sábado, 21 de outubro de 2023

Oscar Vilhena Vieira* - E quando o Supremo erra?

Folha de S. Paulo

Ministros vêm, contrariamente aos seus próprios precedentes, anulando decisões dos tribunais do trabalho

Thurgood Marshall foi o mais importante advogado norte-americano do século 20. Também foi o primeiro juiz negro nomeado para a Corte Suprema, em 1967, por Lyndon Johnson. Em Brown v. Board of Education, que determinou o fim da segregação racial nas escolas norte-americanas, em 1954, Marshall foi responsável por provocar a reversão de uma das mais ignóbeis decisões da história da Suprema Corte.

Em 1979, Marshall estava proferindo uma palestra para os juízes de uma corte de apelação quando perguntou: "como esse tribunal se saiu na Suprema Corte este ano?". Sob o olhar lívido dos magistrados, Marshall explicou que dos nove casos analisados, seis haviam sido reformados pela Suprema Corte.

Não parecia ser um bom balanço. Mas, para alívio da audiência, Marshall emendou: "nos dois casos mais importantes... a performance de vocês foi imensamente melhor do que a dos meus colegas da Suprema Corte". Mais do que isso, exortou os juízes de instâncias inferiores a não se abaterem face a "más decisões de instâncias superiores", devendo se "levantar rápido pela plena proteção dos direitos individuais".

O incentivo para que juízes e tribunais inferiores resistissem a decisões erradas de tribunais superiores, mesmo que proferidas pela Suprema Corte, causou grande perplexidade, mas não pode deixar de ser ouvido, pois proferido por aquele que havia corrigido um dos maiores erros jurídicos e morais da história americana.

Lembrei dessa velha história ao ser convidado a opinar, como advogado, em um dos milhares de casos que vêm tensionando as relações entre a Justiça do Trabalho e o Supremo Tribunal Federal nos últimos meses.

Como sabemos, a reforma trabalhista autorizou a chamada terceirização, inclusive das atividades-fim de um empregador. O Supremo, ao tratar do tema, decidiu corretamente que essas contratações de pessoas jurídicas não podem ser utilizadas, no entanto, para encobrir de forma fraudulenta efetivas relações de trabalho, onde há pessoalidade, subordinação, onerosidade e não eventualidade. E que caberia à Justiça do Trabalho aferir, no caso concreto, sobre a existência ou não de fraude.

Diversos ministros do Supremo, no entanto, vêm, por meio de reclamação constitucional, contrariamente aos seus próprios precedentes, anulando as decisões dos tribunais do trabalho que, detectando a existência de fraude, reconhecem vínculos de emprego.

Essas decisões dos ministros do Supremo têm causado perplexidade, não apenas porque eliminam a competência constitucional conferida à Justiça do Trabalho para determinar a existência ou não das relações de emprego, mas também porque têm assegurado ao empregador, mesmo que ao arrepio da lei, a escolha do regime que quer contratar.

Os conflitos entre o Supremo e as instâncias inferiores não são uma novidade no Brasil. Lembro de quando os juízes das primeiras instâncias se insurgiram contra a omissão do Supremo em não declarar inconstitucional o congelamento dos ativos financeiros dos brasileiros, levado a cabo pelo presidente Collor, assim como contra a decisão do Supremo que declarou constitucional a proibição da concessão de liminares contra o desastroso plano Collor. Naquela ocasião, o ministro Sepúlveda Pertence sustentou que a questão deveria ser resolvida no âmbito do controle difuso. Afinal, nenhum juiz competente poderia deixar de apreciar uma lesão ou ameaça de direito que lhe fosse apresentada. É o que parece dizer a Constituição.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)

 

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Quem sabe,sabe.