Correio Braziliense
Petista enfrenta a onda reacionária que
varreu o mundo e o risco de uma recessão mundial
Jano (do latim Janus ou Ianus) era um ser
mitológico romano com duas cabeças. Simbolizava o passado e o futuro, o
dualismo relativo de todas as coisas. No seu templo, as portas ficavam abertas
em tempos de guerra e eram fechadas durante a paz. Era o deus tutelar de todos
os começos, patrono de todos os finais. O busto Ianus Geminus está no Museu do
Vaticano, em Roma. Jano foi escolhido para representar o primeiro mês do ano do
calendário romano (janeiro, do latim januarius), pelo imperador Numa Pompílio
(715-672 a.C.). Estamos no final do mês de Jano.
O fato de suas faces estarem viradas para
lados opostos contribui para a dualidade desse deus, uma representa o novo e a
outra, o velho; as transições, o espaço entre dois pontos e o caminho entre os
extremos. O filósofo e sociólogo alemão Jüngen Habermas, expoente da famosa
Escola de Frankfurt, em novembro de 1984, numa palestra no Parlamento espanhol,
invocou a imagem de Jano para falar sobre o caráter inacabado da modernidade.
Habermas dedicou a vida ao estudo da democracia, desenvolveu as teorias do agir comunicativo, da política deliberativa e da esfera pública. Àquela época, estudava a crise do Estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas, tema que abordou no seu discurso, intitulado A Nova Obscuridade (Editora Unesp, 2011). Muitas de suas previsões se confirmaram. Houve uma mudança de paradigma da sociedade do trabalho para a sociedade da comunicação, o que explica muito do que está acontecendo no mundo e no Brasil.
Para ele, a razão instrumental desencadeada
pelas forças produtivas e a razão funcionalista traduzida nas capacidades de
organização e planejamento "deveriam abrir caminho para a vida humana
digna, igualitária e ao mesmo tempo libertária". Essa fora a ilusão da
sociedade do trabalho, que hoje se reproduz em relação às novas tecnologias, 40
anos depois. É falsa ideia de que a desregulamentação da internet e dos meios
digitais, controlados pelo oligopólio das big techs, seria a redenção humana, a
conquista definitiva da liberdade e da democracia.
Enquanto a esquerda brasileira pautou sua
atuação na centralidade do trabalho e nos projetos identitários, a direita mais
reacionária apropriou-se das redes sociais de comunicação pela internet e das
frustrações individuais. Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o PT
chegaram ao poder, em 2002, a centralidade do trabalho já estava ultrapassada
pela sociedade da comunicação e pela economia do conhecimento. Agora, mais
ainda.
Com razão, a filósofa Hannah Arendt, na
segunda metade do século passado, dizia que as ideias centradas no trabalho
levaram aos totalitarismos. Segundo ela, a condição humana está relacionada ao
"labor" (o processo biológico do corpo humano), ao "trabalho"
(a criação de objetos e transformação da natureza) e, sobretudo, à
"ação" (a única atividade que independe da medição da matéria e se
correlaciona com a condição humana da pluralidade). O que determina a condição
humana é o agir e o pensar politicamente, daí a necessidade vital do espaço
público e das liberdades.
Novas contingências
Entretanto, Lula volta ao poder com a
cabeça de Jano. Dispõe de diagnósticos das mudanças em curso, aqui e no mundo,
mas ainda não se livrou completamente de dogmas da antiga sociedade industrial,
do valor-trabalho na geração de riquezas e do velho
nacional-desenvolvimentismo. No seu governo, jovens gestores públicos e velhos
militantes políticos também representam as faces de Jano.
Logo após a queda do Muro de Berlim e o fim
da União Soviética, que marcaram o colapso do chamado "socialismo
real" europeu, Habermas comparou a Europa do fim da Guerra Fria a uma
fotografia "descongelada" — aquela de Roosevelt, Stalin e Churchill,
em fevereiro de 1945, na Crimeia, quando dividiram o mundo —, como se a
história anterior à guerra fosse retomada de onde foi interrompida, na Bósnia,
na Sérvia e, agora, diríamos, na Ucrânia. Lula se comporta como mocinho de um
filme cujas imagens estiveram congeladas.
A conjuntura também mostra as faces de Jano.
O que é determinante para o nosso futuro? A retomada do programa de governo de
Lula de 20 anos atrás, que cumpriu seu papel em contingências favoráveis? Não é
por aí. Lula ganhou as eleições graças à memória popular da bonança de seu
governo anterior, mas enfrenta a onda reacionária que hoje varre o mundo e o
risco de uma recessão mundial. Logo na primeira semana de mandato, foi
surpreendido por uma tentativa de golpe e uma crise militar.
A onda reacionária ainda passa pelo Brasil,
como ficou demonstrado em 8 de janeiro. O horizonte econômico é de incertezas,
a "contabilidade criativa" da Americanas pode ser a ponta de um
iceberg.
O carisma pessoal e as alianças ao centro
possibilitaram a vitória eleitoral dramática de Lula no segundo turno. O
sucesso do seu novo mandato depende de um programa social-liberal exequível e
da preservação da ampla coalizão democrática que se formou, não de um
"governo popular" com uma agenda sindical classista.
A centralidade de seu governo está na defesa da democracia, no compromisso com a sustentabilidade e no combate às desigualdades, sem uma visão exclusivista, sectária e revanchista.
2 comentários:
Excelente coluna! Lula se elegeu para defender a democracia e retomar ações que deram certo em seus 2 primeiros governos, mas parece decidido a trazer de volta também as coisas que deram errado, e quem sabe até a velha corrupção petista que foi tão rejeitada pela população na década passada. Os zumbis petistas estão em polvorosa com a perspectiva de voltarem com tudo. O Brasil não merece apenas mais do mesmo dos governos lulistas. Isto é insuficiente. Marina, Alckmin, Simone Tebet e muitos outros NÃO petistas têm que ser melhor aproveitados neste governo! Mas os zumbis querem o domínio quase completo...
Pois é...
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