O
problema do presidente e asseclas nem é ideológico, é da ordem da cognição
Tem
sido comum ouvirmos queixas sobre a prática do “cancelamento”. São procedentes.
Na etiqueta sem etiqueta das redes sociais, o “cancelamento” consiste numa
avalanche de turbas virtuais que, em questão de horas, derruba a lista de
seguidores de uma pessoa e acaba com seu prestígio digital. Basta uma opinião
fora da ortodoxia das turbas para o sujeito se expor ao “cancelamento”. Há
exemplos diários. O “cancelado” é banido. Os que eram seus admiradores se
convertem em seus “detratores” (guardemos essa palavra, pois ela vai nos pegar
de tocaia alguns parágrafos adiante).
Trata-se de uma pena afetiva: “Ei, nós não gostamos mais de você, ponha-se daqui para fora!”. Podem sobrevir repercussões políticas e econômicas. Políticas porque o “cancelamento” destrói os laços virtuais pegajosos que davam popularidade à infeliz criatura “cancelada”, que se vê de repente degredada, como se tivesse sido expulsa do partido. As pessoas entram em depressão. E econômicas porque os influencers (e eu que achava que nunca escreveria tal barbarismo), que ganham dinheiro com o número de likes, engajamentos, retuítes e coraçõezinhos piscantes, perdem faturamento. As pessoas entram em inadimplência.
Estamos
falando de um flagelo cultural. Escritores e intelectuais são vítimas desse
empastelamento simbólico perpetrado por maiorias barulhentas, intolerantes e
implacáveis.
Mas
não se trata propriamente de uma novidade tecnológica. Parecerá incrível, mas
Alexis de Tocqueville, que morreu em 1859, sem desfrutar os prodígios gozosos
dos smartphones, anotou o germe de tudo isso em seu Democracia na
América: “A maioria traça um círculo formidável em torno do pensamento. Dentro
desses limites o escritor é livre, mas ai dele se ousar sair!”.
Portanto,
a moda do “cancelamento” nada mais faz do que trazer a máxima de Tocqueville
para os dispositivos interconectados que funcionam na velocidade da luz. Nos
nossos dias, a tal América ocupa o epicentro dessa prática nefasta, seguida de
perto pelo Brasil. Aqui, no entanto, além das pessoas físicas – de carne, osso,
mas sem muita massa cinzenta –, a própria máquina de governo decidiu ingressar
com estardalhaço no esporte de “cancelar” a reputação de cidadãos honestos.
Agora,
nesta semana, o jornalista Rubens Valente, do UOL, descobriu e noticiou que uma
agência de comunicação, a pedido do governo federal, preparou uma lista de
77 influencers (reincidi), entre os quais aparecem 44 jornalistas, e
os dividiu em três grupos: os “detratores” (eis a palavra), que criticam o
governo, os “neutros” e os “favoráveis” (que los hay, los hay). Pela legislação
ordinária e pelos princípios constitucionais, o governo não pode discriminar
cidadãos pela opinião que emitam, mas, como o atual governo não liga para a
lei, promove discriminações a toda hora. A lista sugere que as autoridades
adotem condutas diferentes para falar com uns e outros. Uns merecem
“parcerias”. Quanto aos demais, bem, um pouco de “cancelamento” estatal talvez
ajude.
Esse
pessoal na Esplanada dos Ministérios não tem modos? Aliás, será que ninguém ali
pensa? Aliás, de novo, o problema do presidente da República e de seus asseclas
mais próximos não é nem ideológico – é da ordem da cognição. Há sentidos que
eles não apreendem, independentemente de concordarem ou não com o postulado.
Que conduzam os negócios públicos como se fizessem arruaça em redes sociais é
apenas mais um sintoma da limitação cognitiva profunda.
O
“cancelamento” estatal vem junto com o Estado “lacrador”. Expliquemos o
adjetivo. Entre os adictos das redes, o termo “lacração” se refere àquele post ou
àquela atitude performática que “causa”, mas “causa” muito, tipo “causa” assim
demais, cara, você não tem ideia, e fere outras pessoas, mas, tipo assim, tudo
bem. E daí? (Essa interrogação cairia bem de epitáfio.) O que conta é “lacrar”,
tá ligado? O Estado “lacrador”, pilotado por “lacradores”, desconhece a
diferença entre “curti” e “voto aprovado”. Lacra. Cancela.
Falando
em diferenças não percebidas, o presidente não capta a que existe entre um
gabinete clandestino que distribui calúnias anônimas e um órgão de imprensa
registrado em cartório, que recolhe impostos, tem endereço certo e um diretor
de redação com nome e CPF. Não é que, por motivações ideológicas, ele negue a
distinção. Ele simplesmente não a alcança.
Em
28 de maio de 2020, na entrada do Palácio da Alvorada, quando protestou contra
o inquérito do Supremo Tribunal Federal que desbaratou uma indústria ilegal de
fake news e discursos de ódio, o presidente, sem querer, confessou que não tem
ideia dessa diferença essencial para a democracia: “Querem acabar com a mídia
que tenho a meu favor!”.
O
governante brasileiro acha que as fake news são uma “mídia” como
qualquer outra – e como usa as palavras “mídia” e “imprensa” como sinônimas,
fica evidente: não consegue distinguir entre a mentira e a verdade factual,
assim como não aprendeu o que separa a ditadura da democracia. Para ele, só o
que conta é a histeria das redes e suas milícias digitais. Adeus, República.
#cancelamentoestatal.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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