quinta-feira, 24 de abril de 2025

O espírito de uma época - William Waack

O Estado de S. Paulo

Ainda lembro bem do colega italiano Cesare de Carlo, do La Nazione (Florença), arrastando afobado uma enorme mala pesada numa das travessias do Muro de Berlim, e gritando “que disparano, que disparano”. Era outubro de 1978 e junto do espanhol José Comas, do El País (Madrid), tínhamos saído às pressas de Bonn, capital da então Alemanha Ocidental para chegar, via Berlim Oriental e dali a Varsóvia, até Wadovice, um obscuro povoado na Polônia comunista.

Éramos correspondentes estrangeiros em Bonn, e os mais próximos da terra natal de Karol Wojtyla, que havia acabado de ser eleito Papa João Paulo II. Um Papa vindo de um país comunista? Tinha sempre na cabeça a célebre frase atribuída a Stalin, quando lhe falaram da força do Vaticano: “quantas divisões (de exército) tem o Papa?”

Para mim começava uma longa jornada profissional e pessoal para tentar entender o papel da religião nas grandes mudanças políticas e a formidável presença das ideias na atuação de personagens como o Papa. Ou na figura do Ayatollah Khomeini, pois no ano seguinte eu estava cobrindo a Revolução Islâmica do Irã. Claro que economia importa, mas religião – aquilo que as pessoas acreditam no fundo–éo decisivo.

Nas décadas seguintes tive a oportunidade de cobrir alguns momentos relevantes não só no papado de João Paulo II, mas também de seus sucessores, Bento XVI e Francisco. Minha impressão como repórter é ad equem esmoàtes tadeu ma instituição sólida etão antiga quanto a Igreja nenhum fugiu de sua biografia e formação.

Wojtyla cresceu sob o totalitarismo comunista, e fez do combate a esse tipo de regime uma espécie de cruzada pessoal. Ratzinger tinha da Baviera (da qual, na verdade, nunca saiu) a noção do lugar do catolicismo perfeito e de exportação. Brilhante intelectual, com grande sofisticação filosófica, foi vítima dela mesma, quando não percebeu como uma rebuscada citação histórica (de um imperador bizantino do século 14) num de seus mais importantes discursos ofenderia muçulmanos ao redor do mundo.

Para “fazer o perfil” (como se diz na antiga gíria jornalística) de Jorge Maria Bergoglio fui a alguns de seus lugares preferidos em Buenos Aires – entre eles um café tradicional na Plaza de Mayo e uma “villa miseria” bem próxima à sede de seu time de futebol favorito, o San Lorenzo. Francisco era bem um jesuíta, no seu espírito “prático” e combativo, formado entre ditadura militar, desigualdade social e pobreza aumentando.

A Guerra Fria dos tempos de Wojtyla parece fichinha perto da que se registra agora. O conflito no Oriente Médio continua seguindo rachaduras de civilizações, e está piorando. E Francisco talvez tenha decepcionado “progressistas”, que dele esperavam mais, e “conservadores”, para os quais teria ido muito longe – num mundo ainda mais desigual, e escorregando para uma grande desordem. Mas cada Papa foi um tipo de resposta ao espírito de sua época. E isso importa.

 

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