segunda-feira, 2 de abril de 2018

Fernando Limongi: Tiros que o senhor ouviu

- Valor Econômico

Lula divide a sociedade como ninguém antes o fez

O clima político esquentou. Nas duas últimas semanas, a radicalização voltou a dar as caras, culminando em tiros contra a caravana de Lula, declarações desastradas do candidato tucano e apologia ao porte de armas por Bolsonaro e seus seguidores. O espaço para a serenidade e o razoável se viu reduzido. Voltamos ao sertão de Riobaldo em que até Deus deveria andar armado.

O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do habeas corpus solicitado pela defesa de Lula explica o recrudescimento do embate político. O cerco sobre o presidente Temer e o calendário eleitoral (prazo de desincompatibilização e de filiação partidária) também contribuíram, mas Lula, como nenhum outro personagem da história política brasileira recente, desperta paixões e divide a sociedade brasileira em grupos antagônicos, os que o amam e os que o odeiam.

O STF recebeu a batata quente de Moro e do TRF-4. As duas instâncias sabiam quais as consequências de suas decisões, isto é, estavam cientes que colocariam o STF contra a parede e, mais, que a prisão após condenação em segunda instância poderia ser a vítima do seu blefe. Pagaram para ver. O destino da Lava Jato não está em causa. Está em causa a prisão do ex-presidente.

A resposta virá ao longo da semana. Todo observador da cena política (incluindo Moro e os três do TRF-4) sabe que a nossa Corte Suprema é antes de tudo inconstante, discricionária e aleatória. Isso é sabido. Basta olhar o histórico de suas decisões. Portanto, não será surpresa se a Corte alterar sua posição.

Nesse imbróglio, o texto constitucional é o que menos importa. Faz tempo que o Supremo vem decidindo sem precisar se referir à Constituição, a seus artigos, incisos ou o quer que seja. A jurisprudência vigente é a de que o STF faz o que lhe dá na telha e, mais, que atira para o lado que estiver voltado. No caso, as considerações politicas se sobreporão às convicções jurídicas, se é que a decisão anterior sobre a matéria se deu por razões jurídicas.

O julgamento de Lula será palco do teatro a que os brasileiros foram forçados a se acostumar nos últimos tempos: um show de vaidades representado por personagens picarescos. As datas vênias, referências a leis e decisões anteriores torrarão a paciência dos cidadãos plugados na TV Justiça. Ninguém dará a mínima para os argumentos dos magistrados, nem os próprios. Interessa apenas o placar, o resultado final, se Lula ganha ou perde.

Gilmar Mendes, com o tom de superioridade professoral que o caracteriza, achou por bem pedir aparte para explicar aos demais como devem votar. Começou frisando ninguém poderá lhe "imputar simpatia pelo PT", mas que Rui Barbosa teria lhe ensinado que se a "lei cessa de proteger nossos adversários, cessa virtualmente de nos proteger". Trocando em miúdos: se ponho meu adversário em cana, não tenho como proteger meus amigos. Assim será.

Assim, qualquer ela seja a decisão sobre o destino de Lula, ela estará de acordo com precedentes e a jurisprudência e, por isso mesmo, será vista como casuísta pelos perdedores e legítima pelos ganhadores. E mais, quem perder terá toneladas de exemplos para provar que vem sendo sistematicamente perseguido, que a Corte favorece seus adversários.

A tensão é alta e todos pressionam o STF. Fica por saber como se comportarão após a decisão. O Vem Pra Rua voltou à vida e achou recursos para pagar anúncio de página inteira nos jornais pedindo a confirmação da sentença. O moralismo e a renovação da turma, portanto, só ganha corpo se o alvo é o PT. Quando Temer era a bola da vez, o Vem Pra Rua, alegando falta de recursos e cansaço cívico, ficou em casa.

Jair Bolsonaro, o candidato da segurança, houve por bem fugir do Rio de Janeiro sem dizer uma palavra sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco. Preferiu confrontar Lula em Curitiba, onde, mantida a distância, disparou suas bravatas usuais, cercado por um punhado de policiais e militares aposentados. A violência verbal de Bolsonaro tem alvo preciso: o PT e Lula, a quem não cansa de equiparar a criminosos. Com o requinte habitual, declarou: "Presidente tem que meter bala em vagabundo e não formar quadrilha com eles."

O circunspecto Geraldo Alckmin também entrou na dança da insensatez e escorregou na casca de banana que o clima politico lançou à sua frente. Na semana retrasada, propôs trégua, afirmando que era hora de deixar "lado os pesadelos do passado." Disse mais: "não vou ficar brigando por coisa do PT, vou olhar para o futuro." Diante dos tiros no sul, esqueceu-se do Alckmin "paz e amor" para afirmar que o "PT colhia o que plantava." A retratação posterior não esconde as dificuldades do candidato de tratar Lula e o PT com civilidade, como se a moderação fosse responsável pelo apoio tímido que vem colhendo nas pesquisas.

A ironia das ironias é que Alckmin deu essas declarações ao comparecer à estreia do épico "Nada a perder: a história real de Edir Macedo", filme em que o bispo é retratado como um defensor dos humildes, preso em razão da reação sórdida das elites ciosas da preservação de seus privilégios. Ocorre a alguém o paralelo?

Quanto ao PT e ao que estaria plantando, vale ter em mente que em que pese ter 'gritado golpe', Dilma deixou o poder de forma ordeira. A ameaça de convocar o exército de Stédile não passou disso, de uma ameaça. Lula está se defendendo apelando para as armas legais que lhe restam, um pedido de habeas corpus à Corte Suprema, tendo como advogado um ex-ministro dessa mesma corte. Nada poderia ser mais 'burguês', 'legalista' e comportado.

A existência do diabo atormentava Riobaldo. O Papa Francisco declarou que o inferno não existe, mas a notícia ainda não chegou por aqui. A lógica do sertão resiste.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.

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