Folha de S. Paulo
Ninguém está fora da política, muito menos os
apolíticos
Os 12 anos de pontificado do papa
Francisco viram a construção de uma das maiores lideranças espirituais
e morais do nosso tempo. Midiático e informal, coloquial e irreverente,
tornou-se o papa mais citado da história menos por suas encíclicas e homilias,
mais por suas numerosas entrevistas, vídeos e frases
de efeito.
Em discursos e atos, deu prioridade à defesa de pessoas pobres e vulneráveis, sem deixar de se posicionar sobre os temas fundamentais. Em defesa da "casa comum da humanidade", reconheceu a urgência de uma "pausa em nosso estilo de vida". Questionou a opulência e a concentração de riqueza, reconheceu o direito à propriedade desde que vista como instrumento para promoção do bem comum.
Na encíclica "Laudato Si",
sintetizou razões econômicas e morais para
proteger a biodiversidade, enfrentar a mudança climática e reduzir a
centralidade de combustíveis fósseis. Reconheceu a evidência científica ao
mesmo tempo que criticou o cientificismo sem causa.
Apontou a responsabilidade de gerações
presentes com gerações futuras e a necessidade de aliança entre jovens e idosos
na preservação não só da vida futura, mas da memória. Na geopolítica,
contribuiu com conquistas de cooperação multilateral e condenou
a "globalização da indiferença" na raiz de políticas
migratórias degradantes.
Deixou de promover
mudanças mais profundas sobre mulheres na igreja, casamento
homossexual, uso de contraceptivos e aborto. Não sabemos se por convicção ou
por impedimentos estruturais, frustrou a muitos. Mas por meio de frases
ambíguas, não deixou de estimular debate e mobilização. "Se um homossexual
aceita o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-lo?"
Não era liberalismo nem comunismo, apenas
cristianismo. Um cristianismo cauteloso, com uma dose de coragem e outra de
prudência conservadora.
Sua face mais interessante esteve na crítica
a cristãos. É conhecida a técnica do sequestro de símbolos e palavras para
praticar o seu contrário (seja para confortar a consciência, seja para exercer
dominação). Funciona assim com termos pesados como "democracia" e
"liberdade" na boca de autoritários.
Francisco não deixou de perguntar o quão
anticristão um cristão consegue ser, de imaginar o privilégio de levar uma vida
anticristã enquanto se declara cristão. Improvisou até uma tipologia: o cristão
corrupto, o cristão inútil e o cristão hipócrita, que fala com Deus como se
fosse um papagaio. "Melhor
ser ateu."
Tentou mostrar, por palavra e gesto, que
religião tem tudo a ver com política, que negar esse truísmo é, na hipótese
mais inocente, autoengano. Alijar-se da política é fingir não ter qualquer
dever de solidariedade e cuidado, qualquer responsabilidade por sofrimento
alheio. Uma decisão tão política quanto pagã.
E explicou que a religião não é indiferente à
economia. Quem vê na mais desregulada economia de mercado um jogo meritocrático
de vencedores e perdedores, independente da qualidade das regras, do respeito
às regras e das condições da competição, independente dos danos causado à
saúde, ao meio ambiente e ao senso de comunidade; ou quem luta pela competição
como princípio soberano de organização social pode passar a vida a rezar que
não vai conseguir a salvação, diria Francisco.
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