Está lá a mesma matriz acusatória:
a universidade é um espaço de opressão e "professores universitários podem
ser pessoas extremamente transfóbicas". O segredo das aulas e o poder
institucional docentes lhes dão os meios para cometer barbaridades contra
minorias. Como o Escola sem Partido, a Rede Trans lista as formas sutis de
transfobia docente a que a minoria precisa ficar atenta: "quase nunca te
deixar falar; cometer pequenos ‘errinhos’ relativos a nome e pronome com uma
frequência muito grande; ativamente impedir que debates trans ocorram em aula;
te dar notas estranhamente baixas ou faltas erradas".
E, como faziam os movimentos bolsonaristas,
ensinam as táticas de combates contra tão insidioso inimigo: reagir sempre, mas
nunca sozinho, pois isso permitiria que "os professores te marquem".
Afinal, "eles podem e vão agir contra você de maneira coercitiva".
Além disso, é preciso constrangê-los e denunciar o crime. Por fim, um último
conselho: não confie nas instituições.
Não é à toa que membros de minorias que
entraram na universidade, alguns com a indispensável ajuda de ações
afirmativas, acreditem piamente que a instituição que os acolhe e os seus
professores lhes são inimigos jurados, a serem combatidos cotidianamente. O
mesmo se estende à escola em geral, pois mesmo onde o bolsonarismo não alcança
o docente, o identitarismo radical já fez morada e trincheira.
Professores viraram alvos fáceis das guerras
morais que convulsionam a sociedade, como patinhos imóveis nos estandes de tiro
dos parques de diversões. E os aliados de ontem são os primeiros a apertar o
gatilho.
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
2 comentários:
Muito, muito, muito bom e claro, trazendo as obviedades e a manipulação para serem observadas o centro da sala. Obrigado.
O uso de pronome neutro é o ó!
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