- O Globo
Essa galáxia da internet está mudando o mundo sem que tomemos consciência de que podemos orientar essa mudança
Acho que sou um cara mais pro modesto. Se faço, aqui e ali, um autoelogio, se sou capaz de citar a mim mesmo de vez em quando, não é por mera jactância. Não descobri a importância política das redes sociais, a força pública e decisiva da internet, apenas porque o novo presidente Bolsonaro usou-as na campanha vitoriosa. Penso nisso há tempos. Talvez não antes do Carlos, filho do eleito, especialista responsável por colocar o pai candidato nesse mundo virtual em que ele se deu tão bem. Mas, antes da atual consagração do novo sistema de relacionamento entre as pessoas, eleitoras ou não, já andava pensando nisso.
Em 9 de julho de 2017, aqui nesse espaço de jornal, escrevi que “[...] é preciso atualizá-la [a Constituição de 1988], um produto híbrido da redemocratização híbrida, [é preciso] introduzir nela as novidades políticas, sociais e culturais do Brasil e do mundo. Hoje, por exemplo, a internet tem um poder de representação muito maior que o Congresso. É preciso se dar conta dessa representação, introduzi-la em nossa vida pública, do jeito mais justo e eficiente possível”. Talvez houvesse aí um exagero daquele momento, um momento em que ainda não tínhamos a definição de todas as candidaturas à Presidência e nem sombra de um salvador da lavoura.
“Em 1824”, escrevi, “a primeira Constituição do Brasil inventou o Poder Moderador, criação nossa, uma jabuticaba que nunca existiu em qualquer lei no mundo ocidental. No caso, o Poder Moderador era o imperador, a quem cabia dirimir dúvidas e resolver conflitos, estabelecendo o que era mais justo e melhor para a nação”. Durante todo o século XX, do Império à República e seus vários períodos tão diversos, nos acostumamos a recorrer a um Poder Moderador, legítimo ou fruto de um golpe de força, sempre que em dificuldade. Talvez minha observação sobre o mundo virtual tenha sido consequência da falta evidente de um novo Poder Moderador, capaz de garantir nossa original “normalidade”.
O pressuposto dessa conversa não era apenas o da modernidade da internet. Eu também pensava (e ainda penso) no crescente fracasso da democracia representativa, em que os representantes não são mais respeitados por aqueles que são supostos representar e, por sua vez, não têm mais o menor interesse pelos que representam. E se essa representação se desse através da internet, de uma linguagem dialética imediata, em que os representantes teriam que ser mais fiéis a seu papel e os representados pudessem alterar, quando bem entendessem, o modelo de sua representação?
No fundo, todos esses pensadores contemporâneos que estão pondo em questão a democracia liberal, de Jacques Rancière a Manuel Castells, estão pondo em questão a possibilidade de o homem moderno ser representado na complexidade de seus desejos e prazeres, embalado por tudo que está ao alcance de suas redes e semelhantes. E a recíproca também é verdadeira: não só esse ser humano contemporâneo não se sente mais representado em seus sofisticados objetivos no mundo, como também se sente à altura (ou superior) e, portanto, no direito de contestar agressivamente quem julgar que não o entende.
Essa galáxia da internet está mudando o mundo sem que tomemos consciência de que podemos orientar essa mudança. Não se trata simplesmente de treinarmos e nos prepararmos para viver o mundo virtual, tal qual ele aparenta ou pretende ser. Mas de inventarmos seus meios de controle, de modo que o mundo virtual nos sirva segundo nossa própria ética e interesses. Não precisamos considerar como fatal ser este o espaço da mentira, o febril e inconsequente elogio da pós-verdade ou das fake news como modo moderno de viver, o único possível de existir. Em vez de nos adaptarmos à mecânica da invenção, temos que encontrar os meios de adaptar a invenção a nossos princípios e projetos. Fazer com que ela nos sirva no limite do que necessitamos e do que é simplesmente justo.
Estamos chegando a um momento em que tudo isso está se tornando indispensável à sobrevivência do próprio antropocentrismo, a era do homem como centro do funcionamento do planeta. Os eventos policiais de que estamos tomando conhecimento hoje como, por exemplo, a prisão de Meng Wanzhou, da empresa chinesa Huawei, em território canadense e a pedido do governo americano, não passa de um pequeno incidente na disputa entre as potências para o controle de instalação das redes 5G, a chave para a internet das coisas, um imenso avanço nisso tudo. Mas isso já é outra história.
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