O Estado de S. Paulo
A verdade é que sua obra de amor, resistência
e esperança precisa continuar
O Papa Francisco exerceu uma liderança
transformadora. Desde o início, ligou-se aos mais pobres. Seus escritos, ações
e pastoreio desenvolveram-se a partir da ideia fundadora do cristianismo: o
amor ao próximo. Não apenas nos atos individuais, mas na política, na economia,
na causa ambiental e na ação social.
Na encíclica “Laudato si”, publicada por Francisco em 2015, apresenta-se uma visão ampla e profunda sobre a economia, o meio ambiente, a vida em sociedade e a responsabilidade de cada um e das instituições na construção de um mundo novo; menos injusto e mais fraterno.
A solidariedade universal, para ele, não se
desvincula do cotidiano de cada um, da responsabilidade individual, do papel e
do valor inestimável das pessoas, com suas diferenças, dificuldades e
idiossincrasias. Da mesma forma, apenas o indivíduo não basta. A amizade social
é a ideia-força central em Francisco. Trata-se do amor como um sentimento que
transcende a esfera individual. Objetiva-se a luta coletiva por uma realidade
política, social e econômica agregadora, para além do assistencialismo, como ele
mesmo coloca.
Escreveu que “a simples proclamação da
liberdade econômica, enquanto as condições reais impedem que muitos possam
efetivamente ter acesso a ela e, ao mesmo tempo, se reduz o acesso ao trabalho,
torna-se um discurso contraditório (...)”. Essa liberdade serve a quem, se as
instituições e o modelo econômico preservam e ampliam segregações e
desigualdades?
Destacou, assim, a i mportância da atividade
econômica, mas voltada aos objetivos permeados pela fraternidade e pela amizade
social. Ora, quer discussão mais atual, dado o encantamento, por vezes, tão
direto e fácil com as inteligências artificiais e seus aparatos? A quem servirá
ou a quem serve um modelo em que os eficientes, os considerados bons, capazes e
desenvolvidos são integrados e participam da vida, têm sua dignidade, isto é,
seu trabalho, ao passo que os demais ficam à margem?
A defesa do trabalho tem a ver com a
dignidade humana, antes de tudo. Pode haver beleza na vida em sociedade apenas
pelo progresso? Para Francisco, precisa-se de um desenvolvimento econômico como
espécie de processo integrador de realidades culturais, sociais, políticas e
regionais distintas.
A esse respeito, na encíclica publicada em
2020, “Fratelli tutti”, Francisco argumenta que, “numa sociedade realmente
desenvolvida, o trabalho é uma dimensão essencial da vida social, porque não é
só um modo de ganhar o pão, mas também um meio para o crescimento pessoal, para
estabelecer relações sadias, expressar-se a si próprio, partilhar dons,
sentir-se corresponsável no desenvolvimento do mundo e, finalmente, viver como
povo.”
Em algumas ocasiões, as encíclicas flagram o
próprio autor colocando-se à prova, no sentido de questionar-se sobre o caráter
utópico de suas análises. Ato contínuo, no entanto, mostrava, por meio de
propostas, os caminhos. Descreveu, por exemplo, a importância de instituições
de caráter mundial e de como reformá-las para aprimorar ou corrigir sua atuação
em busca do bem comum, de uma economia próspera, mas solidária.
A aparentemente surrada ideia do bem comum,
aliás, renasceu à luz da tese do amor ao próximo no enredo de Francisco.
Apegou-se à conhecida parábola do Bom Samaritano, na encíclica “Fratelli
tutti”, para evidenciar a amplitude da caridade. Não apenas aquela contida no
gesto pessoal, tão valioso, mas também a derivada da transformação do ato de
cada um em ação política – de grupos, de instituições e de países.
Dizia ele na encíclica “Laudato si”: “(...) O
bem comum requer a paz social, isto é, a estabilidade e a segurança de uma
certa ordem, que não se realiza sem uma atenção particular à justiça
distributiva, cuja violação gera sempre violência. Toda a sociedade – e, nela,
especialmente o Estado – tem obrigação de defender e promover o bem comum.”
O tempo de Francisco, para a Igreja e os
católicos, propiciou união, abertura ao novo e resgate dos ideais
verdadeiramente cristãos. Falo da amizade social, da fraternidade, da
solidariedade, da tolerância e de sua atuação repleta desses propósitos. Reaproximou
a Igreja dos seus, acolheu os marginalizados e, sobretudo, desmontou os
farisaísmos internos.
O quinto capítulo do texto “Fratelli tutti”
termina com provocação de que a ação política pode levar a “perguntas
dolorosas”, passado o tempo de cada um. São elas: “Quanto amor coloquei no meu
trabalho? Em que fiz progredir o povo? Que marcas deixei na vida da sociedade?
Que laços reais construí? Que forças positivas desencadeei? Quanta paz social
semeei? Que produzi no lugar que me foi confiado?”
A análise do tempo de Francisco propicia as
melhores respostas para essas indagações.
Contudo, vale dizer, seu tempo ainda não
acabou. A verdade é que sua obra de amor, resistência e esperança precisa
continuar.
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