segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Entrevista -‘Literalidade da Constituição precisa ser cumprida’, diz pesquisador

Alexandra Martins | O Estado de S. Paulo

O professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio), Michael Mohallem, vê bons argumentos tanto dos defensores de que o artigo 5.º da Constituição, que garante o princípio da presunção da inocência, deve sobrepor qualquer debate sobre o tema em julgamento no STF quanto daqueles que criticam o excesso de recursos para mandar um criminoso para a cadeia. Para ele, uma das saída seria reformar o Código do Processo Penal de forma a diminuir as possibilidades de apresentação de recursos. Enquanto essas mudanças permanecem no campo teórico, Mohallem conclui que não há como fugir do cumprimento da “literalidade da lei”, por mais complexo que o tema seja para a Suprema Corte. “Nos fizemos a Constituição. Vamos ter de conviver com isso”, disse ele ao BRP.

Confira abaixo a entrevista
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BRP – Parece estranho, mas o STF vai decidir se o País vai aplicar ou não um dispositivo constitucional?

Michael Mohallem – Sim. O instrumento serve para isso. A ação direta de constitucionalidade é proposta quando há uma dúvida se uma lei específica é constitucional ou não. Nesse caso, há uma norma que está em vigência dizendo que é constitucional prender após segunda instância. Só que, como há muitos casos que questionam isso, essa ação serve para solidificar de uma vez o entendimento. Ela diz: ‘Eu quero que o Supremo declare de uma vez que isso é constitucional e por meio dessa ação ela tem efeito vinculante’. A partir dessa decisão do Supremo, os juízes de outras instâncias estariam condicionados a seguir esse mesmo entendimento, para dizer se o dispositivo do Código do Processo Penal é condizente com a Constituição.

Depois de tantas tentativas, esse entendimento já não deveria estar claro a essa altura?

Michael Mohallem – Deveria. Desde a Constituição de 1988, você tem a redação do artigo 5, inciso 57, que diz que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, e o artigo do Código do Processo Penal, o 283, segundo o qual ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. A discussão toda é se esses dois artigos conversam entre eles. Durante 21 anos, de 1988 até 2009, o Brasil, o Supremo, os tribunais aplicaram normalmente a prisão em segunda instância. Aí em 2009 houve uma mudança e em 2016 voltou para a condição atual. O caso concreto, quando ele chega, sinaliza uma jurisprudência, mas ele não vincula. Por exemplo: duas semanas atrás, o Supremo teve uma discussão muito importante sobre os corréus. Naquele caso, eles estavam discutindo um caso concreto. Ele não impõe que o juiz decida igual, mas ele manda uma mensagem para todo o Judiciário dizendo o seguinte: ‘Olha, você juiz de primeira instância, de segunda, de terceira, quando for tomar uma decisão, saiba que o Supremo já entendeu por maioria que o caminho é esse’. Agora, se o juiz decidir de outra forma, esse caso vai ser inevitavelmente alterado quando chegar até o Supremo.

De 1988 a 2009, o entendimento então não foi constitucional?

Michael Mohallem – Essa é a dúvida. É um pouco absurdo, mas a gente já teve casos assim porque o Direito não é tão exato. Tem um campo de interpretação que é muito elástico. Vou te dar outro exemplo. O Código Civil Brasileiro dizia que o casamento é entre homem e mulher. Agora, como há mudanças nos tempos e essa matéria é mais fácil de entender que há uma mudança geracional, os outros países começam a aceitar casamento entre pessoas do mesmo sexo. E aí em um dado momento o Supremo diz: ‘Opa’. Quando qualquer pessoa for ler o Código Civil, quando se diz homem e mulher, na verdade está se querendo dizer qualquer gênero, qualquer combinação. Então você volta com a pergunta: ‘Então durante esse tempo o Código Civil era inconstitucional? O Supremo lê retroativamente, mas ele não diz que todas as decisões do passado são inconstitucionais. Ele só vai dizer que: ‘Daqui pra frente a interpretação é essa’. A discussão da prisão é parecida. Mas aí: ‘Ah, quem prendeu naquele regime no passado?’ Aquela prisão valeu, foi válida e acabou. A partir daqui, o Supremo entende que a regra constitucional é essa.

Os críticos da mudança evocam a tese de que poderia haver favorecimento de réus do colarinho branco.

Michael Mohallem – Sem mirar em nenhuma pesquisa específica e tentando entender todas elas disponíveis, não é só colarinho branco. Muitos dos presos com acesso a advogado ou à Defensoria podem responder em liberdade se entendido que esse sujeito não representa nenhum perigo para a sociedade. Há uma grande generalização. Crimes cometidos por pobres, negros etc, são crimes mais vulgares, de sangue, de violência, de roubo, homicídio. Para esses crimes, em geral, quando há prova farta, ou ele confessa, e principalmente sendo pobre, muitas vezes essa pessoa é colocada em prisão preventiva. E essa discussão de agora do Supremo não toca em prisão preventiva. Na Lava Jato mesmo, a prisão preventiva do ex-governador Sérgio Cabral, por exemplo, é para que ele não tente obstruir provas, interferir nas investigações, ameaçar pessoas ou fugir do País. Muitas vezes, os presos por crimes de sangue, mais violentos, eles acabam tendo também prisão preventiva. Então a regra de segunda instância não afetaria tanto. Mas aí é uma grande generalização. A gente precisaria ter dados sobre quais são esses crimes e casos que seriam favorecidos. Não existe essa informação. Então se generaliza que réus de crimes do colarinho branco seriam beneficiados, já que eles não são violentos, e assim vão responder em liberdade, o que também não é verdade. Cabral e Eduardo Cunha estão presos preventivamente. Portanto, não daria para dizer que esse argumento procede. Tem, no entanto, um pano de verdade. Tem réus do colarinho branco presos preventivamente e tem réus pobres presos que poderiam responder em liberdade.

Alguns ministros do STF falaram que a mudança de entendimento libertaria homicidas.

Michael Mohallem -Tem uma paixão enorme nessa discussão. Eu estou rascunhando alguns argumentos para depois da decisão olhar para frente. Se o problema é o tempo que demora nas instancias superiores, vamos então focar em reformas, respeitar a decisão do Supremo, mas tentar diminuir esse tempo.

Como do Código do Processo Penal?

Michael Mohallem – Por exemplo. Houve o caso do ex-senador Luiz Estevão, com algo em torno de 39 recursos. Precisamos decidir como é que a gente diminui as possibilidades de apresentação desse tipo de recurso. Quais são os gargalos que atrasam o processo? Dá para conviver com a decisão do Supremo, mesmo que ela seja de manter a decisão de prisão em segunda instância ou acabar com a prisão e voltar com a regra anterior. De qualquer forma, é um debate muito difícil para o Supremo. Eu consigo ver bons argumentos dos dois lados. De fato não é muito racional você ter um sistema que tem quatro decisões para poder enviar alguém para a cadeia. Me parece irracional econômico e juridicamente. Por outro lado, tem a literalidade da lei. Nós criamos essa Constituição. Vamos conviver com isso. A literalidade precisa ser cumprida.

O Brasil prende muito facilmente?

O Brasil prende muito, não há dúvida, tem mais de 800 mil presos no País. Tem um clichê que diz que o Brasil prende muito, mas prende mal. O País tem capacidade de prender réus pequenos com muito facilidade, tem ainda o racismo institucional. E prende mal no sentido de que teve sempre uma dificuldade histórica em certos casos. A Lava Jato, por exemplo, ficou famosa pela perspectiva de rompimento dessa chave de não conseguir prender ricos, políticos e poderosos. Talvez tenha feito alguns abusos nesse afã de romper esse paradigma. De fato, o Brasil precisa conseguir construir um sistema que torne possível prender crimes de colarinho branco com mais facilidade e que seja autocrítico de ver os abusos quando eles surgem. A delação premiada, por exemplo, está sendo usada de modo equivocado? Se não, temos que aprimorar a regra, não acabar com o instituto.

Qual a influência da pressão popular nos julgamentos sobre Lava Jato no STF?

Michael Mohallem – A pressão popular existe e tem um aspecto importante porque é democrático pressionar as instituições, mesmo que o Supremo não seja composto de integrantes eleitos. É legítima e esperada em órgãos democráticos de cargos eletivos. Mas no Judiciário, eu acho inevitável que a pressão exista. Por outro lado, a reação do Supremo a notícias críticas ou até agressivas é absolutamente desproporcional. Inclusive o inquérito das fake news é um inquérito ilegal, que não poderia ter sido aberto, gerou censura, é uma reação descabida, como se o Supremo não pudesse ser criticado. Na Lava Jato, tudo se tornou muito binário. Qualquer decisão mais importante no Supremo vira uma discussão se é o fim ou não da Lava Jato. Essa tecla é um pouco artificial porque ela é usada de modo estratégico. Ela pode até ser estrategicamente interessante, apesar de que eu acho que está deixando de sê-lo, mas ela empobrece o debate jurídico porque não é sobre a Lava Jato ou não, é sobre uma regra jurídica. Nesse caso da decisão atual do Supremo, não é tão dramático assim. São decisões problemáticas, mas tem soluções variadas para se contornar eventual decisão do Supremo, desde que seja razoável. Fica tudo simplificado como sendo contra ou a favor da Lava Jato. A gente poderia dispender uma parte de energia no debate para discutir alternativas.

É possível dissociar o caso Lula desse debate de segunda instância?

Michael Mohallem – Essa é uma das questões: o timing. Estamos discutindo essa questão de novo? Para gente entender esse ‘de novo’, esse contexto (do caso Lula) é inevitável. O STF vai julgar ações abstratas, que não têm nome, mas é inevitável (associar ao caso Lula). O caso Lula é altamente polarizador. Durante as eleições teve repercussão na arena eleitoral. Antes da Vaza Jato, havia já pressão por suposta formação de maioria dentro da Corte. Quando se julgou o habeas corpus do Lula, em 2018, a ministra Rosa Weber deu um voto dúbio e disse: ‘Como é uma ação concreta, eu vou acompanhar a jurisprudência do tribunal’. Agora é um caso abstrato. O Supremo é um ator político, e está longe de ser imune a essas pressões. /

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