No início de minha jornada como sociólogo, ainda tateando conceitos, aprendendo a desenhar o contorno do mundo com as ferramentas da análise, foi seu nome que apareceu com uma força quase fundadora. Não como um ídolo imaculado, mas como um caminho. FHC me ensinou que a sociologia não era um luxo de gabinete, mas uma forma de insurgência contra o obscurantismo. Que a ciência social não se fazia apenas com citações, mas com coragem. Que a análise estrutural das dependências do continente podia ser também um gesto de amor ao Brasil.
Seu pensamento, tão comprometido com a liberdade quanto com o rigor, ofereceu uma linguagem nova aos nossos dilemas antigos. Com elegância e erudição, ele desenhou com palavras os abismos de um país desigual e dependente, mas nunca se rendeu ao fatalismo. Entre os porões da ditadura e as salas de aula do mundo, entre o exílio e o plenário do Senado, entre o ensaio e o decreto, ele viveu como quem ousa unir o sonho com o método.
Fernando Henrique não foi apenas um intelectual que atravessou a política. Foi um intelectual que a recriou. Sua pena, tão precisa quanto generosa, moldou conceitos. Mas foi sua presença na vida pública que moldou horizontes. Quando enfrentou o autoritarismo com argumentos e decência, não o fez por vaidade moral, mas por convicção histórica. E ao retornar do exílio, trouxe mais do que diplomas estrangeiros: trouxe a certeza de que era preciso lutar por um país que não calasse seus pensadores, nem torturasse seus filhos.
Homem das ideias e das instituições, nunca se escondeu atrás do academicismo estéril nem do populismo barulhento. Sua passagem pela Constituinte foi discreta e imensa. Sua atuação no Senado, digna de um parlamentar clássico. E sua chegada à Presidência, um gesto de maturidade da democracia brasileira. Mas talvez o momento mais eloquente de sua trajetória tenha sido aquele em que, ao fim de seu segundo mandato, recebeu nas mãos o resultado das urnas e entregou, sem hesitação, a faixa presidencial ao adversário eleito. Aquele gesto singelo, feito diante de todo o país, foi a mais elevada aula de civilidade que um governante pode oferecer.
Ali, na liturgia do poder sendo passada com respeito e grandeza, Fernando Henrique tornou-se símbolo do que é ser verdadeiramente republicano. Não foi apenas um gesto político. Foi uma epifania democrática. Mostrou que o poder, quando exercido com consciência histórica, não apequena os homens. Engrandece as instituições.
Mesmo diante das críticas, das controvérsias, das tempestades ideológicas, FHC jamais deixou de ser um homem da ponderação. Ensinou que o debate é o oxigênio da política. Que a escuta é mais forte que a retórica. Que a moderação é uma forma de bravura num tempo de extremos. E mesmo quando o país parecia se despedaçar em radicalismos histéricos, sua voz, sempre firme e sempre clara, permaneceu como um farol de lucidez em meio ao nevoeiro.
Não é à toa que o mundo o respeita. Que universidades de todos os cantos o acolhem como mestre. Que prêmios internacionais celebram não apenas sua trajetória política, mas sua contribuição intelectual para o entendimento das complexidades do nosso tempo. Mas para além dos auditórios e das medalhas, há algo mais precioso: sua obra viva. Seus textos, seus discursos, suas ideias, ainda hoje, são pulsantes, desafiadoras, generosas.
Hoje, já não precisa dizer nada. Sua própria existência é um argumento. Sua serenidade é um manifesto. Sua biografia é uma carta de amor à democracia. Ele é desses raros homens que se tornam, ainda em vida, monumentos não de pedra, mas de pensamento. Um monumento que caminha, que lê, que escreve, que pensa o Brasil com paixão crítica e delicadeza republicana.
Celebrar Fernando Henrique Cardoso não é celebrar um nome. É celebrar uma ética. É lembrar que é possível fazer política com ideias, sem gritos. Que é possível ser sociólogo sem abandonar o povo. Que é possível ocupar o poder sem se desfigurar. Que é possível, sobretudo, viver a vida pública com elegância, com ternura, com firmeza e com afeto.
FHC é um desses homens que constroem, com as palavras e os gestos, a memória de um país. Ele não precisou berrar para ser ouvido. Não precisou se exibir para ser reconhecido. Fez do silêncio uma forma de respeito. Da gentileza, uma força moral. Do saber, uma forma de servir.
A ele, como brasileiro, como sociólogo, como
alguém que acredita que a política é, no fundo, uma forma de cuidar dos outros,
deixo minha reverência. E que essa reverência não seja a última página, mas um
convite à leitura. Leiam FHC. Ouçam-no. Aprendam com ele. Porque o Brasil
precisa, mais do que nunca, de gente que pense com profundidade e que aja com
integridade. De gente como Fernando Henrique Cardoso, esse mestre das horas
públicas, esse construtor de pontes, esse artesão da democracia.
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