O Estado de S. Paulo
Num mundo como o de hoje, não é mais possível estabelecer uma fronteira nítida entre o que é interno e o que é internacional
Os temas de política externa raramente recebem destaque em campanhas eleitorais, inclusive para presidente da República. Isso é em parte compreensível. País de dimensões continentais, seus conflitos de fronteira foram, em sua maioria, negociados pelo Barão do Rio Branco. As grandes conflagrações mundiais não chegaram a semear discórdia entre nós. Desta vez, no entanto, poderá ser diferente. Os equívocos cometidos e as oportunidades perdidas pela diplomacia das trevas que se instalou no País nos primeiros anos do atual governo demandam um amplo debate para entender os desafios, delinear correções e novos rumos. As próximas eleições serão uma oportunidade para isso.
Os Estados Unidos são, há várias décadas,
um parceiro importante do Brasil, em vários campos: no comércio e nos
investimentos, na cooperação empresarial e nas muitas afinidades entre nossas
sociedades. Não obstante, foi exatamente o país escolhido por nosso governo
para criticar decisões internas e para questionar o resultado das eleições
norte-americanas, como se já não bastassem as divergências explícitas em
relação a um dos programas centrais do candidato eleito nos Estados Unidos, a
saber, o clima. Até hoje, os dois presidentes não tiveram uma única entrevista,
nem mesmo uma conversa por telefone, o que é inédito nas relações entre
Brasília e Washington.
A China distinguiu o Brasil como um
parceiro estratégico global. O comércio e os investimentos entre os dois países
floresceram. Mas, no que parece ter se tornado uma praxe no Brasil, as
autoridades chinesas foram alvo das provocações e manifestações de hostilidade,
inclusive de representantes do mundo oficial brasileiro.
Desde a Rio 92, o compromisso do Brasil
para com o clima se havia transformado num dos pilares da diplomacia e a
plataforma de uma bem recebida liderança mundial do País. A reversão nas
políticas ambientais brasileiras, sem um motivo plausível, no entanto,
contribuiu para o isolamento do País e para a suspensão de recursos para
financiar projetos brasileiros. A União Europeia anunciou regras mais severas
para a importação de produtos brasileiros, tais como soja, carne e café. A
Secretaria do Tesouro norte-americana, por sua vez, já antecipou que a redução
do desmatamento na Amazônia passou a ser um requisito para a adesão do Brasil à
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Por fim, o mais inquietante desdobramento
de uma sucessão de equívocos é ilustrado por notícias recentes sobre a
aproximação entre a China e a Argentina. A primeira delas registra que o
intercâmbio comercial entre os dois países já se tornou mais relevante para a
Argentina do que o comércio com o Brasil. A segunda chama a atenção para a
adesão da Argentina à iniciativa do programa chinês Um Cinturão, Um Caminho. E
a última é o contrato de construção da central nuclear de Atucha III, com
financiamento chinês e a participação de empresas chinesas. Por ironia da
história, a cooperação nuclear Brasil-argentina havia sido o ponto de partida
da reaproximação entre Buenos Aires e Brasília e um dos alicerces do Mercosul.
Cada um destes fatos isoladamente não teria
grande significado. Tomados em conjunto, no entanto, sinalizam uma aposta da
China na Argentina, a opção da Argentina pela China e um erro estratégico do
Brasil, decorrente de sua indiferença em relação à Argentina e ao próprio
Mercosul. É preciso lembrar que o processo de integração econômica é, antes de
tudo, um ato político, ainda que com um substrato econômico, como afirmava a
Declaração Schuman, em 1950, o ato fundador do Mercado Comum Europeu. Além
disso, o progresso da integração não pode ser aferido unicamente por decimais
da tarifa externa comum, sem levar em conta a interpenetração das economias e a
harmonização de suas regras, assim como as convergências em vários outros
campos. A flexibilização proposta pelo Uruguai e apoiada pelo Brasil nada mais
é do que o “começo do fim”, como tive a oportunidade de sublinhar, num artigo
publicado no Estado no ano passado. O Brasil, de líder da integração
sul-americana, transformouse num caudatário do Uruguai. É bem verdade, o
Mercosul precisa há tempo de uma reforma em profundidade, mas para reformar não
é preciso demolir um dos pilares centrais do Tratado de Assunção.
Num mundo globalizado e interdependente,
não é mais possível estabelecer uma fronteira nítida entre o que é interno e o
que é internacional. A agenda global reverbera nas questões locais. O
desmatamento da Amazônia é uma preocupação da comunidade internacional que
coincide com as aspirações de milhões de brasileiras e brasileiros, convencidos
hoje de que a proteção da floresta e dos povos indígenas é um dever de todos
nós.
Os temas globais não são, como pareciam ser
antes, parte de uma longínqua agenda externa, mas expressam igualmente
interesses e preocupações das brasileiras e brasileiros que merecem ser
debatidas neste encontro maior da democracia, que são as eleições.
* Foi embaixador do Brasil em Washington
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