quinta-feira, 6 de março de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Trump faz renascer riscos que todos julgavam superados

O Globo

No mundo da fantasia de seu discurso, ele assume papel de salvador. Na realidade, é a maior fonte de tensão

No primeiro pronunciamento ao Congresso desde a posse em janeiro, Donald Trump demonstrou estar disposto a cumprir suas piores ameaças de campanha. Em discurso de cem minutos, pintou um mundo de fantasia em que se apresenta como salvador de um país em apuros. Na realidade, seu governo se tornou a maior fonte de incerteza e tensão do planeta. Trump fez renascer riscos que todos acreditavam superados. Não bastasse o alinhamento à Rússia (em detrimento da Ucrânia) que já lançou os países europeus numa nova era de rearmamento, não bastasse o caos imposto ao setor público com cortes inconsequentes ou ilegais, ele deflagrou uma guerra comercial cujos desdobramentos serão nocivos para a economia global e para seu próprio país.

Em fevereiro, anunciou tarifas sobre aço e alumínio. Nesta semana, os produtos importados de Canadá e México começaram a pagar 25% de alíquota na alfândega. A taxa sobre produtos chineses subiu 20 pontos percentuais. Em resposta, China e Canadá retaliaram. Depois do naufrágio do mercado acionário, autoridades americanas afirmaram ser viável um acordo para reduzir as tarifas (as montadoras obtiveram um adiamento). Trump, contudo, se mostra irredutível — e citou o Brasil entre os alvos. Na primeira semana de abril serão impostas barreiras a produtos agrícolas. É dado como certo que o etanol brasileiro estará na lista.

Com seu mercantilismo primitivo, Trump pretende zerar o déficit comercial, usar a receita das tarifas para financiar o governo e retornar a um passado idílico caracterizado pela força industrial. Nenhum economista sério acredita que isso faça sentido. Ao contrário, o custo será alto, não apenas na forma de inflação, mas em perda de produtividade e má alocação do capital. A guerra comercial prejudicará o crescimento global e a eficiência da própria economia americana, com menos oportunidades para investimentos.

É verdade que a tarifa média sobre importados nos Estados Unidos é baixa, cerca de 3%. Mas não destoa da cobrada noutros países ricos: 2% na Austrália, 4% no Canadá, Japão e Reino Unido, 5% na União Europeia (UE). No Brasil, os produtos americanos pagam na média 12,4%, mas 48% passam pela alfândega isentos, e 15% são taxados abaixo de 2%. E os americanos são superavitários no comércio bilateral.

Nas próximas semanas, o governo brasileiro precisa adotar uma estratégia sofisticada. Negociar a queda de tarifas em alguns setores poderá ser benéfico. Os consumidores brasileiros, reféns de produtores locais caros e ruins, têm muito a ganhar com um leque maior de opções baratas. Mas a retaliação não deve ser descartada. Boa parte do que o Brasil vende aos Estados Unidos são produtos industrializados. Encontrar mercados alternativos não será simples. O novo panorama comercial torna ainda mais urgente acelerar a implementação de acordos de livre-comércio, e não apenas com a UE.

Para o agronegócio, as oportunidades são mais evidentes. Em resposta a Trump, os chineses elevaram tarifas sobre frango, trigo, milho, algodão, soja, porco, carne, frutas, vegetais e laticínios americanos. Com isso, o exportador brasileiro levará vantagem na disputa pelo imenso mercado chinês. Haverá na certa situações semelhantes noutros países. Ao promover o protecionismo, Trump pagará um preço alto. Para o Brasil, felizmente o mundo não se resume aos Estados Unidos.

Pontes em estado precário revelam urgência de privatizar mais rodovias

O Globo

Das 113 mil existentes no Brasil, há pelo menos mil em condição ruim ou crítica — e 37% têm mais de 50 anos

Técnicos costumam dizer que nenhuma ponte cai de repente. Há avisos. Se houver vistorias periódicas, sempre será possível repará-las ou, no mínimo, interditá-las para salvar vidas. Como não houve nem uma coisa nem outra, o desabamento da Ponte Juscelino Kubitschek, sobre o Rio Tocantins, em dezembro, deixou 14 mortos e três desaparecidos. Os números sugerem que haverá outros casos assim se ninguém tomar providências. Há 736 pontes em estado crítico ou ruim no Brasil, de acordo com os dados oficiais do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) revelados pelo GLOBO.

As estatísticas do Panorama Geral das Pontes Brasileiras sugerem que os riscos podem ser ainda maiores. Das 113.168 pontes existentes no país, apenas 12.142 passaram por alguma inspeção, e as condições de 1.039 foram classificadas como críticas ou ruins. Do total, 42 mil (37%) têm mais de 50 anos. É um percentual elevado e preocupante, pois todas elas exigem cuidados especiais para continuar funcionando sem risco. Há poucos dias, o Dnit fechou a Ponte dos Índios, sobre o Rio Pindaré, entre as cidades de Santa Inês e Bom Jardim, no Maranhão. A medida foi tomada depois que indígenas advertiram que a corrosão fez cair parte da estrutura embaixo do vão central.

A interdição infelizmente é uma exceção. Não se conhecem as condições de mais de 100 mil pontes, ou quase 90%, a maioria de responsabilidade de estados e municípios, de acordo com Ademir Santos, professor aposentado de pontes e estruturas de concreto da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A estrutura de vistoria e fiscalização é precária ou mesmo inexistente, segundo constatou estudo sobre o assunto apresentado em outubro por Santos e dois coautores no 65º Congresso Brasileiro do Concreto.

O Programa de Manutenção e Reabilitação de Estruturas do Dnit estima gastos de R$ 5,83 bilhões em 816 obras. Como não parece haver sentido de urgência, as autoridades ainda esperam resposta do setor de engenharia e construção sobre a capacidade de atender à demanda. Para evitar tragédias, seria necessário investir bem mais em infraestrutura de transporte. Em 2023, os investimentos ficaram em 0,56% do PIB, segundo estudo da MC2R Inteligência Estratégica. A Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib) calculou, no mesmo ano, que o país precisaria investir 2,26% do PIB apenas para cobrir a depreciação dos ativos públicos de transportes.

Por 25 anos, o Brasil tem investido menos de 1% do PIB no setor, enquanto China, Rússia,Índia, Coreia do Sul, Vietnã, Chile e Colômbia despendem em média 3,4%. Tais números comprovam mais uma vez a necessidade de promover concessões de rodovias ao setor privado. Nem todas as estradas serão viáveis sob a administração privada, por isso o poder público precisará continuar a mantê-las. Justamente para manter o foco nessas e contribuir para preservar vidas, é preciso acelerar a privatização das demais.

Guerra tarifária obscurece expectativas dos mercados

Valor Econômico

Os efeitos financeiros da reviravolta provocada por Trump podem trazer mais estragos ao Brasil pois as contas fiscais estão fora de ordem

A incerteza passou a dominar as perspectivas econômicas e políticas globais com o frenesi de centenas de ordens executivas emitidas pelo presidente Donald Trump. As de maior impacto mundial, o início de bloqueio tarifário aos maiores parceiros comerciais dos Estados Unidos, está apenas começando, mas, computadas as ameaças já feitas por Trump, englobará qualquer país com alguma relevância comercial no mundo. Os efeitos do isolacionismo e da muralha tarifária são conhecidos, mas as mudanças nos preços dos ativos financeiros indicam mais turbulências à frente e desaceleração econômica.

As bolsas americanas já eliminaram com as últimas quedas todos os ganhos dos acionistas desde que Trump venceu as eleições. Os preços das ações continuam altos, mas passou a ser mais difícil apostar em melhores resultados econômicos das empresas quando os indicadores começam a mudar de sinal e a guerra tarifária iniciada pelo presidente republicano tende a promover um aumento significativo nos custos de produção domésticos. Além disso, as empresas de tecnologia, que dominam o índice e puxaram as altas, sofreram um baque com o programa de IA chinês DeepSeek, que colocou em xeque a equação financeira das big techs americanas, em especial a necessidade de data centers bilionários e vorazes consumidores de energia.

A valorização do dólar, uma consequência dos aumentos de preços esperados com os aumentos tarifários e, em consequência, da manutenção de juros altos pelo Federal Reserve, ainda não entrou em cena. Ao contrário, o dólar perdeu 1% do valor apenas na terça-feira, diante de uma cesta de moedas dos países com os quais mais comercia. No Brasil, o real esteve ontem entre as divisas que mais ganharam força ante o dólar entre 33 países.

Há motivos pontuais para isso, como o fato de Trump ter adiado a aplicação de tarifas sobre automóveis vindos dos países taxados vizinhos, Canadá e México. Trump parece ter descoberto que, pelo acordo de livre comércio, peças, componentes e outros itens utilizados na fabricação de carros entravam sem gravames nos EUA e passariam a pagar 25%. A empresa de rating S&P estimou que isso aniquilaria de 10% e 25% do Ebitda (lucro antes de impostos, juros, depreciação e amortização) das montadoras. Elas, por exemplo, consumiriam todo o lucro da GM.

Mas há motivos que podem se concretizar e se tornarem mais relevantes. As expectativas de que a economia americana permaneceria sólida e com bom crescimento começam a desvanecer após a enxurrada tarifária. Os gastos de consumo recuaram em janeiro, os índices de confiança seguiram o mesmo caminho e os serviços, segundo o ISM Composite (índice dos gerentes de compras que computa desempenho da indústria e setor terciário) parou de crescer, no que foi acompanhado pelos preços. Serviços compõem dois terços do PIB americano.

O Federal Reserve de Atlanta previu uma contração forte da economia americana no primeiro trimestre. Os dados de investimento empresarial apontam queda. Como os juros vão reagir no futuro é uma enorme incógnita. Os investidores, que esperavam só mais um corte nas taxas até o fim do ano, após a última reunião do Fed em janeiro - e boa parte deles, nenhuma -, passaram a ver mais chances de duas reduções no ano. Por outro lado, a Moody’s vê a possibilidade nada desprezível de os EUA entrarem em estagflação, a péssima combinação de baixa expansão com inflação alta - as tarifas, na magnitude e extensão colocadas por Trump, poderiam ter esse efeito. Seria a primeira vez em meio século (década de 70) que isso ocorreria. Uma das consequências é que os juros não cairiam para impedir o esfriamento das atividades, mas, ao contrário, subiriam para deter a alta dos preços.

No caso de estagflação americana, com juros altos, as políticas monetárias de países como o Brasil se manteriam pressionadas, e o dólar poderia ter algum ímpeto de valorização, dando fôlego à inflação fora dos EUA. Por outro lado, esse seria mais um fator adicional de desaceleração econômica global e de perda de fôlego das exportações americanas. Nesse cenário, Trump, que queria pôr fim ao déficit comercial americano e atribuiu toda a culpa da inflação ao antecessor Joe Biden, não fechará o saldo negativo comercial e colherá inflação alta. A política fiscal de Trump pode jogar mais combustível aos preços, pois será expansionista em um país cujo déficit anual é de 6,4% do PIB, ou US$ 1,8 trilhão.

No caso do Brasil, há boas e más notícias. A China, em retaliação, taxou os bens agrícolas dos EUA, abrindo mais espaço para commodities brasileiras. Mas os EUA estão perto de sacramentar tarifas sobre o aço do Brasil, seu segundo maior fornecedor. Trump tem dado cada vez mais indícios de que aplicará “reciprocidade” às tarifas brasileiras, que são altas. Como um país relativamente fechado e pouco competitivo, a guerra tarifária não tende a causar graves danos à economia brasileira. Os efeitos financeiros da reviravolta provocada por Trump podem trazer mais estragos, pois as contas fiscais estão fora de ordem. Ainda há tempo para consertar esta falha.

Trump dobra a aposta no confronto

Folha de S. Paulo

Presidente se compromete com ações drásticas, como a ofensiva tarifária e o alinhamento com Putin em relação à Ucrânia

Em 1987, quando era só um polêmico empreendedor, Donald Trump lançou um livro, escrito de fato pelo jornalista Tony Schwartz, chamado "A Arte do Negócio", sobre sua suposta genialidade empresarial.

A obra pode ser um guia para entender a mente do presidente americano, que suscita alarme com sua abordagem agressiva em temas como a ofensiva tarifária, a Guerra da Ucrânia ou o futuro da Faixa de Gaza.

Se está mantido o ideário negocial do Trump de quase 40 anos atrás, todas as ameaças seguem uma lógica: tumultuar o ambiente e assustar ao máximo o rival com exigências absurdas para, ao fim, arrancar concessões.

É uma leitura plausível dos acontecimentos, mas que não chega a ser tranquilizadora. Passados 45 dias de sua volta à Casa Branca, o republicano parece dobrar a aposta no confronto.

A começar pela guerra tarifária, que foi disparada contra os vizinhos México e Canadá e logo suspensa. Agora, as alíquotas de importação de 25% entraram em vigor, assim como os 20% aplicados sobre produtos chineses, o alvo real do equilíbrio comercial pretendido no discurso de Trump.

Ainda falta o teste da realidade para o argumento de que tal protecionismo vai gerar empregos, mas a ideia de que ele fará com que os EUA importe inflação está bastante consolidada. A medida acarreta juros mais altos, numa espiral de impactos no varejo doméstico e para consumidores de outros países, como o Brasil.

Dada a interconexão entre as maiores economias do mundo, EUA e China, a resultante dessa escalada tende a ser nefasta.

Na Europa, Trump ungiu Volodimir Zelenski como seu bode expiatório, armando uma espécie de emboscada ao vivo em encontro na Casa Branca. A partir dessa debacle histórica, com direito a bate-boca e expulsão do visitante, o americano suspendeu a ajuda militar à Ucrânia na sua luta contra Vladimir Putin.

Zelenski pediu perdão, mas parece improvável que o republicano vá deixar o alinhamento com o autocrata russo. Aqui, não seguiu o conselho central de seu livro: "A pior coisa que você pode fazer em uma negociação é parecer desesperado para fechá-la".

O embate azedou as relações entre Trump e a Europa, com a aliança militar Otan à frente. Governantes no continente correm a fazer contas para se rearmar, o que leva tempo e, ao fim, favorecerá empresas americanas.

Toda essa movimentação foi reafirmada no primeiro discurso do mandatário ao Congresso nesta gestão, com outros aspectos inquietantes. O anômalo ideário de enxugamento da máquina pública pelas mãos do bilionário Elon Musk foi aclamado, e Panamá e Groenlândia foram de novo ameaçados, assim como políticas ambientais e de diversidade.

Sem possibilidade de reeleição e em cenário muito mais favorável a ações drásticas do que no primeiro mandato, o Trump de 2025 confronta-se com o de 1987; resta saber qual prevalecerá.

É preciso evitar mais energia poluente e alta da conta de luz

Folha de S. Paulo

Dispositivos incluídos pelo Congresso em projeto que regulamenta geração eólica atentam contra ambiente e consumidores

Não é de hoje que o setor elétrico brasileiro sofre com mau planejamento, crescimento desequilibrado de fontes geradoras e uma miríade de subsídios cruzados que oneram em demasia a conta de luz para os consumidores.

O episódio mais recente desse enredo de desmandos se deu com o projeto de lei que regulamenta a instalação de equipamentos para geração eólica em alto mar, assediado por grupos de interesse.

Duvidoso em si mesmo devido à incerteza de retorno dessa tecnologia, o texto foi aviltado pelo Congresso com dispositivos de natureza diversa do objetivo central —os famigerados "jabutis".

É o caso da reserva de mercado para usinas poluentes, movidas a carvão e gás inflexíveis, que precisam operar durante 70% do tempo, em localidades de interesse político. Seriam garantidos 4,25 GW a essas modalidades, com custo elevado e emissão de gases de efeito estufa.

Segundo nota técnica do Observatório do Clima e da Coalizão Energia Limpa, a intervenção do Congresso no projeto teria o potencial de gerar emissões de 274,4 milhões de toneladas de CO2 em 25 anos, com repasse às tarifas estimado em até R$ 658 bilhões no período —ou R$ 25 bilhões ao ano, equivalentes a um reajuste de 11% na conta de luz.

Os valores são objeto de controvérsia, mas mesmo assim há profundo ceticismo no setor com a iniciativa. Felizmente os artigos foram vetados por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no entanto é elevado o risco de os parlamentares restabelecerem seu texto.

Não é a primeira ofensiva do tipo. Durante a privatização da Eletrobras, tentou-se o mesmo para produzir ainda mais energia poluente. Os problemas também têm aumentado com o volume exagerado de subsídios para fontes renováveis.

Não há falta de oferta de energia atualmente, mas a expansão da geração cada vez mais dependente de fontes intermitentes sem adequada estrutura de transmissão tem causado dificuldades de operação —e até apagões, como ocorreu em 2023.

Com potência elevada em momentos de pico, sobretudo no Nordeste, sem que se possa distribuir a energia onde há maior demanda, interrupções têm sido mais frequentes, com prejuízos para as empresas.

Há o risco de que tais prejuízos também acabem distribuídos na conta de luz, o que seria outro fator de encarecimento. É preciso planejamento centralizado com fontes estáveis, inclusive hídricas, e maior investimento em transmissão. E cabe ao Congresso manter os vetos presidenciais.

Trump em estado bruto

O Estado de S. Paulo

No momento em que castiga México e Canadá com tarifas inexplicáveis e bagunça cadeias produtivas globais, Trump celebra a si mesmo e promete mais disrupção em discurso ao Congresso

O primeiro pronunciamento presidencial anual no Congresso americano de Donald Trump em seu novo mandato foi um sucesso – ao menos para os fins almejados por ele. Ecoando o discurso de posse – que por sua vez ecoou os comícios de campanha –, o pronunciamento foi calculado para humilhar os democratas, intimidar republicanos, unir o movimento trumpista Maga, mas, acima de tudo, celebrar o próprio Trump. Por isso, considerando os fins almejados pela Constituição – um diagnóstico ao Congresso acompanhado de recomendações – e pela tradição – uma demonstração cerimonial de unidade entre os Poderes –, o discurso foi um desastre.

Como bom populista, Trump invocou agendas populares: ampliar a produção de petróleo, cortar gastos perdulários da burocracia federal, reduzir impostos, deportar imigrantes que violam leis, proibir cirurgias de mudança de sexo em crianças e a participação de mulheres transgênero em esportes femininos. São políticas que o ajudaram a vencer o voto popular e os republicanos a vencer a Câmara e o Senado, e o fato de que os democratas ainda não aceitam que essas agendas têm amplo apoio da população só mostra por que perderam. Trump pretende reduzir tudo a uma luta de classes – a classe trabalhadora, defendida pelos republicanos, contra as elites identitárias entranhadas na administração pública.

Mas se Trump é mais popular do que os democratas gostariam, é menos do que ele imagina. Ao contrário do que sugerem suas mentiras e hipérboles, ele é relativamente impopular num início de mandato, com menos de 50% de aprovação.

É revelador que em seu longuíssimo discurso Trump tenha se omitido justamente sobre o tema de campanha que mais machucou os democratas. Com seis semanas de governo, Trump continua atribuindo a culpa pela inflação – como, de resto, por tudo de ruim no país – ao governo de Joe Biden, sem contudo dar nenhuma pista de como pretende reduzi-la.

Ao contrário, ele impôs 25% de tarifas ao Canadá e ao México e mais 10% sobre a China, sob o argumento de que protegerão a “alma da nação” e, como num passe de mágica, resolverão problemas como o narcotráfico. O mercado de ações caiu, pela óbvia razão de que as tarifas contra México e Canadá são inexplicáveis, e os economistas projetam mais inflação, prejuízos para a indústria e para os exportadores agrícolas e ampla disrupção nas cadeias globais de produção. Trump diz que será só um “pequeno distúrbio”, mas logo deve descobrir que para os eleitores, sobretudo para a classe trabalhadora, o distúrbio é imenso.

No front externo, Trump não terminou a guerra da Ucrânia em 24 horas, como prometeu, mas está perto disso. Só que o que chama de “paz” são a capitulação da Ucrânia e o triunfo da Rússia, isto é, um interlúdio para novas guerras. Os americanos muito provavelmente não votaram para que seu presidente impusesse indiscriminadamente tarifas sobre aliados, e menos ainda para que alienasse aliados, como faz com os europeus, e reabilitasse adversários, como faz com a Rússia.

Mais significativa que os conteúdos presentes ou ausentes no discurso foi a posição de seu destinatário. Nunca o Congresso pareceu tão irrelevante. Trump falou muito do que fez e pouco do que fará, mas, em todo caso, promove poucas negociações com o Congresso, o que sugere escassa confiança na maioria republicana.

De fato, o protecionismo comercial e o desmonte da aliança transatlântica podem ser populares entre os trumpistas, mas não entre os republicanos tradicionais. Que a escolhida pelos democratas para responder ao discurso de Trump, a senadora Elissa Slotkin, uma moderada, tenha concentrado suas críticas nesses pontos sugere que um exame de consciência pós-eleições pode estar surtindo frutos. Um governo construído sobre ordens executivas pode ser bombástico, mas também efêmero. Outra legislatura pode revertê-las rapidamente.

Por isso, Trump tem pressa e submeterá os freios e contrapesos da república americana a um teste de estresse. Seu discurso no Congresso mostra isso. Nessa toada, muitos desses freios e contrapesos podem quebrar irremediavelmente.

Um país que gasta muito, e mal

O Estado de S. Paulo

Estudo demonstra que o gasto público elevado no Brasil não se traduz em qualidade e eficiência na oferta de serviços. Melhorar a oferta requer mudanças profundas no setor público

Num momento em que a dívida pública brasileira cresce de forma acentuada, um relatório recém-publicado pelo Banco Itaú escancara que, não bastasse o gasto elevado do governo, a qualidade dos serviços públicos oferecidos no Brasil é inferior à de outros países.

Para chegar a essa conclusão, os analistas da instituição financeira se basearam em dados do Banco Mundial e compararam a qualidade de bens e serviços públicos brasileiros nas áreas de saúde, educação, administração pública, equidade (porcentagem da renda total pertencente aos 40% mais pobres) e infraestrutura.

Essas informações foram comparadas com as de grupos compostos por países da América Latina, Brics, economias desenvolvidas e países nórdicos. Houve ainda uma análise de eficiência do gasto, feita por meio da ponderação da qualidade dos bens e serviços públicos sobre o gasto total como proporção do PIB.

Pela metodologia do relatório, pontuações acima de 1 indicam desempenho melhor que o da média; já uma nota menor que 1 representa desempenho inferior ao da média. E o Brasil, como esperado, não se saiu nada bem.

Exemplo disso é a área de educação. Em qualidade, o Brasil, com pontuação de 0,92, superou a nota do agregado de países latino-americanos (de 0,82), mas ficou atrás dos Brics (1,04), desenvolvidos (1,22) e nórdicos (1,26). E, quando se mensura a eficiência do gasto nessa área, o Brasil (0,87) ocupa a lanterna por ampla margem, com nota significativamente menor que a dos Brics (1,13), dos latinos (1,14), dos nórdicos (1,17) e dos desenvolvidos (1,25).

No quesito eficiência do gasto público como um todo, o Brasil também se encontra numa incômoda última colocação, com pontuação de 0,53, ante 0,76 dos latinos, 0,93 dos Brics, 1,48 dos nórdicos e 1,51 dos desenvolvidos. De acordo com o relatório, uma das explicações para o mau desempenho do País no indicador de eficiência é o alto volume de recursos públicos destinados à Previdência Social e aos gastos gerais.

O gasto público do Brasil como proporção do PIB é de 34,7%, quase o mesmo que o dos países nórdicos (34,8%), mas a qualidade dos serviços é notavelmente inferior. Isso só comprova que gastar muito, como faz o Brasil, não é sinônimo de gastar bem, já que a qualidade das políticas públicas não se compara com o que é oferecido na Suécia, na Dinamarca e na Noruega.

O que fazer, então, para melhorar a eficiência do elevado gasto público brasileiro? Recomendar uma redução no nível de investimentos soa tentador. Tal caminho, no entanto, pode ser contraproducente, já que a oferta de serviços públicos pode cair – ou seja, existe o risco de que a qualidade daquilo que se oferece aos cidadãos piore ainda mais.

Mesmo assim, há muito a fazer em relação ao aprimoramento da eficiência do gasto público, o que requer uma mudança estratégica que privilegie mecanismos de governança mais robustos, a adoção de práticas orçamentárias guiadas por desempenho e a consolidação de uma cultura de prestação de contas, como sugerem os analistas.

O fortalecimento de estruturas institucionais, de modo a aumentar a transparência e reduzir os riscos de desvios de recursos, seria um primeiro passo nesse processo de aprimoramento.

Outro ponto que requer atenção são as práticas orçamentárias. Elas precisam passar por avaliações constantes para que aqueles programas de pouca eficácia sejam readequados ou encerrados. Errar é do jogo, desde que se aprenda com os equívocos e se corrija a rota, especialmente quando se trata de recursos públicos.

Mais transparência e competitividade em contratações públicas não só é recomendável, como, segundo os autores da pesquisa, pode gerar ganhos imediatos.

Cansado de pagar tributos sem receber serviços condizentes, o brasileiro certamente agradeceria se houvesse uma reorganização do gasto público brasileiro. Enquanto não atentar para isso e seguir incrementando o gasto sem pensar na qualidade, o governo só fomentará insatisfação, como evidenciam as mais recentes pesquisas de popularidade. Pior: a um custo insustentável.

O Pix do PCC

O Estado de S. Paulo

Facção se aproveita de regras frouxas de fiscalização para usar fintechs na lavagem de dinheiro

A Polícia Federal e o Ministério Público de São Paulo deflagraram recentemente uma operação para combater a lavagem de dinheiro do tráfico de drogas do Primeiro Comando da Capital (PCC) por meio de instituições de pagamento, também conhecidas como fintechs. Segundo os investigadores, esse crime é possível graças a lacunas de fiscalização que foram muito bem exploradas pela facção, cujo fortalecimento financeiro ameaça o País.

Entraram na mira da Operação Hydra a 2Go Instituição de Pagamento Ltda. e a Invbank Solução de Pagamentos. Entre os donos de uma dessas empresas está um policial civil de São Paulo, que foi preso. E um integrante do PCC seria sócio de outra delas.

A delação do empresário Antônio Vinicius Lopes Gritzbach, que trabalhou com o bando, depois entregou seus esquemas e foi executado no Aeroporto de Guarulhos, levou os investigadores às duas instituições. Segundo Gritzbach, uma intrincada rede de laranjas, com empresas de fachada e até beneficiários de programas sociais, lavava dinheiro do PCC, sobretudo por meio do Pix.

Relatórios de inteligência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) ampliaram as suspeitas. Depósitos de dinheiro em espécie eram feitos aos montes, em valores picados, para que, posteriormente, os bandidos pudessem comprar imóveis de luxo, realizando os pagamentos via Pix.

Essa engenhosidade mostra a forma como essa facção tem operado seus inúmeros tentáculos. E a cada golpe desferido pelos investigadores, o PCC de algum modo se refaz, o que revela sua ampla rede de atividades ilícitas. Por isso, medidas eficazes para cortar as ramificações dessa organização criminosa não podem ser negligenciadas.

Não faz muito tempo, a Receita Federal, por meio de uma portaria, tentou ampliar a fiscalização sobre o Pix, justamente para flagrar operações do crime organizado. A ideia era obrigar operadoras de cartão de crédito e instituições de pagamento – veja só – a notificar o Fisco em caso de movimentação mensal superior a R$ 5 mil por pessoas físicas e a R$ 15 mil por pessoas jurídicas. A medida, contudo, foi revogada a mando do presidente Lula da Silva, porque foi tratada pela oposição ao governo como um primeiro passo para “taxar” o Pix.

Ou seja, a tibieza do governo, incapaz de sustentar uma medida correta apenas porque a oposição a transformou em munição para desgastar o governo, tornou mais difícil flagrar o crime de lavagem de dinheiro, essencial para a manutenção dos negócios do PCC e de outros bandos criminosos.

Operações como a Hydra só reforçam que o Banco Central precisa endurecer os mecanismos de controle das fintechs, com rigor semelhante ao imposto aos bancos. Já do governo federal se esperam normas que permitam rastrear com eficácia movimentações suspeitas a fim de cessar tantos negócios espúrios. E dos políticos se espera que, doravante, medidas sérias que ajudam a combater o crime organizado não sejam sabotadas pela oposição nem abandonadas pelo governo por cálculos exclusivamente eleitoreiros.

Cotas raciais levam mais negros às universidades

Correio Braziliense

Entre 2000 e 2022, aumentou cinco vezes o número de afrodescendentes que chegou ao ensino superior e conseguiu concluir os estudos

O número de negros (pretos e pardos) com nível superior de escolaridade completo aumentou mais de cinco vezes (5,8%) no país em 22 anos (2000-2022). Nesse período, a proporção da população preta com 25 anos ou mais passou de 2,1%, em 2000, para 11,7% em 2022. Os pardos, no mesmo patamar de ensino, cresceram 5,2 vezes, de 2,4% para 12,3%, em igual intervalo de tempo. Recém-divulgados, os dados são do Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Apesar de toda polêmica em torno do sistema de cotas raciais, o recenseamento mostra que houve um avanço no acesso de negros ao ensino superior. Uma luta antiga que só se tornou política de Estado a partir da edição, em 2012, da Lei 12.711. As dificuldades para o povo negro avançar no grau de instrução têm início na infância. Essas barreiras fazem com que o maior percentual de afro-brasileiros com 25 anos ou mais sem instrução e com ensino médio incompleto seja de pretos (40,5%) e pardos (40,1%). Entre os brancos, nas mesmas condições, o percentual é bem inferior: 29,2%.

A parcela de amarelos, formada por japoneses, chineses e coreanos, registrou o maior percentual de pessoas com nível superior completo — 44,1% —, e o menor índice de cidadãos sem instrução ou com fundamental incompleto (17,6%). Em condição oposta, estão os indígenas com 25 anos ou mais. Entre os povos originários, apenas 8,6% tinham nível superior completo, e 51,8% eram sem instrução ou com apenas ensino fundamental incompleto.

No recorte de gênero, em 2022, as mulheres têm melhor nível de instrução do que os homens. Entre elas, com 25 anos ou mais, 20,7% tinham nível superior completo, enquanto os homens, em igual faixa etária, somavam só 15,8%. Nesse grupo etário, o Distrito Federal, proporcionalmente, registrou 37% de pessoas que concluíram o nível superior, à frente de São Paulo, com 23,3% da população. Maranhão, por sua vez, tem a menor proporção de pessoas diplomadas: 11,1%.

O Censo mostra ainda que a maioria dos formandos são brancos nos campos da medicina — 75,5%; da economia, 75,2%; na odontologia, 74,4%; e no direito, 68,2%. Nas mesmas áreas de formação, os negros somam 21,9% (medicina), 22,3% (economia), 22,7% (odontologia) e 30,7% (direito).

Ainda há um enorme fosso a ser vencido para que haja equidade entre negros e outras etnias que compõem a população brasileira, fruto de uma segregação histórica, oriunda do racismo sistêmico e institucional que se consolidaram desde o período da escravidão, a partir do século 16. Os dados mostram que a parcela de brancos com 25 anos ou mais e nível superior completo cresceu 2,6 vezes no mesmo período. Ou seja, variou dos 9,9%, em 2000, para 25,8% em 2022 — duas vezes mais do que o percentual de pretos e pardos, que são maioria na composição demográfica do país. 

Alcançar equidade de oportunidades para todas as raças/cor e gêneros exige uma educação voltada para esse objetivo, começando pelo cumprimento da Lei nº 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história afro-brasileira, mas ignorada pela maioria das instituições de  ensino públicas e privadas. Além disso, políticas públicas realmente inclusivas, e não segregacionistas, até que o país atinja elevado nível de civilidade a ponto de dispensar as cotas raciais. Isso só será possível quando raça/cor não for mais critério nas relações humanas e nas políticas de Estado.

Nenhum comentário: