domingo, 21 de fevereiro de 2010

Nabuco e a governabilidade:: Celso Lafer

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Joaquim Nabuco, cujo centenário de falecimento ocorreu em janeiro, é uma das grandes figuras do Brasil. A sua ação política em prol da abolição e a sua reflexão sobre o papel constitutivo da escravidão na História nacional e a importância de reconstruir o País, desconstruindo o seu legado, dele fazem não só um paradigma de homem público, mas um intérprete maior do Brasil.

Um Estadista do Império, a admirável biografia que escreveu sobre seu pai, o senador Nabuco de Araújo, é, pelo cuidado documental, pelo apuro analítico e pela incomparável qualidade da escrita, o livro que continua sendo, na bibliografia brasileira, o que oferece o melhor acesso ao entendimento das instituições políticas do Brasil de dom Pedro II. Minha Formação é, nas letras brasileiras, um dos pontos mais altos da narrativa autobiográfica.

Joaquim Nabuco foi o qualificado advogado do Brasil no contencioso territorial com a Inglaterra a propósito dos limites da Guiana Inglesa, submetido à arbitragem do rei da Itália, e o seu memorial é um exemplo de exposição, com clareza e abrangência, de fatos complicados. Foi um grande diplomata, que, como nosso primeiro embaixador em Washington na época da ascensão inicial dos EUA no mundo, mostrou como um agente diplomático pode abrir caminhos para seu país mesclando capacidade de formulação, competência política, presença social, irradiação intelectual e sagaz trato com a imprensa. Nabuco também foi um importante parceiro de Machado de Assis na consolidação da Academia Brasileira de Letras, que, como instituição cultural voltada para valorizar o papel dos intelectuais na sociedade brasileira, precisou, para isso, reunir, no seu momento inaugural, monarquistas e republicanos num espaço comum de cortesia e civilidade.

A esses tantos méritos cabe acrescentar que Joaquim Nabuco foi, até no calor dos embates, um grande e superior analista da política, capaz, com sua palavra, de associar movimento e ordem na sua reflexão. Antecipa, com argúcia, no seu livro Balmaceda (1895), o tema da governabilidade democrática, ao examinar a crise, no Chile, da conflitiva Presidência Balmaceda, que levou a uma guerra civil e culminou no suicídio do presidente.

O pano de fundo de Balmaceda - republicado em 2008 pela Cosac Naify, com um prefácio do estudioso chileno Jorge Edwards e um posfácio de José Almino de Alencar - insere-se no âmbito da crítica política de Nabuco aos anos iniciais da República brasileira. Em 1890, escrevendo sobre Porque continuo a ser monarquista, dizia: "A República dos países latinos da América é um governo no qual é essencial desistir da liberdade para obter a ordem." E vaticinou que a República no Brasil "há de ser fatalmente uma forma inferior de despotismo desde que não pode ser uma forma superior de anarquia".

Floriano Peixoto, na Presidência, confirmou os temores de Nabuco. Qualificou a gestão do Marechal de Ferro de tirania jacobina, fruto de uma combinação entre Robespierre e o dr. Francia, do Paraguai, que, com ódio ao modo do caudilho Rosas, da Argentina, instigou a degola na Revolução Federalista do Rio Grande do Sul e, para conter a Revolta da Armada e se manter no poder, teve de recorrer, paradoxalmente para um nacionalista, à intervenção de esquadras estrangeiras.

Em Balmaceda, Nabuco, para discutir a capacidade de governar e a qualidade do juízo político, contrapõe o espírito de reforma ao espírito sistemático, científico e radical, que gera a intransigência da convicta infalibilidade. Aponta que Balmaceda fazia parte da família dos radicais, agravado pelo fato de ser um "teorista cru". Por isso empreendeu a ditadura e fez irromper no Chile o germe do militarismo político. Em nossos países, dizia Nabuco, "a nação se mantém em menoridade permanente". Daí, como aponta Fernando Henrique Cardoso no elucidativo prefácio à edição chilena de 2000 de Balmaceda, a recorrente atualidade dos fenômenos de instabilidade política analisados por Nabuco: populismo do Executivo, inação do Legislativo, fragmentação do sistema partidário, estrutura oligárquica do poder, militarismo.

Nabuco, no tecer reflexivo da narrativa de uma grande crise política, vai além da crítica a Balmaceda, na qual subjaz a crítica a Floriano. Antecipa o que veio a ser o debate reforma x revolução, para o qual a História do século 20 deu as suas respostas. Esclarece, como reformista, o desafio da governabilidade democrática, que é o de levar adiante políticas públicas consistentes, que permitam avaliar os governantes pelo resultado da sua administração, comparando o "estado em que receberam o país e o estado em que o deixaram". Ilumina os riscos do hiato entre aspirações e consequências, muito relevante para a análise dos "refundacionistas" latino-americanos, que veem em Balmaceda um antecipador das suas propostas.

Nabuco realça, no post-scriptum do seu livro, que o Brasil, com a República, começou a fazer parte de um sistema político mais vasto: o latino-americano, pois deixou de ser, com a derrocada da monarquia, em cuja evolução democrática ele acreditava, o institucionalmente diferente na região - um Império unitário de fala portuguesa em meio a múltiplas Repúblicas hispânicas. Por isso "o observador brasileiro para ter ideia exata da direção que levamos é obrigado a estudar a marcha do Continente, a auscultar o murmúrio, a pulsação continental".

Neste auscultar destaca, além dos riscos do desgoverno, a falta de "consciência do Direito, da Liberdade e da Lei". É um registro sobre "nuestra América" que não perdeu atualidade e é relevante na identificação do interesse nacional no contexto diplomático da nossa fundamental inserção regional. Não custa lembrar, a propósito dos direitos humanos e da cláusula democrática, que, como pontua Nabuco, os despotismos "defendem-se nas trevas, com o dinheiro, com o terror, com o silêncio".


Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC

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