domingo, 22 de junho de 2025

Cinzas – Dorrit Harazim

O Globo

Enquanto for liderado por um narcisista como Netanyahu, país continuará sua insana marcha de afirmação pela força

Dias atrás, com Israel espremido entre a glorificação de sua soberania militar e a angústia de viver em nova frente de guerra, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu tentou uma abordagem churchilliana para falar à nação. O pronunciamento se pretendeu solene. Teve como pano de fundo o hospital Soroka de Beersheva, atingido pouco antes por um míssil iraniano que causou ferimentos e danos.

— Isso evoca o povo britânico durante a blitz — proclamou “Bibi”, referindo-se à chuva de bombas nazistas sobre o Reino Unido na Segunda Guerra.

Pediu sacrifícios. Para não variar, isso resulta em desastre. Desde o 13 de maio de 1940, todo líder de guerra que fala em sacrifícios se sente rugindo como o leão Winston Churchill na Câmara dos Comuns:

— Não tenho nada a oferecer senão sangue, trabalho, lágrimas e suor...

O que ofereceu Netanyahu ao país que governa há 17 anos? Um sacrifício familiar que julgou à altura do momento histórico:

— Cada um de nós carrega um custo pessoal, e nossa família não é exceção. Esta é a segunda vez que o casamento de meu filho Avner foi cancelado por ameaças de mísseis. O custo pessoal para sua noiva também é grande.

Para piorar o que já era péssimo, ele ainda ressaltou o heroísmo da noiva, Ruth, por carregar o fardo do adiamento nupcial.

Tamanha insensibilidade deixou em choque os familiares dos reféns ainda em mãos do Hamas. Inutilmente indignados também ficaram os ruidosos opositores do governo. Tudo em vão. Enquanto o país for liderado por um narcisista sem freios como Netanyahu, Israel continuará sua insana marcha de afirmação pela força.

A marcha é insana porque, como escreveu o historiador israelense Amit Varshizky em ensaio de 2024, “uma sociedade tão indiferente à morte e à destruição já perdeu a guerra”. O acadêmico, que pesquisa nazismo e antissemitismo na universidade alemã de Iena, analisa a perda de compasso moral da sociedade israelense. Uma parcela dessa erosão Israel traz do nascedouro. O país fundado sobre o trauma histórico do Holocausto, que se viu compelido a lutar pela existência desde o primeiro dia, se transformou numa entidade espartana que santifica a força, argumenta Varshizky. A política sempre girou em torno de um único princípio central: a segurança. Seus sucessivos governos foram eleitos e derrubados com base no sentimento de segurança que conseguiam incutir à população. O compasso moral foi se perdendo quando a força por instinto de sobrevivência passou a princípio definidor da sociedade.

— A catástrofe já aconteceu — sustenta Varshizky, apontando especificamente para a desumanização de Gaza. — A questão agora é saber como Israel se erguerá das cinzas.

Ultimamente as cinzas parecem se acumular. Foi pelas telas do extremista Canal 14, cuja notoriedade cresceu a partir do ataque terrorista de 7 de outubro de 2023, que o radialista Elad Barashi postou incendiária arenga nas redes sociais, semanas atrás:

— Gaza merece morrer. Merecem a morte. Homens, mulheres e crianças, de todas as formas possíveis. Devemos simplesmente executar um Holocausto neles. Sim, podem ler de novo, H-O-L-O-C-A-U-S-T-O. Se depender de mim, câmaras de gás. Trens da morte. E quaisquer outras formas de morte cruel. Sem medo nem hesitação. Sem problemas de consciência nem misericórdia.

Pois é de misericórdia e problemas de consciência que Israel mais necessita no momento — armas, inclusive nucleares, e resiliência o país já tem de sobra. Coube ao jornalista Etan Nechin, correspondente em Nova York do diário israelense Haaretz, fazer um relato contundente de recente viagem com o filho ao país natal. Observou uma sociedade que vive uma fantasia:

— Donald Trump trará os reféns de volta, o Irã entrará em colapso, os palestinos de Gaza sumirão, despachados para Somália ou Finlândia. Alguma coisa acontecerá. Qualquer coisa, exceto olharmos para dentro de nós mesmos.

Pelo seu relato, os israelenses vivem em estado de gangorra maníaco-depressiva: ora estão como que afundados nos túneis que aprisionam os reféns ainda vivos, ora tagarelam, eufóricos, com a mais recente salva de mísseis certeiros no Irã.

— Os dias se arrastam — escreve Nechin. — Vão de uma passeata à próxima, de um refém a outro, um soldado israelense morto, mais quatro, um cessar-fogo começa e acaba, delegações de negociadores chegam e partem de Doha, mísseis são disparados. Nada muda. Talvez sejamos salvos de novo pelo Domo de Ferro.

Mas será uma vitória que terá gosto de colapso. Colapso de uma sociedade que deixou de acreditar em sua capacidade de se consertar por dentro.

 

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