terça-feira, 8 de setembro de 2009

A sociologia pública de Burawoy

Fernando Perlatto
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL


Ruy Braga e Michael Burawoy (Orgs.). Por uma sociologia pública. São Paulo: Alameda, 2009.

“Uma ciência do social que se imunize contra a sociedade tem tudo para tornar-se academicamente respeitável e... irrelevante”. Esta frase, de Francisco de Oliveira, presente no “Prefácio” da obra Por uma sociologia pública, de Michael Burawoy e Ruy Braga, sintetiza boa parte das ideias que os autores procuram discutir neste livro, que se configura como um interessante estímulo para a imaginação em torno deste tema. Partindo das reflexões em torno da ideia de “sociologia pública”, Burawoy — professor do Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia em Berkeley e outrora presidente da American Sociological Association — e Braga — professor do Departamento de Sociologia da USP — reúnem nesta obra artigos inéditos e outros que já haviam sido publicados em revistas acadêmicas para defender a ideia de uma “prática sociológica” engajada com diferentes públicos extra-acadêmicos, que consiga conjugar o rigor de uma sociologia profissional com a intervenção no espaço público.

O tema da sociologia pública não é de todo novo no Brasil, tendo já sido objeto de seminais investigações [1]. Não é de se estranhar tal fato. Afinal, nós nos constituímos como um país pensado pelos intelectuais. Seja atuando em academias e institutos, seja na universidade, em partidos ou inseridos no aparelho de Estado, a inteligência brasileira buscou se inscrever na esfera pública, formulando e disputando projetos sobre o futuro da nação, desempenhando papel de destaque no processo da modernização brasileira. É importante constatar, por conseguinte, que a universidade, em geral, e a sociologia, em particular, atuaram, sobretudo a partir dos anos 1930, como espaços privilegiados não apenas de reflexão, mas de intervenção dos intelectuais na sociedade. Nesse sentido, Por uma sociologia pública, a despeito de não tratar exclusivamente do Brasil, oferece novas possibilidades conceituais e potenciais campos de reflexão para pensar o tema da inserção pública dos intelectuais em nosso país.

O primeiro capítulo “Por uma sociologia pública”, escrito por Michael Burawoy, apresenta de maneira clara os argumentos que resumem sua ideia do que seja uma “sociologia pública”, que constituirão a base das reflexões desenvolvidas no restante do livro. Ao traçar um breve histórico da reflexão sociológica, o autor ressalta a força do seu impulso moral originário voltado para a intervenção pública, não obstante as pressões ocorridas no decorrer dos anos para que ela abandonasse esta postura. Burawoy desenvolve onze teses enfatizando a sociologia não apenas enquanto ciência, “mas também como moral e como força política” (p. 20). Estas teses têm em comum a ideia de uma “sociologia pública orgânica”, caracterizada por um processo educativo mútuo entre o cientista e seu público. O autor aponta, nesse sentido, a existência de uma “divisão do trabalho sociológico” entre a “sociologia pública”, a “sociologia das políticas públicas”, a “sociologia profissional” e a “sociologia crítica”, enfatizando a necessidade do diálogo entre elas, com o objetivo de se construir uma disciplina que, em tempos de “tirania do mercado e de despotismo do Estado”, assuma a defesa dos “interesses da humanidade”, do ponto de vista da sociedade civil.

No segundo capítulo, “O pêndulo de Marx: sociologias públicas e engajamento social”, Ruy Braga se dedica a compreender a relação existente entre o “marxismo aberto” — que se configura como uma retomada crítica da teoria marxista na década de 90 frente à crise vivida pelo marxismo a partir dos anos 70 aos 90, sobretudo após a dissolução da União Soviética, reunindo nomes como Werner Bonefeld, Richard Gunn e Kosmas Psychopedis — e o campo da sociologia crítica, com destaque para Pierre Bourdieu e sua sociologia como um “esporte de combate”. Após discutir a relação pendular existente entre o marxismo e a academia, bem como a trajetória pessoal e acadêmica de Bourdieu, marcada pela busca de uma sociologia que interferisse na realidade, o autor tece algumas semelhanças e diferenças existentes entre estas duas escolas de reflexão, apontando para o conceito de “sociologia pública”, desenvolvido por Burawoy, permitir abrigar uma relação mutuamente proveitosa entre a sociologia crítica e o marxismo aberto, que poderia se configurar como uma “‘sociologia pública marxista” (p. 116).

Michael Burawoy, no terceiro capítulo, “Abrir as ciências sociais: para quem e para quê?”, retoma muitas das ideias presentes no texto inicial para criticar o relatório Abrir as ciências sociais, elaborado sob a coordenação de Immanuel Wallerstein, que possui, segundo ele, uma série de equívocos justamente por não se colocar as perguntas: sociologia “para quem” e “para quê?”. Burawoy discute a existência de três “ondas da sociologia” — a primeira proveniente da Europa, com “forte tempero utópico”, como resposta à primeira onda de mercantilização que ameaçou a sobrevivência das classes trabalhadoras; a segunda, que teve seu epicentro nos Estados Unidos e se estendeu da Primeira Guerra Mundial até o colapso dos regimes comunistas, procurando estabelecer amplas relações com o Estado na busca pela regulação do mercado; e a terceira marcada mercantilização e pelo avanço do neoliberalismo —, destacando que esta última onda vem enfrentando um processo de resistência criativa por parte dos países do Sul, como Brasil e África do Sul, assim como Portugal, locus este privilegiado, segundo o autor, de desenvolvimento de uma sociologia que logrou combinar de maneira crítica as quatro formas de conhecimento sociológico, sobretudo após o fim do regime salazarista, quando tomou para si o desafio de reconstruir o próprio tecido social de Portugal a partir de então.

No quarto capítulo, “Cultivando sociologias públicas nos terrenos nacional, regional e global”, ao seguir o argumento do capítulo anterior e enfatizar que as sociologias de cada país oferecem respostas específicas para cada contexto de transformações sociais, Burawoy discute o desenvolvimento desta disciplina nos Estados Unidos, na Índia, nos países pertencentes à antiga União Soviética, na América Latina, na Espanha e em Portugal, na África do Sul, na Europa setentrional e Europa meridional. De acordo com o autor, a despeito de a sociologia profissional estadunidense imprimir sua marca sobre as demais sociologias profissionais nacionais, como ponto de referência hegemônico, vêm ocorrendo nos últimos anos mudanças sociológicas importantes nos países da semiperiferia, que, além de dever ser aproveitados pelos Estados Unidos, podem contribuir — a partir de suas divisões do trabalho, de sua ênfase reflexiva e de suas vivas conexões com a sociedade civil — para o cultivo do “jardim da sociologia internacional” (p.159).

Nos dois capítulos seguintes — “O futuro da sociologia” e “A guinada crítica para a sociologia púbica” — Michael Burawoy aprofunda seu argumento, realçando os cuidados necessários para o intercâmbio das sociologias nacionais na contemporaneidade, tanto pelo risco de elas se afastarem dos problemas locais, quanto pela iminente possibilidade da subordinação frente a sociologias desenvolvidas em outros países, sobretudo a estadunidense. Para o autor, o foco da sociologia pública da atual fase deve estar na sociedade civil, eleita como instância primordial, de modo a evitar tanto a “tirania do mercado”, quanto o “despotismo do Estado”. Atuando diretamente com organizações, movimentos e públicos extra-acadêmicos, assim como distante do “controle do mercado e do Estado”, a sociologia pública, de acordo com o Burawoy, deverá se manter continuamente comprometida com alguma visão democrática do socialismo.

O oitavo capítulo “A fabricação da identidade: sociologia pública do trabalho e sindicalismo no Brasil”, de Ruy Braga e Marco Aurélio Santana, e o nono, “A guinada pública: do processo de trabalho ao movimento sindical”, de Burawoy, abordam um assunto semelhante, qual seja: a relação entre sociologia pública e mundo do trabalho. Enquanto o sociólogo norte-americano traça um interessante quadro paradoxal da transformação de uma sociologia profissional crítica para uma sociologia pública crítica do trabalho, ocorrido justamente no período recente de maior declínio do movimento sindical, Braga e Santana estabelecem uma divisão temporal da organização e consolidação da sociologia do trabalho no Brasil. De acordo com os autores, ela teria sido marcada, em seus primórdios, pela busca de afirmação e profissionalização, procurando se diferenciar daqueles estudos “militantes” oriundos do PCB e tendo como destaque os trabalhos de autores como Juarez Rubens Brandão Lopes, Leôncio Martins Rodrigues, Azis Simão e Albertino Rodrigues.

Diferenciando-se deste período inicial de profissionalização, nas décadas de 70 e 80, teria se desenvolvido uma sociologia pública do trabalho no Brasil, com forte engajamento político-social, marcada pelo estabelecimento de um vínculo “orgânico” entre estudiosos e sindicalistas, com destaque para os trabalhos de Francisco Weffort sobre o “populismo”. Atualmente, a partir dos anos 90 e da experiência das câmaras setoriais, estaríamos vivenciando um momento de predomínio da sociologia para as políticas públicas, com o fortalecimento de uma rede de instituições não-acadêmicas — como o Dieese (Departamento Sindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos) e o Desep (Departamento de Estudos Sociais, Econômicos e Políticos da CUT) — que lograram construir um discurso analítico capaz de interagir com a sociologia profissional em condições de relativa “igualdade”. A vitória de Lula em 2002 e a chegada de muitos sindicalistas ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) teriam coroado este novo ciclo de profissionalização e de consolidação de uma sociologia para políticas públicas no país.

O quinto e o décimo capítulos são dedicados à ampliação da discussão da sociologia pública no Brasil. Em “Atravessando o abismo: uma sociologia pública para o ensino médio”, Ruy Braga traz para o centro do debate o ensino da sociologia no ensino médio. Ao lado da filosofia, a sociologia havia deixado de ser lecionada nas escolas desde 1971, como ordem do regime militar. Depois de anos de lutas, no dia 9 de junho de 2008, foi sancionado o projeto de lei que tornou obrigatórias estas disciplinas nas três séries do ensino médio em todas as escolas do país. Para além das questões relacionadas ao currículo e à formação de professores, Braga discute a necessidade de se promover o contato do estudante de sociologia com o estudante do ensino médio por meio da sociologia pública, na medida em que somente esta seria capaz de “atravessar as fronteiras da universidade para enredar-se na sempre complexa trama das lutas sociais autênticas” (p. 170).

Já o décimo capítulo, “Sociologia pública: considerações a partir do Brasil”, escrito por Ruy Braga, em parceria com Sylvia Gemignani Garcia e Leonardo Mello e Silva, é dedicado à discussão da sociologia pública no Brasil, tomando como mote as trajetórias intelectual e política de “dois dos mais autênticos representantes dessa sociologia crítica e militante” — Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira —, que se mesclam com trajetórias institucionais significativas para o desenvolvimento da sociologia pública no país, como a da USP, da Sudene e do Cebrap. Como bem destacado pelos autores, é difícil imaginar um lugar no mundo onde a proposta de “sociologia pública” elaborada por Burawoy faça mais sentido, tanto pelo fato de nos constituirmos como um dos países mais desiguais do planeta, quanto pela “presença de uma certa forma de fazer sociológico igualmente crítico e militante que dialoga fortemente com a sociologia pública” (p. 255). Daí que, “apesar de ser ainda embrionário” — como ressaltam os autores — “o debate acerca da sociologia pública tem todas as condições para prosperar no Brasil” (p. 265).

É justamente a partir desta perspectiva — de contribuir para suscitar o debate em torno da sociologia pública e colaborar para que ela prospere no país — que a obra Por uma sociologia pública deve ser compreendida. Não obstante seus méritos e sua qualidade, este livro poderia ter alcançado um melhor resultado se possuísse menos capítulos com textos semelhantes e se estes fossem mais bem explorados. Se, por um lado, a grande quantidade de capítulos faz com que argumentos similares sejam repetidos continuamente — o que acontece nos textos de Burawoy —, tornando cansativa a leitura de determinados trechos da obra, por outro, alguns capítulos poderiam ter sido mais bem explorados — o que acontece em alguns dos textos de Braga —, como, por exemplo, aquele dedicado à obrigatoriedade do ensino da sociologia no ensino médio e o capítulo final sobre a sociologia no Brasil. Além disso, talvez tenha faltado à obra um texto escrito em conjunto pelos dois autores, que pudesse armar, de maneira mais sintética, uma visão comparativa entre o desenvolvimento das sociologias públicas nos Estados Unidos e no Brasil.

Outro aspecto a ser ressaltado negativamente da obra é o foco que Burawoy dá à sociedade civil, em detrimento da “tirania do mercado” e do “despotismo do Estado”. Apesar de algumas poucas advertências feitas pelo autor para se evitar uma leitura enviesada acerca deste ponto, há um risco permanente na interpretação dos textos de Burawoy de se cair numa ideia que interprete a sociedade civil como o reino da “pureza”, condenando-se o Estado, como se ele fosse tão deletério quanto o mercado. Se isso já não parece ser verdadeiro nos países centrais, é menos ainda em países periféricos, em geral e, no Brasil, em particular, onde o Estado, além de ter sido um dos locus centrais de inserção dos intelectuais na vida pública, historicamente, desempenhou e tende a desempenhar funções centrais no processo de combate à desigualdade de renda abissal aqui existente.

No entanto, convém destacar que estas críticas não apagam o mérito principal do livro, relacionado, sobretudo, ao estímulo no Brasil da discussão em torno da ideia de “sociologia pública” de Burawoy, que, apesar de ampla, oferece muitas pistas para serem trilhadas nas investigações subsequentes. A bibliografia mobilizada também possibilita a incursão dos leitores brasileiros em novos universos, que precisam ser mais bem conhecidos, relativos à temática abordada. Dessa forma, ao fim e ao cabo, saímos da leitura de uma obra como essa com a certeza de que não há como se construir um projeto de aprofundamento social e político da democracia no país sem que coloquemos em primeiro plano o papel de uma sociologia que, além de se institucionalizar, não se esqueça de seu impulso originário e vá ao encontro da esfera pública, dialogando permanentemente com os setores subalternos no processo de transformação da sociedade.

Fernando Perlatto é mestrando do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cedes-Iuperj).

Nota
[1] A título de exemplo, basta citar: Werneck Vianna, Luiz. “A institucionalização das Ciências Sociais e a reforma social: do pensamento social à agenda americana de pesquisa”. In: A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, p. 195-242, 2004.

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