Folha de S. Paulo
Enquanto o STF brasileiro foi violado só pela
ditadura militar, os EUA têm história de investidas contra sua Suprema Corte
Quando da Revolta da Armada em 1893, era
presidente Floriano Peixoto, o Marechal de Ferro. Navios estrangeiros
ancorados no porto consultaram como seriam recebidos se decidissem proteger os
interesses locais de seus países. Floriano respondeu: "À bala!".
Primeira República, o arroubo de soberania talvez espelhasse mais a mente
explosiva do Marechal do que o real sentimento de uma nação ainda alheia ao
Estado. Bravata ou não, foi respeitado.
Cabe essa rememoração em época de fraca energia das soberanias nacionais, não por efeito colateral da globalização, mas por vulnerabilidade aos surtos de um neoimperialismo. Vulneráveis são os processos políticos que trocam espaço nacional pela efemeridade das redes, onde o que se diz não corresponde a qualquer princípio de organização social, mas a influências distantes da lógica da vida. O virtual arroga-se superior às demarcações territoriais e favorece uma subjetividade política sem identidade de classe.
Transnacional, esse contexto engendra
absurdos como as ameaças ao Supremo Tribunal Federal pela administração do
governo Trump. Enquanto o STF brasileiro foi violado apenas pela ditadura
militar, os EUA têm uma história de investidas contra a sua Suprema Corte, que
"mudou de tamanho sete vezes entre 1800 e 1869, todas elas por razões
políticas" (Levitsky e Ziblatt, "Como As Democracias Morrem"). Em 37, o presidente
Roosevelt também fez guerra aberta contra a Corte e, mesmo com maioria sólida
no Congresso, foi bloqueado. Atentados iguais nunca mais se repetiram.
Na geopolítica neoimperial trumpista,
desrespeitar instituição sólida como o Supremo de outro país é retorno da pior
tradição americana. Atitude análoga ao discurso das redes, desvinculado da
factualidade histórica. Mas que se desenha com tintas fortes para o campo
político, onde influenciadores com milhões de seguidores tendem a ocupar o
espaço público das representações civis junto aos Poderes republicanos. Trump
passou de reality show a influencer, um híbrido de canto de
sereia e politicagem direitista, adequado à penetração de outsiders nos portões
fluidos do establishment político.
Essa fluidez estende-se à estabilidade
psíquica dos atores. Nos anos 90, tecnocratas precisavam de drogas euforizantes
(a chamada "Prozac Economy") para tomar decisões. Em 97, o presidente
equatoriano Bucaram, El Loco, foi deposto por notória maluquice.
Ampliado pelas redes, o fenômeno construiu Bolsonaro, que agora chama seu gado
golpista de "malucos". Desvairado, Tump briga com Musk, que o vincula
a famoso abusador sexual. Mas, "quando duas crianças brigam, é melhor
deixá-las", sentencia, autorreflexivo, Trump. Não há infantilidade, porém:
a ketamina, droga de que Musk é dependente, é tão dissociativa que desconecta
sentimentos, identidade e localização espacial. Um quer ser imperador da Terra,
o outro, de Marte. Livre delírio confunde-se com liberdade de expressão.
Ketamina é a fonte real dos ataques de Musk ao ministro Moraes. Desconhece-se a
condição mental dos funcionários americanos permeáveis aos conspiradores da
quinta-coluna brasileira, antinacional. As ameaças parecem apenas bizarrices,
mas nessa atmosfera geral de desequilíbrio, tudo é possível. O STF tem
certamente muito a ponderar sobre penduricalhos salariais ou sobre o poder que
lhe sobe à cabeça quando "costeia os alambrados legislativos", como
diria Brizola. Não carece de nenhum Marechal de Ferro para repelir à bala
aloprados de além-mar. É tarefa (político-psiquiátrica) de Estado-Nação
soberano.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor,
entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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