Folha de S. Paulo
O que de fato somos todos é fenotipicamente
diversos, e mestiço é carapuça racial
Segundo a mais confiável fonte de dados primários do país, a maioria da população brasileira é parda. O IBGE falou, está falado. Mas cabe uma ressalva sobre certa recepção pública desse achado. É que da palavra pardo se deduziu mestiço (do latim "mixticius", misturado). Em termos etnológicos, a mistura seria combinar duas etnias. Dentro dessa lógica, se um louro dolicocéfalo alemão se casa com uma morena francesa, o filho será mestiço. O mesmo acontece com uma japonesa e um chinês. E, claro, uma ruandesa hutu com um tutsi.
Mas pode não ser nada disso. Troque-se o
critério de etnia por cor da pele, o filho da francesa será branco europeu, o
da japonesa branco asiático, e o da hutu, de cor preta, também não será
considerado mestiço. Para dar credibilidade à mestiçagem, é preciso primeiro acreditar em raça, depois na
realidade humana da mistura. Por isso, na prática, aquele nipo-chinês seria
considerado mestiço tanto por japoneses como por chineses: predominaria a
ilusão da raça, não a evidência da cor.
No paradigma colonial de branquitude, todo
desvio desse padrão reprodutivo significa mestiçagem. Nos EUA, pode-se ser
branquíssimo, mas uma "gota de sangue negra" (leia-se parentesco
afro) produz o "half bred", mestiço. Como sangue nenhum tem cor além
da vermelha, fica evidente que essa classificação é fake, manipulação de raça
como categoria ideológica de dominação social.
A intelectualidade latino-americana embarcou
na canoa da originalidade étnica, com prolíficas reflexões para-literárias.
Entre nós, o luso-tropicalismo de Gilberto Freyre outorga à mestiçagem um singular estatuto civilizatório. Razão: "uma poligamia
suavemente disfarçada, que teria obtido a aprovação de especialistas em
eugenia, pois os pais, em muitos casos, eram homens de primeira
qualidade". Logo, "uma escravidão desse tipo foi útil ao
desenvolvimento social no Brasil" (em "Escravidão, monarquia e o
Brasil moderno").
Respaldado pela biologia de machos brancos, o
mestiço justificaria a própria escravidão. Aos pretos, caberia extinção
progressiva. Mas esse desejo de morte, genocida, foi vencido pela vontade
vital: dez por cento declaram-se negros, a maioria se diz parda, gradação
cromática que não resulta de "raças" mescladas, e sim da força
latente de uma diversidade a fogo brando, imperturbada pelo Estado. Na Colônia,
indígena era "negro da terra". Não por cor, por categorização. Hoje,
negro é pertencimento político-existencial, embasado num fenótipo que varia do
mais ao menos escuro, dito pardo. É categoria de biopoder, designativa de um
lugar móvel na luta contra a dominação da farsa histórica da raça. O que de
fato somos todos: fenotipicamente diversos. Mestiço é uma carapuça racial,
matizada por meio-sorriso literário.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
8 comentários:
Bobagem, só pra tentar desmontar a correta argumentação do Risério. A mestiçagem ou mistura não é obrigatoriamente de raça mas também de cor ou fenótipo.
Prá quem quiser ir além do embate ideológico e ir pro campo da discussão da realidade brasileira o último livro do Risério - "Mestiçagem, identidade e liberdade" é um primor.
"Mestiçagem, Identidade e Liberdade"
. De: Antônio Risério.
■Vou ler; não vou mais adiar a leitura.
■■■E com este artigo do sempre relevante Wilson Gomes e provocado e estimulado pelos comentários de Cláudio Serricchio, acabo de decidir que vou colocar, na minha listinha de leituras, o livro do Antônio Risério à frente do livro "A Peste", do meu sempre admirado Albert Camus, na tradução (versão?) feita por Graciliano Ramos.
Bobagem mesmo! O colunista adota um conceito restritíssimo de mestiçagem, sem qualquer vantagem ou motivo.
Que bobagem,sô!
MAM
Sim, o livro do Risério é impagável, imperdível, obrigatório! MAM
Achei o artigo confuso,''dez por cento declaram-se negros'',não é verdade,essa percentagem é de autodeclarados ''pretos'',quando alguém se diz pardo, subentende-se sua negritude,segundo o IBGE,pardos e pretos são negros.
Darcy Ribeiro, o maior antropólogo brasileiro, sempre tratou nosso povo como principalmente mestiço, e jamais questionou o conceito de mestiçagem quando aplicado ao Brasil.
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