Blog Boitempo, Publicado em 16/06/2025
Em importante artigo publicado na London Review of Books (vol. 47, 03 de abril de 2025), intitulado “Regime Change in the West?” [Mudança de regime no Ocidente?], o historiador e ensaísta Perry Anderson, membro do comitê editorial da prestigiada revista inglesa de esquerda New Left Review, propõe uma análise sobre quais as condições do Ocidente erigir uma nova ordem econômica, política e social em alternativa ao neoliberalismo. Combinando abordagem de longa duração com história intelectual e averiguação da conjuntura, Anderson sugere que diante do quadro indisputável da atual predominância das forças da direita ultraliberal, o campo alargado de esquerda tem de não mais enfrentar o conjunto das ideias e práticas hayekianas na perspectiva de apresentar uma teorização coerente e desenvolvida, bem como ações políticas que suplantem definitivamente o regime internacional de livre mercado que vigora desde 1980. Em seu entendimento, a melhor atuação para a esquerda é não aguardar até que “ideias políticas e econômicas comparáveis aos paradigmas keynesiano ou hayekiano” se formem para propor opções a uma alteração considerável ao “modo de produção existente”. “Não necessariamente” isso ocorrerá — nem se pode aguardá-lo — no nosso momento imediato de enfrentamento ao regime neoliberal. O que então Perry Anderson prenuncia? E quais são seus argumentos?
Partindo de uma narrativa com enquadramento
histórico durável, Anderson elabora os momentos no século XX em que o Ocidente
se viu diante de mais de uma solução para os problemas econômicos e políticos
que surgiam. A circunstância histórica de maior relevo foi a crise de 1929.
Durante a “grande depressão”, não só havia “governos conservadores […] nos
Estados Unidos, França e Suécia” como “havia também, sociais-democratas na
Alemanha e na Inglaterra”. Além disso, a sabedoria contida em A teoria
geral do emprego, dos juros e da moeda, de Keynes, “ainda que não tenha tido
impacto até 1936”, já circulava em ambientes acadêmicos, intelectuais e
governos. Após a Segunda Guerra Mundial, entretanto, as ideias keynesianas
auxiliaram na consolidação de instrumentos heterodoxos de combate a crise.
“Padrão ouro, medidas monetárias anticíclicas, políticas de intervenção fiscal
e sistemas oficiais do Estado do Bem-Estar Social”, responderam aos anseios do
mundo Ocidental com a derrota do nazismo.
Contudo, “após 25 anos de sucesso, houve uma
degeneração do regime” defendido por Lord Keynes; “a estagflação” propiciou as
condições para reformar o sistema econômico a partir dos anos 1980. A definição
de Anderson do que ficou conhecido por neoliberalismo é sem dúvida a mais
consistente que a esquerda possui. Apoiado nos neoclássicos austríacos (Hayek e
Mises), o regime econômico e político vigente há quase 50 anos, que objetiva a
recuperação das taxas de lucro dos 30 anos gloriosos, se caracteriza por: 1)
“aumento da riqueza” das elites mundiais, o que quer dizer um sistemático
empobrecimento (desemprego, diminuição de salários e perda de direitos sociais)
dos trabalhadores a nível mundial; 2) oligarquização para que isso fosse
realizado, ou seja, os componentes de soberania popular das democracias
ocidentais foram consideravelmente restringidos; e 3) liberalização absoluta da
economia, as transações no livre mercado tiveram que ser “tão desreguladas
quanto possíveis”. A este “núcleo de princípios” e práticas, Margareth Thatcher
anunciava não haver adversário; o acrônimo feminino TINA [There Is No
Alternative] passava então a vigorar no Ocidente.
No balanço que oferece, Anderson ainda
sustenta que a ausência de “qualquer movimento político significativo” que
reivindicasse a transformação radical do capitalismo financeirizado refletia o
desaparecimento das duas variantes históricas do socialismo. A variante
revolucionária, mesmo que somente na aparência, diz ele, colapsou com a
“desintegração da União Soviética em si”; e a variante reformista “dos partidos
social-democratas extinguiu qualquer traço de resistência aos imperativos do
capital”.
Em 2008 o reinado de mais de um quarto de
século da TINA parecia ter chegado ao fim. Não foi o que ocorreu para Anderson.
A ordem política e econômica internacional surgida em 1980 na esteira dos
impasses do welfare-State foi recuperada sob a administração Obama e
a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário
Internacional): “bancos e companhias de seguro fraudulentas, corporações de
automóveis falidas receberam infusões de fundos públicos nunca disponíveis para
cuidados de saúde descentes, escolas, pensões e transporte”. A disciplina
orçamentária, defendida com paixão por Hayek, era ignorada — “estímulos fiscais
massivos” agora compunham a agenda neoliberal.
Na sequência, sem estabelecer distinções de
conteúdo relevantes, o que era de se esperar de um historiador de esquerda,
marxista, Perry Anderson analisa as duas revoltas populistas contra as
modalidades de resgate ao sistema financeiro que se seguiram a 2008 (já
expostas acima). “Se nós olharmos para as revoltas populistas contra o
neoliberalismo, elas rigorosamente se dividem, como todos sabem, em movimentos
de direita e de esquerda”. Em consonância com o teor do artigo, ele identifica
que nenhum dos populismos conseguiu até agora um programa consistente em escala
que consiga enfrentar as ideias hayekianas. Tanto na dimensão teórica como na
esfera prática, a direita e a esquerda populistas são balizadas “por aquilo que
são contra, mais do que pelo que estão” apresentando enquanto propostas. O
estilo do artigo é sóbrio analiticamente, com exposições equilibradas acerca do
panorama político mundial. Contudo, isso custou a Anderson ler o populismo de
direita (Trump, Bolsonaro, Boris Johson, Giorgia Meloni) em equivalência ao de
esquerda (Syriza, Movimento 5 Estrelas, Podemos, França Insubmissa) diante dos
desafios impostos pelo tempo atual. Não é algo de menor importância, e não
porque se trata de defender ingenuamente a esquerda. Ocorre que ao proceder
dessa maneira resta o entendimento de que o populismo de direita é uma opção
política antineoliberal para os de baixo, o que definitivamente não é, sendo
ainda pouco provável que se torne em qualquer momento do futuro. Anderson,
aqui, sem perder a seriedade realista no trato da situação histórica, política
e econômica de média duração, poderia marcar diferenças substantivas (teóricas,
estratégicas, táticas, de composição e interação social) entre as objeções
populistas à TINA — mas lamentavelmente não o fez. Preferiu comentar as
respostas formais da direita e da esquerda aos três problemas originados pelas
orientações thatcheristas de 1980, que são: a desigualdade, a oligarquia e a
mobilidade de fronteira. Por outras palavras, os princípios (os dois primeiros,
sobretudo) que constituem a essência do neoliberalismo.
Assim, “existem três objetivos centrais nas
insurgências populistas. Tais insurgências são divididas sobre o peso que cada
[populismo] atribui em seu ataque” à desigualdade, ao sistema político
oligarquizado e as formas de mobilidade interconectadas, essa surgida na última
década.
Avaliando apenas os moldes da atuação da
direita e da esquerda, sem dar a devida atenção aos conteúdos, Anderson afirma
que uma e outra respondem com relativa similaridade à desigualdade estrutural e
à restrição da soberania popular, mas não ao problema da mobilidade de
fronteira — “populismos de direita e de esquerda podem, em diferentes maneiras,
atacar mais ou menos os dois primeiros com vigor igualmente desinibido, mas
somente a direita pode censurar o terceiro com maior veemência e xenofobia na
direção dos imigrantes”. As forças conservadoras, portanto, têm vantagem sobre
a esquerda ao manejar as reações racistas contra a imigração, em particular
frente ao “setor mais vulnerável da população”.
No entanto, mesmo com a diferença diante do
problema da imigração, teórica e politicamente, os adversários “do
neoliberalismo estão ainda” em sua maior parte “dançando no escuro”.
Categórico, Anderson constrói um conjunto de questões que não são respondidas
nem pela direita populista, e menos ainda pela esquerda populista:
“Como a desigualdade deve ser enfrentada —
não apenas consertada — de forma séria, sem imediatamente provocar uma greve de
capital? Quais medidas podem ser previstas para enfrentar o inimigo, golpe por
golpe, naquele terreno contestado e se sair vitorioso? Que tipo de
reconstrução, agora inevitavelmente radical, da democracia liberal realmente
existente seria necessária para pôr fim às oligarquias que ela mesmo gerou?
Como o Estado profundo, organizado em todos os países ocidentais para a guerra
imperial — clandestina ou aberta — deve ser desmantelado? Que reconversão da
economia para combater as mudanças climáticas, sem empobrecer sociedades já
pobres em outros continentes, é imaginada?”
A situação histórica de enfrentamento ao
programa econômico forjado pelo autor de O caminho da servidão é
decepcionante para Anderson. “Medicare para todos nos EUA, rendas
garantidas para cidadãos na Itália, bancos públicos de investimento na
Grã-Bretanha, impostos Tobin na França e coisas do tipo” — nenhuma dessas
propostas mostra-se à altura de erigir uma alternativa abrangente de mudança da
ordem imposta pelo capital nos últimos 40 anos. Para a esquerda, a análise de
Anderson é mais cáustica e intransigente: a contração intelectual, o recuo
político e a esterilidade de ideias fizeram com que o pensamento crítico
original fosse lançado para “as margens das correntes [políticas]
dominantes”.
Nesse cenário, qual o regime econômico e
político que poderia substituir o neoliberalismo? Ora, não sendo factível na
conjuntura qualquer teoria e prática coerentes que busquem a mudança no modo de
produção existente, Anderson sugere refletir sobre duas possibilidades além das
áreas dominantes do capitalismo desenvolvido que se formaram ao longo da
história no Ocidente, mas que se soergueram no interior do regime do capital.
“Fora das zonas centrais do capitalismo, pelo menos duas alterações de grande importância
ocorreram sem que nenhuma doutrina sistemática as imaginasse ou a propusesse
antecipadamente”. Surpreendentemente, as transformações da era Vargas no Brasil
— a substituição de importações que nasceu com o bloqueio, dada a recessão
mundial nos anos 1930, das exportações de café — e as reformas presididas por
Deng Xiaoping na China — um espetacular crescimento econômico sustentado —
aparecem como exequíveis. Anderson admite que “são exóticos demais para ter
qualquer relação com o coração do capitalismo avançado”, e acrescento, também
para o capitalismo contemporâneo das zonas não-centrais, como o brasileiro e
latino-americano.
No prefácio de Espectro:
da direita à esquerda no mundo das ideias (Boitempo, 2012), Anderson
propunha que a esquerda assumisse sua derrota histórica, pois essa seria uma
das formas de se reconstruir sem ilusões. E em “Renovações” (o editorial que
escreveu no relançamento de sua revista, em 2000) aconselhava a esquerda a
seguir Marx, observando e avaliando as contradições do sistema capitalista
mundial; daí poderiam emergir crises que, eventualmente, abririam brechas para
que os descontentes com o regime neoliberal se rebelassem. Foram dois de seus
acertos de interpretação nas últimas décadas.
Agora, Anderson parece indicar, de certa
maneira, soluções provisórias “no terreno” da ordem econômica em vigência, mas
que consigam impactar a confiança do regime internacional de acumulação
presente, na medida em que não vê no horizonte a esperança de uma teoria e de
uma prática de esquerda coesa, extensa e radical o suficiente para enfrentar a
TINA e o programa elaborado pela mente mais brilhante do mainstream,
Friedrich von Hayek: “Se a descrença de que alguma alternativa seja possível
desaparecer no Ocidente, a probabilidade é que algo comparável [ao varguismo e
à estratégia de Deng Xiaoping] seja a ocasião [e o motivador] disso”.
Quando escreveu sobre John Rawls, ao recusar
seu pensamento normativo, Perry Anderson sustentava que na passagem de Uma
teoria da justiça para o Liberalismo político houve uma
amputação dos aspectos mais contundentes da crítica do filósofo político de
Harvard às instituições sociais injustas; definitivamente, a esquerda
contemporânea, que há anos busca sua reconstrução, não necessita que o
principal herdeiro da tradição do marxismo e do socialismo clássicos, um dos
lendários editores da New Left Review ao lado de Stuart Hall, ofereça
por agora também uma amputação do conjunto de sua obra intelectual. Esperamos
que seja apenas uma fratura em condições de se calcificar novamente, e que ele
possa anunciar, como fez no ensaio “Ideias e ação política na mudança
histórica”, que “ideias que não consigam chocar o mundo não serão capazes de o
sacudir” e transformar. E modelos como o desenvolvimentismo de Vargas e a
restauração sustentada chinesa de Deng Xiaoping não parecem serem essas ideias:
a esquerda pode e deve mais do que isso.
***
*Ronaldo Tadeu de Souza é pós-doutor pelo Departamento de Ciência Política
da USP, pesquisador do Cedec, membro do Comite Editorial do Dicionário
Marxista das Américas e do Conselho Editorial da Práxis Literária.
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