sábado, 18 de julho de 2020

Entrevista | Thomas Piketty: Elite brasileira comete erro histórico ao não impulsionar distribuição de renda

Segundo Piketty, a concentração de fortunas inibe a inovação e um crescimento econômico maior, já a redução da desigualdade permite mais prosperidade

Por Assis Moreira | Valor Econômico / Eu &Fim de Semana

GENEBRA - O francês Thomas Piketty ficou mundialmente conhecido ao aprofundar o tema da desigualdade e concentração de patrimônio no debate internacional com seu livro “O Capital no Século 21” (2013), traduzido para 40 línguas e com 2,5 milhões de exemplares vendidos.

Reconhecido como um dos economistas mais influentes de sua geração, Piketty, de 49 anos, volta agora com um novo livro, “Capital e Ideologia” (Intrínseca), de 1.056 páginas na versão brasileira, em que põe ênfase nas ideologias que procuram justificar as desigualdades nas sociedades e a propriedade privada.

Professor da Escola de Economia de Paris, Piketty constata que as sociedades podem mudar rapidamente de trajetória, dependendo do rumo político que tomarem. Desta vez, ampliou as pesquisas para sociedades como Índia e Brasil. Sobre o Brasil, sua conclusão é a de que o país, do ponto de vista de repartição de renda, é ainda mais desigual do que a Europa de antes da Primeira Guerra. Acha que as elites brasileiras cometem um erro histórico ao não impulsionar uma melhor distribuição de renda, o que poderia aumentar o crescimento econômico.

Piketty reconhece avanços nos governos do PT (2003-2016), mas nota que, no geral, o resultado do partido foi pouco expressivo na luta contra a desigualdade. Considera que as políticas sociais foram financiadas pela classe média e não pelos mais ricos, nos governos petistas, que não levaram adiante uma reforma tributária para estabelecer impostos mais progressivos.
O economista francês considera o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) um “Trump piorado” e sugere ao atual governo alterar seu rumo para estabelecer uma verdadeira política social.

Afirmando-se mais otimista do que no livro anterior, Piketty se diz convencido de que é possível superar o capitalismo e a propriedade privada e adotar uma política baseada no que chama de socialismo participativo. Por esse novo modelo, defende imposto sobre os mais ricos para permitir dar a todo mundo uma herança de €120 mil (R$ 717 mil) aos 25 anos de idade.

Trechos da entrevista feita pelo Skype:

Valor: Após “Capital no Século 21”, em seu novo livro o senhor coloca a ideologia no centro da discussão. Por quê?

Thomas Piketty: Minhas pesquisas me levaram à conclusão de que isso é a mais importante determinante das desigualdades. No livro anterior, eu já apontava a importância do fator político na redução das desigualdades no curso do século XX. A novidade no novo livro é que ampliei o estudo sobre desigualdades além dos países ricos. Estudo países no resto do mundo, como Índia e, em parte, o Brasil - sociedades escravagistas, coloniais. E todos esses novos dados me levaram à conclusão de que, se tentamos explicar os diferentes níveis de desigualdade na história com fatores estritamente econômicos e tecnológicos, culturais às vezes, não vamos muito longe.

Valor: Por quê?

Piketty: Não conseguimos explicar essa diversidade incrível, as transformações que observamos na história. Há países que passaram de muito desiguais para se tornar muito igualitários, como a Suécia, que há um século era ainda mais desigual que o Brasil de hoje. As coisas podem mudar muito rapidamente. É um livro talvez mais otimista do que o anterior, em que insisto que há movimento de longo prazo na direção da redução das desigualdades. Há uma forma de aprendizado da justiça na história. A redução das desigualdades permitiu também mais prosperidade econômica, mais crescimento. Todos os países que ficaram ricos chegaram a isso reduzindo suas desigualdades durante o século XX. Ao mesmo tempo, insisto que não é um processo determinista, a situação pode virar, depende de mobilização política, ideológica, das sociedades.

Valor: Ou seja, a desigualdade é ideológica e política, e não realmente econômica ou tecnológica?

Piketty: Exato. Mas especifico que, quando digo isso, não quero dizer que é fácil reduzir as desigualdades e que a igualdade absoluta seria a solução. Penso que vamos sempre ter um certo nível de desigualdade, simplesmente porque as pessoas são diferentes, tem projetos diferentes. É complicado encontrar o bom nível de igualdade ou desigualdade. É por isso, para mim, que o termo ideologia no livro não é forçosamente negativo.

Valor: Por quê?

Piketty: Às vezes tem ideologia que vai longe demais para justificar a posição de certos grupos em relação a outros, notadamente da parte de grupo dominante. A abordagem no meu livro é de que as sociedades humanas precisam de ideologia, porque precisam tentar dar sentido ao nível de suas desigualdades, de suas estruturas sociais em geral. Não há sociedades na história em que os ricos se contentam em dizer que eles são ricos e os outros são pobres, e é sempre assim. Na verdade, os grupos dominantes vão sempre tentar explicar que são ricos, mas é do interesse dos mais pobres, porque é isso que permite manter a ordem nas sociedades de propriedades, manter a estabilidade social, inovação técnica. Os diferentes discursos são às vezes em parte hipócritas, mas são também em parte plausíveis. Tento dar a parte de verdade a esses diferentes discursos ideológicos para tentar tirar lições em seguida.

Valor: O senhor dá o exemplo da Suécia. Quais fatores foram mais importantes na transformação do país?

Piketty: Não conhecia bem toda a história política da Suécia antes de fazer pesquisas para este livro. Um dos elementos que mais me impressionaram foi a que ponto a Suécia, que vemos hoje como um dos países muito igualitário, na verdade até o começo do século XX era um dos mais desiguais na Europa. Em particular o sistema de direito de voto que vigorou de 1865 a 1911 era muito mais sofisticado na sua organização da desigualdade do que tudo que vimos nas sociedades europeias ou latino-americanas no século XIX. Em muitas dessas sociedades, somente os mais ricos tinham o direito de voto. Na França, no Reino Unido, em 1840, por exemplo, se você estava entre os 1% ou 5% mais ricos, tinha direito de voto - do contrário não tinha esse direito. Os suecos, entre 1865 e 1911, levaram essa lógica bem mais longe: somente os 20% mais ricos tinham direito de voto, mas no interior desses 20% esse direito variava conforme o nível de sua riqueza. Havia dezenas de municípios na Suécia onde apenas um eleitor tinha mais de 50% do direito de voto. E mesmo as empresas tinham direito de voto em proporção do capital investido no município. Você vê aí o nível de sacralização da propriedade em que mesmo Donald Trump hoje não ousaria propor como sistema político. E isso mudou de maneira relativamente pacífica. Uma mobilização de sindicatos e da social-democracia que chegou ao poder em 1932 colocou a capacidade estatal do país a serviço de um programa completamente diferente. Aliás, hoje na Suécia algumas dessas lições históricas estão talvez esquecidas. Desde a crise bancária de 1991 entramos em outra fase histórica, suprimiu-se imposto sobre a fortuna, sobre a herança, e isso pode fragilizar o modelo sueco no longo prazo. Porque a lição da história é que as coisas podem mudar num sentido ou em outro. A mudança histórica e institucional pode ocorrer muito mais rapidamente do que achamos.

Valor: O senhor estudou a situação de mais países, incluindo Índia e Brasil. No caso brasileiro, o que chamou mais sua atenção, e também em comparação a outros países com enormes desigualdades?

Piketty: Várias coisas me interessaram no estudo do caso brasileiro. Primeiro, o nível geral de desigualdade de renda e da propriedade no Brasil é muitíssimo elevado. Quem pensa que é preciso esperar para se tornar mais rico para redistribuir comete um enorme erro. O Brasil, atualmente, é um país, do ponto de vista da repartição da renda e do patrimônio, ainda mais desigual do que a Europa de antes da Primeira Guerra [1914-1918]. Só para termos uma ordem de grandeza: os 50% mais pobres no Brasil em termos de renda têm apenas 10% da renda total, enquanto os 10% mais ricos têm mais de 50% do total. Se olharmos a propriedade, seria ainda mais extremo. Os 50% mais pobres teriam 2% ou 3%, enquanto os 10% mais ricos teriam 70% a 80% [de tudo]. São níveis de desigualdade que tínhamos na Europa no fim do século XIX ou começo do século XX. Mas vimos na história, na Europa, que não eram necessários para o desenvolvimento econômico, e eram mesmo uma limitação. Porque, quando houve grande redistribuição na Europa em seguida a choques dramáticos, em grande parte depois de duas guerras mundiais, mas também à introdução de um sistema tributário mais progressivo, isso permitiu aumentar o crescimento. Após a Segunda Guerra [1939-1945], passamos a ter crescimento que é até hoje maior do que havia antes da Primeira Guerra com uma sociedade muito desigual da época. Há lições da história europeia e da visão elitista da economia que havia na Europa até o inicio do século XX que podem ser úteis para o Brasil. Acho que as elites brasileiras que recusam redistribuir a riqueza fazem um erro histórico, porque a longo prazo todo mundo pode se beneficiar de um sistema com mais justiça econômica, mais justiça social e prosperidade e desenvolvimento do que numa sociedade muito desigual que é o Brasil de hoje.

Valor: O senhor menciona no livro que os resultados do PT foram pouco expressivos na luta contra as desigualdades. E que as políticas sociais do partido no governo foram financiadas pela classe média, e não pelos ricos...

Piketty: Não quero ensombrecer a situação. Os governos do Partido dos Trabalhadores permitiram, de toda maneira, melhorar a situação dos 50% mais pobres no Brasil graças a aumento de salário mínimo e política de transferência como Bolsa Família. Isso é muito positivo. O problema é a limitação dessa política porque, como não houve reforma tributária ambiciosa, para contribuição dos 10% mais ricos, a melhora relativa dos 50% mais pobres foi feita mais em detrimento dos 40% do meio [classe média]. No Brasil não teve reforma fiscal, nem com [o ex-presidente] Lula, que tornasse o sistema mais progressivo para permitir reduzir as desigualdades. Isso traz questões de fundo também sobre o sistema político e eleitoral brasileiro.

Valor: Como assim?

Piketty: O Brasil é um país onde o candidato pode ter 60% na eleição presidencial, mas depois não tem maioria no Parlamento e é obrigado a fazer coalizões, negociações, o que sem dúvida contribuiu a perpetuar uma certa opacidade da corrupção e não permitiu adotar políticas que precisariam de uma maioria parlamentar. Em muitos países, como França e Reino Unido, se o candidato consegue 51% dos votos, tem maioria muito larga no Parlamento. Em seguida, se sua política não funciona, vamos ver na eleição seguinte. O sistema político do Brasil não permite isso e demanda uma reflexão.

Valor: O senhor parece decepcionado no livro com a social-democracia, não?

Piketty: Sim. Estou decepcionado. A social-democracia, em particular na Europa, mas também em outras partes do mundo, na América do Norte, na América Latina com suas variantes, talvez menos ambiciosa, conseguiu de toda maneira coisas formidáveis. Reduziu a desigualdade como jamais vimos antes, mantendo ao mesmo tempo um nível de crescimento e prosperidade como nunca antes. O problema é que, a partir dos anos 1980-90, a social-democracia não conseguiu pensar a globalização de maneira socialista. O grande erro dos partidos da social-democracia europeia foi avançar na livre circulação de capitais sem nenhum sistema de imposto mundial em comum. Porque essa política de liberalização generalizada de fluxos de capitais teve efeito em todo lugar no mundo. Foi um erro histórico, porque impede redistribuir o quanto quisermos, impede de estabelecer sistema de justiça fiscal e termina por minar o contrato social. Ou seja, as classes média e populares acabam pagando taxa de imposição mais elevada do que os mais ricos, que, por sua vez, podem colocar seu capital em qualquer lugar. E isso termina por questionar a legitimidade do partido social-democrata. Também há novos desafios.

Valor: Quais?

Piketty: Como a questão da justiça educativa e entrada no ensino superior. Era mais fácil para a social-democracia europeia nos anos 1950, 60, 70 ter objetivo de igualdade educativa. Mas depois não foram mais ambiciosos. Esses partidos acabaram se tornando o que eu chamo de “esquerda brâmane” no meu livro, pois atraem o voto de eleitores mais educados, mas perdem a confiança do eleitorado popular. É preciso recuperar uma ambição mais forte de transformação do sistema econômico, fiscal, educativo, se a democracia-social quer realmente mudar as coisas.

Valor: Com a pandemia de covid-19, há risco de sairmos dessa crise com mais desigualdades nas sociedades em geral?

Piketty: É muito cedo para dizer. Pelo momento, tenho a impressão de que essa crise vai legitimar mais despesas sociais, mais investimentos nos sistemas de saúde, obrigar os governos a ter mais imaginação sobre dívida pública. Na Europa, os países vão, enfim, começar a ter uma dívida pública comum. Isso é importante não só para a Europa. A questão é se uniões regionais no plano comercial e financeiro podem se tornar também uniões com orçamento comum, modelos de desenvolvimento comuns, endividamento comum, planos de relance. Há toda uma reforma atualmente da zona monetária única na África Ocidental. Na Europa, é preciso mudar a regra de unanimidade para se ter imposto ou relance em comum. Enquanto persistir esse sistema de decisão, vai ser muito difícil a Europa votar programa de relance econômico realmente ambicioso, impostos justos. Uma das conclusões de meu livro é que, para mudar a economia, é preciso mudar as regras do sistema político. Se isso não for feito ao mesmo tempo, fazemos o jogo dos que apostam no retorno das fronteiras, retorno dos conflitos de identidades como vemos com Marine Le Pen na França, [Matteo] Salvini na Itália, Bolsonaro no Brasil. Estamos num momento decisivo, em que todas as trajetórias são possíveis e diferentes países não vão forçosamente seguir a mesma direção. As coisas estão muito abertas.

Valor: Temos pandemia, tensões geopolíticas fortes, guerra comercial. Uma reforma do capitalismo é possível nesse caos internacional?

Piketty: Penso que não só é possível como é necessário. O crescimento de correntes nacionalistas e xenófobas ameaça continuar se não repensarmos alternativas ao sistema econômico atual. Se explicamos às pessoas que não há alternativa e que só há uma política econômica possível, acabamos nos refugiando em controle de fronteiras como a única coisa que os Estados podem ainda controlar. É indispensável reabrir o debate econômico sobre como organizar a globalização, a economia.

Valor: Como o senhor vê Bolsonaro?

Piketty: Às vezes penso que ele é um Trump piorado. E me inquieta muito a evolução da situação no Brasil. Eu tenho vontade de dizer a Bolsonaro e a seus apoiadores que nunca é tarde para mudar. Na história, vemos muitos governos que mudam sua ideologia quando eles estão no poder face a novos desafios a enfrentar. O Brasil, face à pandemia, precisa de uma verdadeira política social, de investimento na saúde, sistema de renda mínima, e espero que o Brasil vai chegar lá.

Valor: Alguns críticos chamam o senhor de ingênuo, com propostas de superar o capitalismo com estabelecimento de propriedade social, herança para jovens aos 25 anos de idade. O que o senhor responde?

Piketty: Tento me basear no que funcionou no século XX. Quando falo de propriedade social, isso quer dizer mais direito para os representantes de operários nas empresas. É algo adotado na Alemanha e na Suécia, onde até 50% do direito de voto é dos representantes de operários. É algo que os acionistas não gostam, nem na França, nos EUA ou no Brasil, mas funcionou bem na Alemanha e na Suécia, que estão entre os mais ricos e produtivos do mundo. Permite mais participação, mais implicação dos trabalhadores nas empresas. Proponho estender esse sistema a todos os países e ir mais longe. Quanto à propriedade temporária, quando alguém faz fortunas enormes deveria devolver uma parte à sociedade a cada ano, para permitir àqueles que vêm de famílias pobres de começar a vida com um patrimônio mínimo. Proponho uma herança mínima de €120 mil [R$ 717 mil] aos 25 anos. Isso permite dinamizar a sociedade. Quando comparo diferentes sociedades e diferentes períodos históricos, a conclusão é que não serve a nada ter pessoas com bilhões de euros. A economia funciona com um chefe de empresa que, quando acumula alguns milhões de euros, já é imenso sucesso. Mas nas sociedades com mais milionários e mais concentração da fortuna, não é verdade que elas têm mais inovação e mais crescimento. É o contrário. Na verdade, precisamos da redistribuição permanente da renda.

Valor: Como o senhor vê a economia global em alguns anos?

Piketty: Acho que esta crise pode contribuir para uma mudança da ideologia dominante no sistema econômico, na Europa, nos EUA, e espero que no Brasil, indo na direção da economia mais igualitária, mais social, mais equitativa e mais sustentável. Ouso esperar que esse choque nos conduza nessa direção. Mas dependerá da mobilização de cada um. Uma das lições de minhas pesquisas é que há várias trajetórias possíveis e não depende apenas de alguns grupos de elite, de economistas, de jornalistas. Depende, antes de tudo, da mobilização cidadã.

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