Almir Pazzianotto Pinto
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Deixe-se a hipocrisia de lado para admitir que o rompimento antecipado de contratos é prática comum no universo dos negócios jurídicos. O ideal seria que findassem de morte natural, com o encerramento do prazo de vigência ou a conclusão da obra contratada. O desejável, porém, nem sempre acontece. Casos de rescisão prematura são comuns nas construções de imóveis, em compras e vendas de veículos, entre locadores e locatários, no meio futebolístico e até no matrimônio, considerado sacramento pela Igreja Católica, mas tratado na lei civil como modalidade singular de contrato.
O contrato de trabalho pertence à esfera dos negócios jurídicos vinculados ao direito privado. Ao regulamentá-lo, entretanto, o legislador observou que empregadores e empregados não se encontram em posição de equilíbrio e igualdade. É por isso que a legislação social assegura numeroso rol de garantias aos assalariados, como salário mínimo, limitação da jornada, descanso semanal, férias anuais e 13º terceiro salário. Normas específicas, por sua vez, acentuam a proteção devida à mulher, à maternidade, ao menor, à saúde e à segurança. Entre as garantias constitucionais ganham destaque o direito de greve e a liberdade de organização sindical, embora esta se encontre subordinada ao modelo corporativo fascista, copiado pela Carta de 1937.
Em períodos de recessão, quando os mercados ficam debilitados e as empresas passam a experimentar repetidas perdas de receitas, uma das perguntas que se fazem é sobre o destino da força de trabalho. A resposta habitual, não obstante amarga, tem consistido no rompimento unilateral de contratos, recorrendo-se às demissões coletivas.
A legislação autoriza a demitir. A estabilidade no emprego é garantia prevista, mas em caráter excepcional e por tempo limitado, como se dá com a gestante, com o acidentado, com o dirigente sindical. A regra geral está lançada no artigo 7º, I, da Constituição federal, cuja combinação com o artigo 10, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, legitima a rescisão sem justa causa mediante indenização compensatória.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no texto original, assegurava estabilidade àquele que completasse dez anos de serviços efetivos na mesma empresa. Para este a demissão só seria aceita na rara hipótese de força maior ou pela prática de falta muito grave, apurada em inquérito judicial.
A longa experiência com a estabilidade não surtiu bons resultados. Para substituí-la criou-se o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), instituído pela Lei nº 5.107, de 1967. A primeira reação do movimento sindical foi forte, mas de curta duração, como relatou o falecido senador baiano Luiz Viana Filho no livro O Governo Castelo Branco. Com o tempo os aspectos positivos do FGTS se sobressaíram e o moderno instituto passou a ser encarado como conquista dos trabalhadores, vindo a ser incluído no elenco dos direitos constitucionais em 1988.
A crise que o Brasil atravessa, como reflexo da débâcle da economia mundial, recoloca em pauta o problema das dispensas. Nas últimas semanas repetiram-se, de forma assustadora, informações sobre desligamentos coletivos, já consumados ou apenas programados, em todos os países industrializados. Entre nós, foram ensaiadas algumas tentativas de negociação entre associações patronais e centrais sindicais, logo interrompidas por insuperáveis divergências de pontos de vista.
O governo bem que tentou subestimar a gravidade da recessão. De início procurou nos convencer de que não passava de reles "marola", incapaz de realizar a "travessia" do Oceano Atlântico. Pressionado pelos fatos, passou a cogitar de ações preventivas, na forma de financiamento aos empresários. Alimentou infundadas esperanças, no final do ano, determinando à população que fosse às compras. De concreto, entretanto, tivemos apenas, no campo das reformas, a ortográfica, cujos objetivos permanecem insondáveis, mas têm certamente que ver com interesses de grandes editoras.
Não percebo como fugir às demissões coletivas. O setor automotivo, considerado carro-chefe no mercado de trabalho, enfrenta graves dificuldades decorrentes da retração dos consumidores e do acúmulo de gigantescos estoques de veículos novos, seminovos e usados. Problemas semelhantes afetam os demais setores da economia.
A CLT limita-se a disciplinar as demissões personalizadas. Nesse sentido, quando não houver justa causa, assegura, além do aviso prévio, a liberação dos depósitos do Fundo de Garantia, acrescidos da multa de 40% calculada sobre o valor atualizado; ordena o pagamento de férias e 13º proporcionais aos meses trabalhadores; e, em determinada situação, o empregado receberá um salário adicional, a título de indenização especial.
Dos desligamentos coletivos, em épocas de crises econômicas, não trata a velha Consolidação. É como se inexistissem ou não fossem mais do que mero somatório de despedidas isoladas.
O amparo ao dispensado, no Brasil, é bastante razoável, porque, além dos valores de conteúdo indenizatório, será ele beneficiado pelo seguro-desemprego, pago por período que irá de três a cinco meses.
Mais de 20 anos desfilaram diante do Congresso Nacional desde que foi promulgada a Constituição de 88. O dispositivo que cuida de proteger o empregado contra demissões arbitrárias ou sem justa causa (artigo 7º, I) permanece, como tantos outros, no aguardo de regulamentação. Quando e como virá, se for aprovada? Ninguém pode prever. Até lá, não há como recusar ao empregador o direito de demitir um, dez, cem ou todos os empregados.
Pode parecer trágico, mas é a nossa dura realidade.
Almir Pazzianotto Pinto é ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, aposentado
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Deixe-se a hipocrisia de lado para admitir que o rompimento antecipado de contratos é prática comum no universo dos negócios jurídicos. O ideal seria que findassem de morte natural, com o encerramento do prazo de vigência ou a conclusão da obra contratada. O desejável, porém, nem sempre acontece. Casos de rescisão prematura são comuns nas construções de imóveis, em compras e vendas de veículos, entre locadores e locatários, no meio futebolístico e até no matrimônio, considerado sacramento pela Igreja Católica, mas tratado na lei civil como modalidade singular de contrato.
O contrato de trabalho pertence à esfera dos negócios jurídicos vinculados ao direito privado. Ao regulamentá-lo, entretanto, o legislador observou que empregadores e empregados não se encontram em posição de equilíbrio e igualdade. É por isso que a legislação social assegura numeroso rol de garantias aos assalariados, como salário mínimo, limitação da jornada, descanso semanal, férias anuais e 13º terceiro salário. Normas específicas, por sua vez, acentuam a proteção devida à mulher, à maternidade, ao menor, à saúde e à segurança. Entre as garantias constitucionais ganham destaque o direito de greve e a liberdade de organização sindical, embora esta se encontre subordinada ao modelo corporativo fascista, copiado pela Carta de 1937.
Em períodos de recessão, quando os mercados ficam debilitados e as empresas passam a experimentar repetidas perdas de receitas, uma das perguntas que se fazem é sobre o destino da força de trabalho. A resposta habitual, não obstante amarga, tem consistido no rompimento unilateral de contratos, recorrendo-se às demissões coletivas.
A legislação autoriza a demitir. A estabilidade no emprego é garantia prevista, mas em caráter excepcional e por tempo limitado, como se dá com a gestante, com o acidentado, com o dirigente sindical. A regra geral está lançada no artigo 7º, I, da Constituição federal, cuja combinação com o artigo 10, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, legitima a rescisão sem justa causa mediante indenização compensatória.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no texto original, assegurava estabilidade àquele que completasse dez anos de serviços efetivos na mesma empresa. Para este a demissão só seria aceita na rara hipótese de força maior ou pela prática de falta muito grave, apurada em inquérito judicial.
A longa experiência com a estabilidade não surtiu bons resultados. Para substituí-la criou-se o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), instituído pela Lei nº 5.107, de 1967. A primeira reação do movimento sindical foi forte, mas de curta duração, como relatou o falecido senador baiano Luiz Viana Filho no livro O Governo Castelo Branco. Com o tempo os aspectos positivos do FGTS se sobressaíram e o moderno instituto passou a ser encarado como conquista dos trabalhadores, vindo a ser incluído no elenco dos direitos constitucionais em 1988.
A crise que o Brasil atravessa, como reflexo da débâcle da economia mundial, recoloca em pauta o problema das dispensas. Nas últimas semanas repetiram-se, de forma assustadora, informações sobre desligamentos coletivos, já consumados ou apenas programados, em todos os países industrializados. Entre nós, foram ensaiadas algumas tentativas de negociação entre associações patronais e centrais sindicais, logo interrompidas por insuperáveis divergências de pontos de vista.
O governo bem que tentou subestimar a gravidade da recessão. De início procurou nos convencer de que não passava de reles "marola", incapaz de realizar a "travessia" do Oceano Atlântico. Pressionado pelos fatos, passou a cogitar de ações preventivas, na forma de financiamento aos empresários. Alimentou infundadas esperanças, no final do ano, determinando à população que fosse às compras. De concreto, entretanto, tivemos apenas, no campo das reformas, a ortográfica, cujos objetivos permanecem insondáveis, mas têm certamente que ver com interesses de grandes editoras.
Não percebo como fugir às demissões coletivas. O setor automotivo, considerado carro-chefe no mercado de trabalho, enfrenta graves dificuldades decorrentes da retração dos consumidores e do acúmulo de gigantescos estoques de veículos novos, seminovos e usados. Problemas semelhantes afetam os demais setores da economia.
A CLT limita-se a disciplinar as demissões personalizadas. Nesse sentido, quando não houver justa causa, assegura, além do aviso prévio, a liberação dos depósitos do Fundo de Garantia, acrescidos da multa de 40% calculada sobre o valor atualizado; ordena o pagamento de férias e 13º proporcionais aos meses trabalhadores; e, em determinada situação, o empregado receberá um salário adicional, a título de indenização especial.
Dos desligamentos coletivos, em épocas de crises econômicas, não trata a velha Consolidação. É como se inexistissem ou não fossem mais do que mero somatório de despedidas isoladas.
O amparo ao dispensado, no Brasil, é bastante razoável, porque, além dos valores de conteúdo indenizatório, será ele beneficiado pelo seguro-desemprego, pago por período que irá de três a cinco meses.
Mais de 20 anos desfilaram diante do Congresso Nacional desde que foi promulgada a Constituição de 88. O dispositivo que cuida de proteger o empregado contra demissões arbitrárias ou sem justa causa (artigo 7º, I) permanece, como tantos outros, no aguardo de regulamentação. Quando e como virá, se for aprovada? Ninguém pode prever. Até lá, não há como recusar ao empregador o direito de demitir um, dez, cem ou todos os empregados.
Pode parecer trágico, mas é a nossa dura realidade.
Almir Pazzianotto Pinto é ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, aposentado
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