- O Globo
Exigimos muito dos nossos craques, mas é difícil controlá-los a partir da nossa ansiedade
Chego a Sochi num dia de sol. O Brasil escolheu bem o seu lugar na Copa: calor e vista para o mar. A minha está um pouco limitada por um prédio muito alto. O espírito da Barra da Tijuca está por toda a parte. O homem mais poderoso do mundo, Trump, é construtor de arranha-céu.
Queria dar uma escapada à Abecásia, mais precisamente a Gagra. Mas seria abusar dos patrocinadores. O pequeno país teve uma queda brutal em seu produto interno, e o desemprego ronda os 90%. Mas o lugar tem vistas maravilhosas diante do Mar Negro e produz tangerinas.
Tudo o que eu queria nestes dias de intenso trabalho: sol, mar e tangerina, como as que a gente compra nas estradas do Brasil. Vim pensando no caminho como é difícil a escalada para a conquista da Copa. Tive essa ideia ao ver as pessoas subindo a rampa para olhar o panorama de São Petersburgo, no alto da Catedral de São Isaac.
Como os torcedores e jornalistas se preocupam, sobretudo com suas estrelas. Messi está ansioso? Ficou mais calmo? Cristiano Ronaldo começou a dar porrada? Neymar caiu, não caiu, sentiu dores? Salah está zangado com a exploração política na Chechênia?
Cada detalhe é um Deus nos acuda. Neymar mancou, Messi vomitou, Salah vai deixar o time, o que deu no Cristiano Ronaldo?
Lembra-me um pouco o poema de Vinicius sobre filhos:
“Cocô está branco/ cocô está preto/ bebe amoníaco/ comeu botão”.
A recepcionista do hotel perguntou por minha Fan ID. Disse a ela que gostava, mas não era fan.
Os fans sofrem muito. Vi argentinos cantando pela manhã no aeroporto. Creio que emendaram uma grande festa, porque ouvi o barulho no hotel.
Neste momento em que escrevo, os alemães foram derrotados pela Coreia do Sul, eliminados da Copa. Imagino a grande tristeza.
O treinador da Argentina disse que Messi vibra como um verdadeiro argentino. Certamente havia dúvidas sobre sua condição de argentino. Com nossas preocupações, acabamos levando mais dúvidas ainda para os craques. Sei disso porque, quando começam a perguntar, é porque têm dúvida e projetam essa dúvida em você.
Andei passando material por WeTransfer para a tevê. Demorou 36 horas. De vez em quando, o próprio aplicativo perguntava: não se ofenda, mas você não é um robô?
Sempre respondi não, claro. Mas, às vezes, não acreditam e mandam você marcar nos quadrinhos onde há um carro, uma ponte, uma fachada de loja.
Às vezes, a pergunta muda de forma: você é 100% humano?
De tanto perguntarem, comecei a duvidar de mim mesmo e ansiar por algum tipo de resposta na coluna do meio: um pouco robô, quase 100% humano.
Creio que exigimos muito dos nossos craques. Não são robôs, pelo contrário: 100% humanos. E, nessa condição, podem xingar a mãe do juiz, devolver um pontapé, cometer erros grotescos — tudo é possível.
Verdade é que ganham fortunas. Não têm medo de perder o emprego, de faltar dinheiro no fim do mês, como a maioria dos mortais. Mas o dinheiro não é uma blindagem perfeita.
Paul McCartney contou que uma vez a mãe dele apareceu num sonho e disse: deixa rolar. E ele fez “Let it be” com base nessa frase. A impressão que tenho é que, se deixarmos rolar, nossos times acabarão por chegar ao alto da montanha. Ou então se perderão no caminho.
É muito difícil controlá-los a partir da nossa própria ansiedade. Os coreanos, pelo que vi, não jogam tanto futebol. No caso deles, é apenas deixar correr. E correm como se o Kim Jong-un estivesse atrás deles com um foguete atômico.
Aconteça o que acontecer, vou tentar achar umas tangerinas em Sochi. A última vez em que vi os sérvios de perto foi na Croácia, quando avançavam com seus tanques ornados por uma estrela vermelha.
Os jogadores suíços multados por um gesto político ainda se lembram deles no Kosovo. Deviam ter deixado rolar, seguindo nosso mestre Didi: fazer apenas a bola correr, sem nenhum gesto adicional
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