Eleitos para o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Vítor Negrete, Alexandre Padilha e Ruy Braga militaram juntos na campanha encabeçada pelo movimento estudantil para a derrubada do ex-presidente Fernando Collor de Mello.
Mais de vinte anos depois, os estudantes voltaram às ruas. Os incluídos pelas duas décadas de maior acesso a renda, educação e saúde, como mostram os números recentes do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), agora esbarram nas limitações de um modelo de desenvolvimento que já não comporta o avanço da inclusão.
Negrete morreu ao tentar escalar o Monte Everest e Padilha virou ministro da Saúde incumbido de encabeçar as respostas governamentais ao principal problema indicado pelos manifestantes. Desde então, Ruy Braga, hoje professor de sociologia na Universidade de São Paulo (USP), tem se dedicado a mostrar que o governo do PT leva seu aplicado colega de passeatas a enxugar gelo.
É porque trabalham que os rebeldes se manifestam
Braga é autor do mais instigante artigo de "Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil?" (Boitempo, 2013), primeira coletânea sobre as manifestações que chega às livrarias na próxima semana.
Braga dedicou os últimos anos a entrevistar operadores de telemarketing, categoria que é a porta de entrada no mercado de trabalho para 1,5 milhão de jovens com baixa qualificação. Setor que cresceu com a expansão de varejo e serviços, é a ponta em que arrebenta a insatisfação dos consumidores com a conta de celular duplicada ou a TV a cabo que sai do ar na final do campeonato.
Como muitas agências reguladoras são loteadas por ex-dirigentes de empresas que deveriam fiscalizar, sobra para os operadores de telemarketing caprichar no gerúndio para aplacar a ira de quem compra e não recebe. Pela missão, ganham pisos salariais. Simbolizam a geração de empregos da era petista em que 94% do novos postos têm remuneração de até 1,5 salário mínimo.
Entre os operadores do gerúndio, Braga encontrou muitas filhas de empregadas domésticas que, a despeito de salários mais baixos que o de suas mães, submetem-se a pressão despótica por metas e alta taxa de rotatividade na tentativa de pagar faculdade e romper com a sina familiar.
Ainda que os manifestantes sempre apareçam mascarados nas páginas de jornal, as pesquisas indicam que seu perfil não se distingue muito daqueles operadores de telemarketing. Enquete citada por Braga (Plus Marketing) mostrou que nas mega passeatas de 20 de junho do Rio e de Belo Horizonte 70% dos manifestantes estavam empregados, 34% recebiam até um e 30% ganhavam entre dois e três salários mínimos. A idade média era de 28 anos.
As manifestações não são, portanto, frutos da rebeldia estudantil ou da fúria de marginalizados. São revoltas de quem está empregado, mas não vê como seu trabalho pode vir a lhe garantir futuro.
Em livro anterior ("A política do precariado"), Braga colocou um espelho na frente do espetáculo do emprego e viu uma imagem borrada: a inserção de países periféricos como o Brasil no mercado mundial se dá com a ampliação limitada de benefícios trabalhistas e acaba gerando inquietação.
O que hoje explode nos centros urbanos já estava escrito desde o final do governo Luiz Inácio Lula da Silva nos canteiros de obra do PAC, de Jirau a Suape. O faro do ex-presidente apressou o crédito consignado e a valorização do salário mínimo, mas foram avanços insuficientes para deter a insatisfação.
Braga coloca números na inquietação. A despeito da queixa unânime do mercado de que o gargalo da economia está na baixa produtividade, o número de acidentes trabalhistas praticamente dobrou nos últimos dez anos. Cresceram ainda as doenças musculares e aquelas de fundo psicossomático.
O estresse não se limita ao mundo do trabalho, alimenta-se das condições de vida em cidades com 6% da população (12 milhões) vivendo em favelas, submetidas a até seis horas diárias de translado e sujeitas à franja de violência da periferia.
Daí porque o colega de passeatas de Braga enfrente tantas dificuldades em emplacar seus médicos a mais. É um trabalhador que, a despeito de ser mais qualificado e remunerado, somaria a precariedade de vida nos grotões e periferias à ausência de esparadrapos para remendar o caos. Se quem está lá vem gritando para sair, não vai ser fácil encontrar quem queira entrar, mesmo que de jaleco.
Os números do IDH mostraram que se algo faz sentido naquela ideia estapafúrdia de uma nova constituinte é o de chamar atenção para avanços garantidos pela Constituição de 1988, como a vinculação de gastos em educação e saúde, que, agora, bateram no teto.
Para ampliar o pé direito desse saguão onde se acumulam as demandas sociais, a presidente Dilma Rousseff esbarra na reversão da política de redução de juros, com a qual esperava ter folga fiscal. Ainda que as pastas sociais tenham sido as mais preservadas pelos cortes, não têm orçamento para fazer frente à ambição das ruas por educação e saúde de mais qualidade. A aprovação do projeto que lhes destina uma parte dos royalties do pré-sal vai dar uma folga, mas é coisa para duas décadas.
No curto prazo, o que Braga enxerga é a encruzilhada de uma política econômica que não favorece a expansão de gastos sociais ou a oferta de futuro para a rebeldia das ruas.
Além de precarizados, os empregos começam a escassear. O tempo de permanência do trabalhador no emprego caiu de 18 para 16 meses. A recontratação sempre se dá por salário menor. Em 2012 o saldo entre admitidos e desligados de seus postos de trabalho foi metade daquele registrado em 2007, pico da era Lula.
Braga se define como um fã de carteirinha de seu antigo colega de movimento estudantil, mas conclui que Padilha não pode fazer milagre.
Diz que as ruas, tomadas pelos blequebloques, só darão alento à direita se a esquerda permanecer imobilizada.
Desde que separou suas bandeiras das de Padilha, há quase dez anos, Braga milita no PSTU. Não é preciso acreditar nas chances eleitorais do 16 contra burguês para se concluir que o PT está ameaçado de perder o bonde da história pela esquerda.
As concessões feitas à Fifa e ao Coi só escancararam aquelas que ao longo da era lulista deixaram o PT refém de interesses que defendem a liberdade de mercado mas não vivem sem um Estado a protegê-los.
Fonte: Valor Econômico
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