A oportunidade de Barroso no comando do STF
O Globo
Novo presidente poderá contribuir para
resgate da normalidade institucional e Judiciário mais ágil
O ministro Luís Roberto Barroso assume
a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF)
diante de um ambiente político bem menos conflagrado que o encontrado pela antecessora, Rosa Weber.
Durante a gestão de Rosa, o país passou pela eleição mais polarizada de sua
História recente, o STF foi alvo dos ataques do 8 de Janeiro, e a democracia
brasileira resistiu em boa parte graças à ação do próprio Supremo perante a
ameaça golpista. Esse momento — ainda bem — passou. Agora cabe a Barroso,
afastada a ameaça antidemocrática, aproveitar o clima mais sereno para continuar,
em sua gestão, a promover o resgate da normalidade institucional.
Em seu discurso de posse, ele demonstrou entender a missão e adotou um tom conciliador ao tratar dos temas que hoje polarizam a sociedade. “O combate eficiente à criminalidade não é incompatível com o respeito aos direitos humanos. O enfrentamento à corrupção não é incompatível com o devido processo legal”, afirmou. “Estamos todos no mesmo barco e precisamos trabalhar para evitar tempestades e conduzi-lo a porto seguro. Se ele naufragar, o naufrágio é de todos.”
Resgate da normalidade institucional, vale
dizer, não significa ausência de conflitos. Numa democracia, eles são esperados
e naturais. Desde que arbitrados dentro das regras, apenas traduzem a
vitalidade das instituições em seu zelo por atender às demandas da sociedade. O
essencial é que cada uma cumpra seu papel, uma equilibrando a outra, como na
célebre imagem dos freios e contrapesos que ilustra os mecanismos intrínsecos à
democracia. Freios e contrapesos, por sinal, sempre exercem força uns sobre os
outros, ainda que pareçam estáticos.
O Congresso, com representantes eleitos pelo
povo, é e continuará a ser a instituição mais importante da democracia. Em
princípio, deve ser o palco das discussões sobre as questões mais relevantes e
controversas. E, na maioria das vezes, é. Mas é inegável que o Supremo adquiriu
nos últimos anos protagonismo em inúmeros casos, despertando críticas à
judicialização excessiva ou acusações de politização e ativismo judicial que
não podem ser ignoradas.
Muitas vezes isso se deve tão somente à
omissão do Parlamento, que faz acorrer ao STF demandas espinhosas evitadas
pelos congressistas. Mas não apenas. Em seu discurso, Barroso chamou atenção
para uma característica que distingue o Brasil de outros países. Nossa
Constituição é exaustiva ao tratar dos assuntos mais diversos: sistemas
econômico, tributário e previdenciário, educação, meio ambiente, cultura,
comunidades indígenas, família, criança, adolescente, idoso e por aí afora.
“Incluir uma matéria na Constituição é, em larga medida, retirá-la da política
e trazê-la para o Direito”, disse. “Nenhum tribunal do mundo decide tantas
questões divisivas da sociedade. Essa é a causa da judicialização ampla da vida
no Brasil. Não se trata de ativismo, mas de desenho institucional.”
Além de decidir questões constitucionais, a
Corte ainda conduz inquéritos e julga ações penais. Tudo isso se acumula num
acervo de quase 24 mil processos que aguardam julgamento. É verdade que esse
estoque tem diminuído, como resultado em parte de restrições ao foro
privilegiado, em parte de julgamentos das ações penais pelas turmas de
ministros. As novas regras adotadas na gestão de Rosa Weber para pedidos de
vista e decisões monocráticas (com prazos mais rígidos) também contribuirão
para trazer maior agilidade. O desafio de alcançá-la persiste, porém. Não
apenas no STF, mas em todo o Judiciário.
Barroso demonstrou ter plena consciência
disso. Comprometeu-se a “aumentar a eficiência e a celeridade da tramitação
processual” e disse já mapear “gargalos e pontos de congestionamento”. “Vamos
enfrentá- los”, afirmou. “Não há lugar para celebração aqui: precisamos
melhorar a qualidade do serviço que prestamos à sociedade brasileira.” Quanto
ao próprio Supremo, ele já defendeu no passado que o tribunal deveria julgar
não mais de 500 processos por ano (tem julgado mais de 70 mil). Tal meta
dependeria de alterações na lei, mas mudanças regimentais já ajudariam a dar
maior agilidade à Corte.
Um efeito paradoxal dos ataques à democracia
e do 8 de Janeiro foi terem contribuído para fortalecer o espírito de união
entre os ministros do STF. Basta notar o discurso repleto de elogios do decano
do tribunal, ministro Gilmar Mendes, saudando em nome da Corte o novo
presidente, outrora seu desafeto. Barroso deveria aproveitar o momento de união
para pôr em marcha sua agenda de agilidade no Judiciário. O Brasil só teria a
ganhar.
Mais importante foi a atitude conciliadora que adotou no discurso, proferido ao lado dos presidentes dos demais Poderes — Luiz Inácio Lula da Silva, da República, Rodrigo Pacheco, do Senado, e Arthur Lira, da Câmara. É verdade que o Supremo brasileiro, em contraste com outras cortes constitucionais do mundo, tem o dever de analisar as mais variadas questões sempre que instado. Mas é fundamental que, nessa hora, o tribunal mantenha o comedimento e, sem se furtar a seu dever, evite invadir atribuições dos legisladores. Novamente, Barroso demonstrou ter ciência do desafio: “É imperativo que o Tribunal aja com autocontenção e em diálogo com os outros Poderes e a sociedade, como sempre procuramos fazer e pretendo intensificar. Numa democracia, não há Poderes hegemônicos. Garantindo a independência de cada um, conviveremos em harmonia, parceiros institucionais pelo bem do Brasil”. Que ele saiba transformar suas palavras em atos.
A ordem dos fatores
Folha de S. Paulo
Diálogo do governo com BC é positivo, mas
alcance da queda do juro depende do 1º
É positivo que tanto o ministro da Fazenda,
Fernando Haddad, como o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, falem
em harmonia na política econômica. Foi assim que se manifestaram por ocasião
da reunião que
tiveram com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na
quarta-feira (28).
O BC vem alertando para o risco de
descumprimento das metas fiscais, em especial do intento improvável de zerar o
déficit orçamentário do governo federal em 2024. Qualquer deslize nessa frente
poderá pressionar a inflação e limitar o espaço para a queda da taxa Selic,
hoje em 12,75% ao ano.
A autoridade monetária e o próprio Campos
Neto foram alvo de repetidos ataques de Lula, que
questionou o nível dos juros e a meta de inflação, felizmente
mantida em 3% para os próximos três anos. Desde a posse, o petista ainda não
havia concedido audiência ao chefe do BC. A disposição ao diálogo agora pode
abrir novos caminhos.
Haddad, por seu turno, vê-se isolado no
governo na defesa do déficit zero. Interessa mostrar unidade com o BC para
convencer o Palácio do Planalto de que não há espaço para flertes com a
irresponsabilidade fiscal. Como sempre, gastar mais é o que querem o PT e a ala
política do Executivo.
Com a união das duas autoridades da área
econômica em defesa da preservação das metas fiscais, é mais provável que o
presidente se disponha a apoiá-las, ao menos por ora. Para tanto, ajuda que a
economia continue a mostrar vigor e que a popularidade do governo se mantenha
satisfatória.
Cumpre explorar, no entanto, o que querem
dizer Campos e Haddad quando falam em harmonia. Apesar das juras de
alinhamento, o equilíbrio entre ambos é precário.
A lógica da Fazenda até aqui foi a de
sancionar as prioridades de gasto do governo e buscar fechar as contas por meio
de significativo e improvável aumento da arrecadação. Haddad indica desejar que
o BC se mostre flexível e conceda o benefício da dúvida, aliviando os juros com
base na meta fiscal.
Já Campos não quer antagonizar o governo, no
que acerta. Mas há limites para o que o BC pode fazer. Qualquer afrouxamento em
desalinho com a mecânica do sistema de metas de inflação poderia impactar os
juros de longo prazo e a taxa de câmbio, o que levaria a efeito oposto ao que
se busca.
Na ótica da política monetária, harmonia
implica que a gestão das finanças públicas faça a sua parte, preferivelmente
por meio de controles mais austeros nos gastos para que então haja espaço para
juros menores de modo sustentável.
Na conjuntura atual, diante do crescimento
exacerbado das despesas e do déficit orçamentário, a ordem dos fatores importa.
Boa energia
Folha de S. Paulo
Matriz brasileira é ímpar, mas não berço
esplêndido para ignorar crise climática
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT),
como todo o Brasil, tem motivos para comemorar a posição privilegiada do país
na transição energética de que o planeta necessita. Mas isso não dá direito a
ufanismo nem miopia fora de hora.
"Nós já passamos eles [sic] no milho, já
passamos em soja e já passamos em algodão. Nós vamos passar na questão
energética", vangloriou-se o mandatário, em comparação com os Estados
Unidos, ao assinar na quarta-feira (27) contratos de transmissão de
eletricidade.
A verdade é que não precisamos nos medir com
os EUA, porque já os batemos nesse quesito, e faz tempo. Não há no mundo
economia de grande porte com matriz energética de fontes renováveis comparável
à do Brasil.
Por aqui temos ainda 50,8% da energia
consumida proveniente de combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão
mineral), que agravam o efeito estufa. Já as fontes renováveis
(hidroeletricidade, biomassa, eólica, solar) respondem por 47,4% da demanda,
segundo o Balanço Energético Nacional 2023.
A energia mobilizada nos EUA tem 79% de
origem fóssil, ante meros 13% renováveis. No mundo, a proporção fica em 80% e
15%, respectivamente (as diferenças para 100% correspondem a outras fontes não
renováveis, como a nuclear).
Quando se tem em mente a transição energética
no contexto da emergência climática, porém, os combustíveis fósseis ganham
proeminência por serem, de longe, os principais emissores de carbono no mundo.
Não é o caso do Brasil, cuja maior contribuição para o aquecimento global está
no uso da terra.
Em poucas palavras, é o avanço da fronteira
do agronegócio que propulsiona o desmatamento, nossa maior fonte de poluição
climática. Também pesam o metano emitido na pecuária, os fertilizantes e manejo
inadequado do solo, mas a parte do leão cabe à abertura de áreas para pastos e
agricultura.
Lula até teria vantagem para contar aqui
também, dada a redução de 48% na devastação da Amazônia nos oito primeiros
meses de seu governo —ainda que a
boa notícia seja esmaecida por altas em derrubadas do cerrado. E a
estiagem na floresta amazônica faz temer por uma explosão das queimadas.
O governo petista se contradiz ao vender transição energética com a mão esquerda e investir na extração de petróleo novo com a direita. Se a meta é contribuir para enfrentar a crise climática, essa prioridade tem de ser revista.
O STF entre o ideal e a realidade
O Estado de S. Paulo
Barroso apelou à independência e à harmonia
entre os Poderes. Espera-se que seja coerente e contenha abusos que
transformaram o Judiciário de poder moderador em poder tensionador
Segundo os apresentadores da TV Justiça, a
posse de Luís Roberto Barroso como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF)
foi das mais emocionantes da história. Entre a abertura, com o Hino Nacional, e
o encerramento, com Todo Sentimento, na voz de Maria Bethânia, o decano Gilmar
Mendes falou em “democracia defensiva” (eufemismo para “democracia militante”,
categoria da Constituição alemã, não da brasileira), fez uma ofensiva contra o
ex-presidente Jair Bolsonaro e brindou o “grande estadista” Lula da Silva. Na
presença dos presidentes da República, da Câmara e do Senado, pediu harmonia e
pacificação. Enquanto isso, na Câmara tramitava uma PEC dando poder ao
Congresso de derrubar decisões do Supremo, e o Senado aprovava o marco temporal
para a demarcação de terras indígenas, que o STF havia declarado
inconstitucional. O choque de realidade dimensiona o desafio do novo
presidente.
Barroso louvou a Justiça brasileira como uma
“das mais produtivas do planeta”, julgando 30 milhões de processos por ano. Mas
quantidade não significa produtividade. Ela é também das mais caras e lentas.
Nenhuma corporação no Brasil (quiçá no mundo) extrai tantos privilégios da lei
quanto a responsável por aplicá-la igualmente a todos. O Brasil está mal nos
rankings de segurança jurídica. Uma pesquisa da Associação dos Magistrados
Brasileiros revela que 52% dos juízes de primeiro grau não consideram a
jurisprudência e 55% dos ministros de tribunais superiores não se pautam por
súmulas. Ou seja, em sua maioria, os juízes do piso não seguem as cortes e os
do topo não seguem nem a si mesmos.
Tudo isso se dá no contexto do tumulto
político e institucional que tomou o País nos últimos anos. Desde que Barroso é
ministro do Supremo, o Brasil passou pelas Jornadas de Junho, o petrolão, o
impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a ascensão de Bolsonaro.
Muitas vezes o STF ajudou a restaurar a normalidade institucional – por
exemplo, garantindo prerrogativas dos Estados na pandemia ou pondo fim ao
orçamento secreto –, mas, no afã de combater abusos ou omissões do Ministério
Público, do Congresso e do Executivo, cometeu abusos que minaram essa
normalidade.
Em meio à espiral de judicialização da
política, retroalimentada pela politização da Justiça, Barroso falou em
contenção do Judiciário, mas deu mostras de incontinência ao listar
prioridades, como se fosse candidato num palanque: combate à pobreza, desenvolvimento
sustentável, investimentos em educação básica, ciência, saneamento e moradia e
retomada da liderança ambiental do Brasil. São metas louváveis, claro, mas para
um presidente da República, e não para o presidente do STF. O povo já elegeu
seus representantes no Executivo e no Legislativo. Boas ou ruins, as decisões
são desses mandatários. À Corte cabe, se provocada, garantir sua consonância
com a Constituição.
O problema é como entender essa consonância.
Barroso, em sua obra Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade
Democrática, afirma que o Direito é política, enquanto produto da vontade da
maioria na Constituição, e não é política, porque não se pode submeter “a noção
do que é correto e justo à vontade de quem detém o poder”. Entre esse “é” e o
“não é” seria natural deduzir a demarcação entre os Poderes: o Direito é
política porque o Legislativo tem autonomia para positivar a vontade da polis,
e não é porque o Judiciário tem autonomia para interpretá-la nos conflitos
particulares. Mas Barroso conclui pela “fluidez da fronteira entre política e
justiça”: porque o Direito é política, ante insuficiências do Legislativo, cabe
ao Judiciário normatizar o que é “correto e justo”. Com esse tipo de
hermenêutica, a Corte já deu mostras de impaciência com seu papel de guardiã da
Constituição e quis ser sua reformadora.
Barroso aludiu à sua fórmula predileta para
descrever a magistratura: a “vanguarda iluminista que empurra a história na
direção do progresso civilizatório”. Mas, como sempre e mais do que nunca, o
País precisa é de um Judiciário que se atenha às normas e competências traçadas
pela Constituição.
Barricadas contra o diálogo
O Estado de S. Paulo
Ao valerem-se de piquetes, estudantes em
greve na USP agridem o direito de docentes e colegas, extrapolam o espírito de
liberdade da universidade e afrontam a história da instituição
A Universidade de São Paulo (USP) tornou-se
alvo de uma greve de uma parcela de estudantes indignados e prejudicados pela
perda de mais de 800 professores nos últimos nove anos. Nada mais justo que se
cobre eficiência do ensino de uma instituição mantida pelos contribuintes
paulistas. Porém, ao levantar barricadas nas escolas da USP, inclusive no
“território livre” da Faculdade de Direito, os alunos extrapolaram a essência
da vida universitária e da cidadania em um Estado Democrático de Direito.
Abandonaram o diálogo para aderir à agressão.
Universidades são, por natureza, espaços
livres de difusão do conhecimento, do estímulo ao pensamento crítico e do
debate respeitoso de ideias. O convívio em seus campi pressupõe perseverança no
diálogo, conduzido sob argumentação fundamentada e racional. Tal princípio
obviamente não presume nenhuma forma de violência, interna ou externa. Quando
optaram por impedir professores de ministrar aulas e colegas de assistir a elas
presencialmente, os grevistas escolheram o caminho da força em detrimento da
razão.
O movimento levou a direção de faculdades da
USP a suspender temporariamente as aulas. Porém, barricadas foram montadas na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e em outras unidades,
sob a conivência dos docentes que aderiram à greve. Nas Arcadas do Largo de São
Francisco, onde há pouco mais de um ano houve comovente ato em defesa da
democracia contra os arreganhos bolsonaristas, o professor titular de Direito
Financeiro Fernando Scaff foi barrado por estudantes, como reportou o Estadão.
“São alunos de Direito impedindo um direito fundamental, de ir e vir”,
constatou.
Não há dúvidas sobre a relevância da pauta de
reivindicações. A USP perdeu 818 acadêmicos entre 2014 e 2023, algo em torno de
15% de seu corpo docente, enquanto manteve constante seu total de alunos. O
período para a graduação foi postergado pela ausência de professores para
ministrar disciplinas, e cursos como o de línguas japonesa e coreana acabaram
cancelados pela mesma razão.
A demanda pela elevação do valor das bolsas
para os estudantes de baixa renda, em uma universidade cujo acesso deve se
expandir e diversificar cada vez mais, tem mérito. Da mesma forma, há
consistência na reivindicação por melhorias no Hospital Universitário,
acrescentada pelos alunos da Faculdade de Medicina. Tais pautas não são
refutadas, mas endossadas pelo reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior, que se
recusou a responder com força policial a um movimento que se vale da força das
barricadas. Suas ponderações e pedidos de paciência, porém, não tiveram a
repercussão esperada na mais recente tentativa de diálogo.
A rigor, a USP não pode ser acusada de
negligência. A universidade enfrenta crise financeira há anos, refletida em uma
folha de pagamentos equivalente à maior parte de sua receita, advinda de parte
da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). À
situação fiscal somou-se a suspensão de contratações durante a pandemia. Uma
vez reaberta, a absorção de novos professores deve seguir regras protocolares,
e não há alternativa expedita senão a absorção de docentes temporários – outra
queixa dos estudantes.
O reitor Carlotti prometeu repor todas as 818
vagas em aberto até o fim de 2024. Não há dúvidas sobre o longo período. Mas,
em se tratando de uma instituição pública ciosa de sua liberdade de cátedra e
imbuída de seus princípios de responsabilidade, tampouco pode haver improvisos.
Não foi por acaso, mas reflexo de sua integridade e sua produção acadêmica, a
recente inserção da USP entre as 100 melhores universidades do mundo em dois
rankings internacionais.
A agressividade do movimento estudantil não
condiz com os 89 anos de uma instituição de excelência no ensino superior e na
pesquisa científica ao desenvolvimento de São Paulo e do Brasil. Barricadas e
agressões verbais e virtuais não fazem sentido quando se dão em uma casa onde
imperam a liberdade e o diálogo. “Prefiro pensar a USP como uma universidade
que defende a liberdade, até de divergir, mas conversando”, ponderou o reitor
Carlotti ao Estadão. “Formamos os nossos alunos para que sejam críticos, mas
esse tipo de movimento, que usa a força, não cabe dentro da USP.”
Barbárie liberada
O Estado de S. Paulo
ONU omite-se diante de limpeza étnica do
Azerbaijão contra armênios de Nagorno-Karabakh
O enclave armênio de Nagorno-Karabakh ruiu
sob o poderio militar da ditadura do Azerbaijão e o silêncio das Nações Unidas
e das potências diante de agressões motivadas pelo inconteste objetivo de
limpeza étnica. O êxodo de mais de dois terços da população local para a
República da Armênia em apenas cinco dias, sob o temor de um novo genocídio,
expõe a gravidade de uma crise humanitária que se desenhava havia nove meses e
que, agora, se tornou um desafio concreto. Ao omitir-se, a comunidade
internacional expôs seu fracasso em promover uma solução civilizatória para um
conflito latente há pelo menos três décadas. E pior: consentiu com a barbárie.
Ao final de nove dias de ofensiva azeri, o
governo não reconhecido da República Artsakh, como se autodenomina o enclave
armênio, emitiu decreto no último dia 28 sobre sua extinção até o fim deste
ano. O presidente Samvel Shahramanyan incluiu no texto a orientação para as
famílias armênias decidirem sobre sua permanência, sob domínio do Azerbaijão,
ou retirada do país. Mais de 65 mil já haviam tomado a única via de conexão da
região com a República da Armênia – e com o resto do mundo – em busca de
refúgio. Ao restante da população, de 120 mil habitantes, não há alternativa
senão abandonar o local onde gerações de cristãos armênios viveram por quase
dois milênios.
A dimensão da crise humanitária, portanto,
está ainda pela metade. O espectro do genocídio de mais de 1,5 milhão de
armênios promovido pelo Império Otomano em 1915 paira com clareza na memória
coletiva de um povo que, a duras penas, sobrevivia ao domínio de Estados
muçulmanos. Na era soviética, o enclave no Azerbaijão encontrou proteção em
Moscou. Mas o desmoronamento da União Soviética desencadeou conflitos entre o
Azerbaijão e a República da Armênia sobre o domínio de Nagorno-Karabakh, que se
desdobraram em extermínios de civis.
A independência da República de Artsakh,
declarada em 1994, jamais foi reconhecida pelas Nações Unidas. Preferiram não
mexer nesse vespeiro geopolítico no Cáucaso, onde Irã, Turquia, Rússia, Síria e
Estados Unidos se movimentam. A rigor, vigorava um pacto de cessar-fogo desde
2020, até que o governo azeri bloqueou, em dezembro passado, a ligação da
região à República da Armênia para impedir o acesso de remédios, combustíveis,
alimentos e organizações humanitárias. O quadro estava armado desde então para
a violenta expulsão dos armênios de Nagorno-Karabakh, sob ameaça de extermínio.
A operação militar do Azerbaijão durou apenas oito dias – sem que o Conselho de Segurança das Nações Unidas emitisse uma mínima condenação. As Chancelarias das potências não foram além de apelos ao cessar-fogo, alcançado no último dia 20 com mediação russa e desconsiderado pelo ditador Aliyev. O silêncio do Conselho de Segurança – fruto de considerações geopolíticas complexas, entre as quais certamente não figura com destaque a aflição dos armênios étnicos de Nagorno-Karabach – dá a entender que o processo de limpeza étnica na região está liberado. Compreende-se que não é uma situação simples, mas é forçoso notar que, mais uma vez, a ONU se mostra inútil para impedir a barbárie.
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