sábado, 4 de outubro de 2008

Democrática e progressista


Dalmo de Abreu Dallari
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

VINTE ANOS de estabilidade política e econômica e avanços significativos no sentido da democratização da sociedade e da correção das injustiças sociais: essa é a realidade brasileira de hoje, e esse balanço positivo é devido, em grande parte, à Constituição de 1988.

Com efeito, graças aos princípios e normas que ela consagrou e aos instrumentos de ação política e jurídica nela estabelecidos é que tem sido assegurada, sem esforço, a continuidade da ordem constitucional democraticamente estabelecida no Brasil.

A par disso, vem crescendo continuamente a influência da Constituição na sociedade brasileira. Mudando seu tradicional ceticismo, as pessoas estão acreditando que têm direitos e que vale a pena lutar por eles.

Para a correta avaliação da Constituição e dos resultados obtidos a partir de sua vigência, é importante lembrar, antes de tudo, que ela foi o resultado de intensa mobilização social em favor da dignidade da pessoa humana.

A partir das reações contra as violências praticadas pela ditadura militar, alguns pontos foram ficando claros, e o potencial cívico adormecido do povo brasileiro foi sendo despertado.

Com efeito, ficou evidente a associação do uso da força com o objetivo de preservação de privilégios tradicionais, pois as vítimas das violências eram, em sua grande maioria, pessoas e organizações que propunham mudanças na ordem social, política e econômica brasileira visando a eliminação de injustiças tradicionais.

Assim surgiu a idéia de eliminar a ditadura e, concomitantemente, estabelecer uma ordem social mais justa por meio de uma Constituinte.

Um dado histórico de fundamental importância é que o povo continuou mobilizado mesmo depois de instalada a Constituinte, apresentando propostas e buscando contrabalançar o peso dos oligarcas ali presentes.

O resultado disso tudo foi a Constituição de 1988, que é, sem nenhuma dúvida, a mais democrática de todas as que o Brasil já teve, tanto pela participação do povo quanto por seu conteúdo, pois nela estão consagrados não só os tradicionais direitos individuais, mas também os direitos econômicos, sociais e culturais.

Esse é, aliás, um dos pontos indicados pelos adversários da Constituição -geralmente pessoas apegadas aos antigos privilégios- como utópicos e fora da realidade.

Desmentindo essa crítica, basta olhar para a realidade brasileira de hoje para verificar que não só aumentou consideravelmente a porcentagem de brasileiros com acesso a direitos como educação e saúde, como tem aumentado a exigência de efetivação desses direitos por meio de ações judiciais ou de manifestações de organizações sociais. Isso demonstra que o povo passou a acreditar que tem direitos e começou a lutar por eles.

Quanto aos defeitos da Constituição, é importante assinalar que algumas das alegadas imperfeições são assim qualificadas por incompreensão ou por se referirem a pontos que os saudosos dos antigos privilégios consideram negativos.

O que importa é que a Constituição de 1988 é, efetivamente, na sua essência, a expressão da vontade do povo. É claro que alguns aperfeiçoamentos são necessários, como a modificação do processo eleitoral, para dar mais autenticidade à representação e impedir práticas de corrupção.

A par disso, há ainda um longo caminho a ser percorrido para eliminar injustiças gritantes, como a existência de crianças e jovens vítimas de pobreza, vivendo à margem da sociedade. Há, também, a necessidade de eliminar vícios tradicionais que são causas de desigualdade regional e social.

Mas a conclusão, pelos dados divulgados pela imprensa, assim como pelo que se verifica facilmente em grande parte do Brasil em termos de redução das discriminações e marginalizações, é que há bons motivos para comemoração, pois a Constituição foi um passo de grande importância no sentido de assegurar a existência de uma ordem baseada no direito, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana e prevendo os meios para que, por vias pacíficas, as pessoas de boa vontade lutem para que os direitos fundamentais sejam direitos de todos, e não privilégios de alguns.

DALMO DE ABREU DALLARI, 76, é professor emérito da Faculdade de Direito da USP. Foi secretário de Negócios Jurídicos do município de São Paulo (gestão Erundina).

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