terça-feira, 27 de agosto de 2024

Pedro Cafardo - O caótico trânsito de São Paulo clama por reforma

Valor Econômico

Não é recomendável esquecer que milhões de paulistanos usam transportes individuais

A campanha eleitoral avança nos municípios e, com perdão dos leitores não paulistanos, é preciso falar sobre “triviais” problemas pouco abordados pelos candidatos a prefeito de São Paulo. Claro que eles devem apresentar seus projetos principalmente para áreas essenciais, como educação, habitação, saúde e segurança.

Existe, porém, uma área quase abandonada na megacidade: o caótico sistema de trânsito de veículos. Com razão, as últimas administrações cuidaram preferencialmente, pelo menos no discurso, do transporte coletivo, dos corredores de ônibus, por exemplo, que também chegaram pouco às periferias. Um bom marqueteiro eleitoral, porém, diria que não é recomendável esquecer que milhões de paulistanos usam transportes individuais, sejam próprios, sejam uberizados, em razão da deficiência dos públicos.

O trânsito caótico da cidade de 11,5 milhões de habitantes clama por reforma ampla desse sistema. Com algum investimento - não muito para um município que chegou a ter mais de R$ 30 bilhões em caixa na atual administração -, aliado a soluções inovadoras e inteligência humana ou artificial, seria possível melhorar bastante a mobilidade urbana.

De novo, não se está aqui tentando dizer que as atenções principais devem ser voltadas ao transporte individual. Propõe-se que o automóvel e outros meios individuais não sejam considerados apenas poluidores execráveis do século passado, até porque eles também estão se modernizando ambientalmente (elétricos e híbridos a etanol) e continuam sendo responsáveis por mais de 20% do transporte na metrópole, enquanto 47% das pessoas usam ônibus diariamente.

Cuidar disso, com planejamento, é tarefa dos engenheiros municipais, mas há obviedades que qualquer cidadão observa.

Em tempos de IA, semáforos inteligentes são uma raridade e os poucos instalados, com moldura amarela, parecem “burros”: fecham por longos minutos para ruas cheias de veículos e abrem mais tempo para vias “desertas”. Em algumas cidades, como o Rio, a inteligência artificial já está sendo usada para reduzir o tempo de espera nos semáforos. São Paulo, a metrópole mais rica do país, nem engatinha nessa área.

Há normas de trânsito claramente autoritárias e desnecessárias, que parecem feitas por sádicos para punir os veículos. Elas só prejudicam a circulação viária. Não se justifica, por exemplo, a proibição de conversões à direita com sinal fechado, tema que já entrou nos debates dos candidatos. Em grandes cidades do mundo, os sinais impedem a travessia, mas não a conversão à direita, desde que seja feita com cuidado e dando preferência ao pedestre. Lá fora, essas proibições costumam ser exceção, aplicadas apenas em cruzamentos com muito movimento de pedestres, mas em São Paulo são a regra. Essas conversões ajudam a desobstruir o trânsito.

Da mesma forma, não há razão para proibições de conversões à esquerda em largas avenidas com canteiros centrais. São manobras simples, facilitadas por recuos nos canteiros, que em São Paulo são adotadas excepcionalmente.

Sem nenhuma necessidade, São Paulo tem um número enorme de ruas com mão única, muitas delas vias secundárias em bairros e sem trânsito o dia todo. Com mão dupla, abririam caminhos alternativos às sempre congestionadas avenidas. Quando autoridades de trânsito percebem que algumas vias alternativas estão sendo muito usadas, apressam-se em criar conversões proibidas ou mudar a mão da rua, não raro por pressão de moradores influentes, que não gostam de ter trânsito em sua rua.

São Paulo está cheia de obras, a maioria de prédios particulares, e de caminhões de material de construção estacionados em fila dupla que praticamente param o trânsito, ocupam as calçadas e emporcalham as vias públicas. As calçadas, aliás, são o retrato mais horroroso e deprimente da metrópole. São Paulo precisa de um plano urgente de redesenho e reconstrução de calçadas, talvez com algum estímulo fiscal para moradores e comerciantes que ocupam os imóveis.

Esses são alguns exemplos para ressaltar que o próximo prefeito precisa fazer uma reforma ampla no sistema de trânsito urbano - sem grandes dispêndios em obras, apenas com inteligência e planejamento. Algo que faça o trânsito fluir melhor até que um dia tenhamos na cidade um transporte público sustentável e com menos impacto ambiental, suficiente para tirar das ruas milhões de veículos particulares. A ideia de privilegiar os meios coletivos, que é correta, não deve levar gestores das cidades a ignorar, odiar ou punir automóveis, caminhões, motocicletas ou bicicletas, que estarão nas ruas ainda por décadas.

Sem essa reforma e sem um amplo programa de educação de trânsito que difunda a ideia da generosidade, São Paulo continuará sendo um palco tenebroso, onde se revezam congestionamentos monumentais e mortes no trânsito.

Deboche outra vez?

Os mais velhos se lembram: em 1958, um rinoceronte chamado Cacareco veio do Rio para o zoológico de São Paulo e virou uma espécie de celebridade na cidade. Com a fama do animal, os cariocas tentaram “repatriar” o Cacareco a qualquer custo e essa disputa virou discussão nacional.

São Paulo ficou com o bicho e, como se aproximava a eleição municipal de 1959, alguém teve a ideia da lançar a candidatura do Cacareco para vereador. Descrentes da classe política, os paulistanos votaram em massa no rinoceronte, que foi “eleito” vereador com mais de 100 mil votos. Sozinho, teve mais votos que o principal partido da época na cidade, o PSP de Ademar de Barros (1901-1969).

Aquilo foi uma eleição de deboche, fruto da descrença dos eleitores da época nas instituições políticas. Mas cacarecos e deboches não foram e não são solução para os problemas de São Paulo.

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