domingo, 22 de junho de 2025

Outro regime no Ocidente é possível? Crítica a Perry Anderson - Ronaldo Tadeu de Souza*

Blog Boitempo, Publicado em 16/06/2025 

Em importante artigo publicado na London Review of Books (vol. 47, 03 de abril de 2025), intitulado “Regime Change in the West?” [Mudança de regime no Ocidente?], o historiador e ensaísta Perry Anderson, membro do comitê editorial da prestigiada revista inglesa de esquerda New Left Review, propõe uma análise sobre quais as condições do Ocidente erigir uma nova ordem econômica, política e social em alternativa ao neoliberalismo. Combinando abordagem de longa duração com história intelectual e averiguação da conjuntura, Anderson sugere que diante do quadro indisputável da atual predominância das forças da direita ultraliberal, o campo alargado de esquerda tem de não mais enfrentar o conjunto das ideias e práticas hayekianas na perspectiva de apresentar uma teorização coerente e desenvolvida, bem como ações políticas que suplantem definitivamente o regime internacional de livre mercado que vigora desde 1980. Em seu entendimento, a melhor atuação para a esquerda é não aguardar até que “ideias políticas e econômicas comparáveis aos paradigmas keynesiano ou hayekiano” se formem para propor opções a uma alteração considerável ao “modo de produção existente”. “Não necessariamente” isso ocorrerá — nem se pode aguardá-lo — no nosso momento imediato de enfrentamento ao regime neoliberal. O que então Perry Anderson prenuncia? E quais são seus argumentos? 

Partindo de uma narrativa com enquadramento histórico durável, Anderson elabora os momentos no século XX em que o Ocidente se viu diante de mais de uma solução para os problemas econômicos e políticos que surgiam. A circunstância histórica de maior relevo foi a crise de 1929. Durante a “grande depressão”, não só havia “governos conservadores […] nos Estados Unidos, França e Suécia” como “havia também, sociais-democratas na Alemanha e na Inglaterra”. Além disso, a sabedoria contida em A teoria geral do emprego, dos juros e da moeda, de Keynes, “ainda que não tenha tido impacto até 1936”, já circulava em ambientes acadêmicos, intelectuais e governos. Após a Segunda Guerra Mundial, entretanto, as ideias keynesianas auxiliaram na consolidação de instrumentos heterodoxos de combate a crise. “Padrão ouro, medidas monetárias anticíclicas, políticas de intervenção fiscal e sistemas oficiais do Estado do Bem-Estar Social”, responderam aos anseios do mundo Ocidental com a derrota do nazismo.  

Contudo, “após 25 anos de sucesso, houve uma degeneração do regime” defendido por Lord Keynes; “a estagflação” propiciou as condições para reformar o sistema econômico a partir dos anos 1980. A definição de Anderson do que ficou conhecido por neoliberalismo é sem dúvida a mais consistente que a esquerda possui. Apoiado nos neoclássicos austríacos (Hayek e Mises), o regime econômico e político vigente há quase 50 anos, que objetiva a recuperação das taxas de lucro dos 30 anos gloriosos, se caracteriza por: 1) “aumento da riqueza” das elites mundiais, o que quer dizer um sistemático empobrecimento (desemprego, diminuição de salários e perda de direitos sociais) dos trabalhadores a nível mundial; 2) oligarquização para que isso fosse realizado, ou seja, os componentes de soberania popular das democracias ocidentais foram consideravelmente restringidos; e 3) liberalização absoluta da economia, as transações no livre mercado tiveram que ser “tão desreguladas quanto possíveis”. A este “núcleo de princípios” e práticas, Margareth Thatcher anunciava não haver adversário; o acrônimo feminino TINA [There Is No Alternative] passava então a vigorar no Ocidente.  

No balanço que oferece, Anderson ainda sustenta que a ausência de “qualquer movimento político significativo” que reivindicasse a transformação radical do capitalismo financeirizado refletia o desaparecimento das duas variantes históricas do socialismo. A variante revolucionária, mesmo que somente na aparência, diz ele, colapsou com a “desintegração da União Soviética em si”; e a variante reformista “dos partidos social-democratas extinguiu qualquer traço de resistência aos imperativos do capital”. 

Em 2008 o reinado de mais de um quarto de século da TINA parecia ter chegado ao fim. Não foi o que ocorreu para Anderson. A ordem política e econômica internacional surgida em 1980 na esteira dos impasses do welfare-State foi recuperada sob a administração Obama e a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional): “bancos e companhias de seguro fraudulentas, corporações de automóveis falidas receberam infusões de fundos públicos nunca disponíveis para cuidados de saúde descentes, escolas, pensões e transporte”. A disciplina orçamentária, defendida com paixão por Hayek, era ignorada — “estímulos fiscais massivos” agora compunham a agenda neoliberal.  

Na sequência, sem estabelecer distinções de conteúdo relevantes, o que era de se esperar de um historiador de esquerda, marxista, Perry Anderson analisa as duas revoltas populistas contra as modalidades de resgate ao sistema financeiro que se seguiram a 2008 (já expostas acima). “Se nós olharmos para as revoltas populistas contra o neoliberalismo, elas rigorosamente se dividem, como todos sabem, em movimentos de direita e de esquerda”. Em consonância com o teor do artigo, ele identifica que nenhum dos populismos conseguiu até agora um programa consistente em escala que consiga enfrentar as ideias hayekianas. Tanto na dimensão teórica como na esfera prática, a direita e a esquerda populistas são balizadas “por aquilo que são contra, mais do que pelo que estão” apresentando enquanto propostas. O estilo do artigo é sóbrio analiticamente, com exposições equilibradas acerca do panorama político mundial. Contudo, isso custou a Anderson ler o populismo de direita (Trump, Bolsonaro, Boris Johson, Giorgia Meloni) em equivalência ao de esquerda (Syriza, Movimento 5 Estrelas, Podemos, França Insubmissa) diante dos desafios impostos pelo tempo atual. Não é algo de menor importância, e não porque se trata de defender ingenuamente a esquerda. Ocorre que ao proceder dessa maneira resta o entendimento de que o populismo de direita é uma opção política antineoliberal para os de baixo, o que definitivamente não é, sendo ainda pouco provável que se torne em qualquer momento do futuro. Anderson, aqui, sem perder a seriedade realista no trato da situação histórica, política e econômica de média duração, poderia marcar diferenças substantivas (teóricas, estratégicas, táticas, de composição e interação social) entre as objeções populistas à TINA — mas lamentavelmente não o fez. Preferiu comentar as respostas formais da direita e da esquerda aos três problemas originados pelas orientações thatcheristas de 1980, que são: a desigualdade, a oligarquia e a mobilidade de fronteira. Por outras palavras, os princípios (os dois primeiros, sobretudo) que constituem a essência do neoliberalismo.

Assim, “existem três objetivos centrais nas insurgências populistas. Tais insurgências são divididas sobre o peso que cada [populismo] atribui em seu ataque” à desigualdade, ao sistema político oligarquizado e as formas de mobilidade interconectadas, essa surgida na última década.  

Avaliando apenas os moldes da atuação da direita e da esquerda, sem dar a devida atenção aos conteúdos, Anderson afirma que uma e outra respondem com relativa similaridade à desigualdade estrutural e à restrição da soberania popular, mas não ao problema da mobilidade de fronteira — “populismos de direita e de esquerda podem, em diferentes maneiras, atacar mais ou menos os dois primeiros com vigor igualmente desinibido, mas somente a direita pode censurar o terceiro com maior veemência e xenofobia na direção dos imigrantes”. As forças conservadoras, portanto, têm vantagem sobre a esquerda ao manejar as reações racistas contra a imigração, em particular frente ao “setor mais vulnerável da população”.

No entanto, mesmo com a diferença diante do problema da imigração, teórica e politicamente, os adversários “do neoliberalismo estão ainda” em sua maior parte “dançando no escuro”. Categórico, Anderson constrói um conjunto de questões que não são respondidas nem pela direita populista, e menos ainda pela esquerda populista:

“Como a desigualdade deve ser enfrentada — não apenas consertada — de forma séria, sem imediatamente provocar uma greve de capital? Quais medidas podem ser previstas para enfrentar o inimigo, golpe por golpe, naquele terreno contestado e se sair vitorioso? Que tipo de reconstrução, agora inevitavelmente radical, da democracia liberal realmente existente seria necessária para pôr fim às oligarquias que ela mesmo gerou? Como o Estado profundo, organizado em todos os países ocidentais para a guerra imperial — clandestina ou aberta — deve ser desmantelado? Que reconversão da economia para combater as mudanças climáticas, sem empobrecer sociedades já pobres em outros continentes, é imaginada?”

A situação histórica de enfrentamento ao programa econômico forjado pelo autor de O caminho da servidão é decepcionante para Anderson. “Medicare para todos nos EUA, rendas garantidas para cidadãos na Itália, bancos públicos de investimento na Grã-Bretanha, impostos Tobin na França e coisas do tipo” — nenhuma dessas propostas mostra-se à altura de erigir uma alternativa abrangente de mudança da ordem imposta pelo capital nos últimos 40 anos. Para a esquerda, a análise de Anderson é mais cáustica e intransigente: a contração intelectual, o recuo político e a esterilidade de ideias fizeram com que o pensamento crítico original fosse lançado para “as margens das correntes [políticas] dominantes”. 

Nesse cenário, qual o regime econômico e político que poderia substituir o neoliberalismo? Ora, não sendo factível na conjuntura qualquer teoria e prática coerentes que busquem a mudança no modo de produção existente, Anderson sugere refletir sobre duas possibilidades além das áreas dominantes do capitalismo desenvolvido que se formaram ao longo da história no Ocidente, mas que se soergueram no interior do regime do capital. “Fora das zonas centrais do capitalismo, pelo menos duas alterações de grande importância ocorreram sem que nenhuma doutrina sistemática as imaginasse ou a propusesse antecipadamente”. Surpreendentemente, as transformações da era Vargas no Brasil — a substituição de importações que nasceu com o bloqueio, dada a recessão mundial nos anos 1930, das exportações de café — e as reformas presididas por Deng Xiaoping na China — um espetacular crescimento econômico sustentado — aparecem como exequíveis. Anderson admite que “são exóticos demais para ter qualquer relação com o coração do capitalismo avançado”, e acrescento, também para o capitalismo contemporâneo das zonas não-centrais, como o brasileiro e latino-americano.  

No prefácio de Espectro: da direita à esquerda no mundo das ideias (Boitempo, 2012), Anderson propunha que a esquerda assumisse sua derrota histórica, pois essa seria uma das formas de se reconstruir sem ilusões. E em “Renovações” (o editorial que escreveu no relançamento de sua revista, em 2000) aconselhava a esquerda a seguir Marx, observando e avaliando as contradições do sistema capitalista mundial; daí poderiam emergir crises que, eventualmente, abririam brechas para que os descontentes com o regime neoliberal se rebelassem. Foram dois de seus acertos de interpretação nas últimas décadas.  

Agora, Anderson parece indicar, de certa maneira, soluções provisórias “no terreno” da ordem econômica em vigência, mas que consigam impactar a confiança do regime internacional de acumulação presente, na medida em que não vê no horizonte a esperança de uma teoria e de uma prática de esquerda coesa, extensa e radical o suficiente para enfrentar a TINA e o programa elaborado pela mente mais brilhante do mainstream, Friedrich von Hayek: “Se a descrença de que alguma alternativa seja possível desaparecer no Ocidente, a probabilidade é que algo comparável [ao varguismo e à estratégia de Deng Xiaoping] seja a ocasião [e o motivador] disso”.

Quando escreveu sobre John Rawls, ao recusar seu pensamento normativo, Perry Anderson sustentava que na passagem de Uma teoria da justiça para o Liberalismo político houve uma amputação dos aspectos mais contundentes da crítica do filósofo político de Harvard às instituições sociais injustas; definitivamente, a esquerda contemporânea, que há anos busca sua reconstrução, não necessita que o principal herdeiro da tradição do marxismo e do socialismo clássicos, um dos lendários editores da New Left Review ao lado de Stuart Hall, ofereça por agora também uma amputação do conjunto de sua obra intelectual. Esperamos que seja apenas uma fratura em condições de se calcificar novamente, e que ele possa anunciar, como fez no ensaio “Ideias e ação política na mudança histórica”, que “ideias que não consigam chocar o mundo não serão capazes de o sacudir” e transformar. E modelos como o desenvolvimentismo de Vargas e a restauração sustentada chinesa de Deng Xiaoping não parecem serem essas ideias: a esquerda pode e deve mais do que isso.

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*Ronaldo Tadeu de Souza é pós-doutor pelo Departamento de Ciência Política da USP, pesquisador do Cedec, membro do Comite Editorial do Dicionário Marxista das Américas e do Conselho Editorial da Práxis Literária. 

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