quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Vera Magalhães - Quem cala é cúmplice

O Globo

Elogios ao 'silêncio' de Aras e negativas cínicas de Heleno diante da CPI são tentativas intoleráveis de reescrever a História

É cada vez mais comum, e mais imediato, que homens públicos que faltem com a responsabilidade do cargo que exercem tentem reescrever a História para maquiar suas faltas. Nesse mister nada digno, costumam contar com a condescendência dos pares e dos que com eles se relacionam. Os últimos dias foram pródigos em arreganhos dessa natureza, carregados de desfaçatez e rapapés.

A omissão de Augusto Aras diante dos riscos que Jair Bolsonaro, que o nomeou duas vezes para a Procuradoria-Geral da República, ofereceu à democracia e à saúde pública na pandemia foi colocada na conta de um certo silêncio salvador por parte de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

E o general Augusto Heleno, um dos maiores entusiastas do bolsonarismo e das ações para desacreditar as instituições, com insinuações golpistas em relação ao processo eleitoral durante o tempo em que ocupou o estratégico Gabinete de Segurança Institucional, compareceu perante a CPI dos Atos Golpistas para bancar o senhorzinho inocente que nada sabia e minimizar as graves investidas de seu ex-chefe contra o Estado Democrático de Direito e as instituições. Seu depoimento foi um escárnio com os senadores e deputados que integram a comissão e a sociedade.

O desagravo a Aras contou com o beneplácito dos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, em mais uma das guinadas de posição que têm se tornado cada vez mais comuns entre os integrantes da mais alta Corte do país e que, certamente, contribuem para que não haja clareza quanto ao que pretende o STF.

Não foram poucas as vezes em que variados ministros, as turmas ou mesmo o plenário do Supremo tiveram de admoestar Aras e Lindôra Araújo pela omissão do Ministério Público Federal (MPF), sob seu comando, nas questões atinentes aos ataques de Bolsonaro à democracia e às ações e omissões do Executivo no enfrentamento da pandemia. Os próprios procuradores muitas vezes tiveram de tomar a frente em questões que o chefe da PGR fingia não enxergar.

O decano da Corte foi duro ao escrutinar os dois mandatos de Aras ao participar do “Roda Viva” e só agora, numa despedida que para o país demorou muito, resolveu ver o papel do escolhido de Bolsonaro numa certa “reinstitucionalização” do MPF.

Não é porque a Lava-Jato e a gestão de Rodrigo Janot cometeram excessos que precisam ser apurados, e muitos dos quais já geraram nulidades processuais, que Aras precisa ser enaltecido e redimido. Esses reducionismos é que vão deseducando o Brasil para a democracia, para exigir dos homens públicos coerência e coragem no cumprimento de seus deveres constitucionais, a despeito do governante de turno.

O caso do general Heleno é mais grave e bastante emblemático do grau de corrosão do tecido militar pelo bolsonarismo. Ao tentar negar a participação de Mauro Cid em reuniões com representantes das Forças Armadas, no que foi pego na mentira no ato, o general procurou dissimular a gravidade do que Bolsonaro insinuava ou pedia abertamente nesses encontros, agora relatados pelo ex-ajudante de ordens.

Tanto no caso de Aras quanto no de Heleno, não há propósito nobre na omissão e no silêncio diante de arreganhos golpistas de um presidente ou de descaso com a vida da população durante uma pandemia. Nem a atitude dos comandantes das Forças, de não aceitar seguir com nenhum plano de ruptura institucional, mas não denunciar abertamente, é tolerável.

Todos eles teriam o dever constitucional de agir. Se não o fizeram, precisam ser responsabilizados, e sua inação e sua cumplicidade com crimes e tramas criminosas ser registrados pela História, sem homenagens descabidas, proteção corporativa ou depoimentos perante o Parlamento eivados de cinismo e desdém.

 

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