Folha de S. Paulo
No fundo, o atual proprietário do prestigioso
jornal e adeptos do letramento progressista compartilham a mesma convicção
"Vamos escrever diariamente em apoio e
defesa de dois pilares: liberdades individuais e mercados livres. Claro, também
abordaremos outros temas, mas pontos de vista contrários a esses pilares serão
deixados para que outros veículos publiquem."
O "nós" da citação é nada menos do
que o prestigioso jornal Washington Post. O autor dessa chocante declaração é
seu atual proprietário, Jeff Bezos.
Como chegamos a esse ponto? Se você se acha um democrata convicto, mas está certo de que não deve compartilhar a mesa com posições políticas que considera erradas, perigosas ou inaceitáveis, mesmo que verbalizadas, apoiadas e votadas por um grande número de nossos concidadãos, tenho duas notícias para você. A primeira é que você não está sozinho. Antes, está afinado com uma enorme tendência política mundial. A segunda, lamento, é que há muito pouco de democrata em você.
A democracia é um regime político projetado
para acolher, considerar e tratar divergências de entendimento, pontos de vista
e interesses. Um regime não é democrático apenas porque nele você pode falar o
que quiser, desde que não viole direitos ou avance contra a dignidade dos
outros; um regime é democrático se, muito além disso, você tiver que conviver
com posições que não aprova e ouvir coisas que lhe são desagradáveis.
Um dos maiores problemas da democracia hoje é
a facilidade com que se negligencia a segunda dimensão da discussão e da con
vivência públicas —a obrigação de ouvir e considerar o que desaprovamos—
enquanto enfatizamos o direito que nosso lado tem de ser ouvido e levado em
consideração. Uma piora notável nesse cenário ocorre quando queremos, além
disso, a prerrogativa
pedagógica de que se eduquem compulsoriamente os outros em nossos princípios e
valores.
Os progressistas, por exemplo, adoram a ideia
de educar ideologicamente. Foi assim que surgiram os esforços de alfabetização
(ou "letramento", como preferem os mais americanizados). Há
letramento de todo tipo: racial, midiático, de gênero, digital. Não é arrogante
e autoritário achar que outros adultos precisam ser alfabetizados?
"Imagine! Desde que os outros pensem exatamente o que consideramos certo,
somos absolutamente flexíveis, abertos e críticos."
Bezos prova que o "outro lado" não
se sai melhor no quesito.
Ele não diz que proibirá colunistas e
repórteres de expressarem pontos de vista discordantes, mas, na prática, impõe
um direcionamento editorial que elimina a livre concorrência de ideias dentro
do próprio jornal. O pluralismo? Que vá encontrar refúgio em outras publicações
ou na internet. O Washington Post, a partir de agora, será um veículo de
letramento ideológico.
O que há de comum entre esse projeto e o
letramento social dos progressistas? Tudo. No fundo, Bezos e os adeptos do
letramento compartilham a mesma convicção: a de que há valores e princípios que
precisam ser ensinados e assimilados e que aqueles que não os compreendem
corretamente devem ser guiados para o caminho certo. O progressista que quer
alfabetizar os outros em raça, gênero e desinformação parte do princípio de que
quem não enxerga o mundo sob sua ótica é socialmente ignorante ou adotou
valores errados, fruto de privilégios não questionados ou resistência
reacionária. O liberal que quer evangelizar o público sobre livre mercado e
liberdade individual acredita que quem não aceita esses valores é refém do
coletivismo e da mentalidade estatista, devendo portanto ser corrigido.
Ambos os lados consideram seus valores como
axiomas inquestionáveis, e quem discorda não tem apenas uma perspectiva
diferente, mas precisa ser reeducado. No caso do letramento progressista, isso
assume a forma de programas educativos, iniciativas institucionais e cursos de
conscientização. No caso do Washington Post, isso se traduz em uma política
editorial que restringe a variedade de opiniões ao que
a alta administração do jornal considera "verdades fundamentais". Em
um contexto, são workshops sobre privilégio branco e interseccionalidade. No
outro, são editoriais sobre a necessidade de cortar impostos e desregulamentar
a economia. O método difere, mas a intenção é a mesma.
Ora, a democracia não é um projeto de
reeducação das massas conduzido por aqueles que sabem o que é melhor para
todos. Democracia pressupõe que as pessoas possam chegar a conclusões
diferentes e que nenhuma concepção possa se afirmar como a única verdade
admissível. Quem não aceita isso, no fundo, compartilha a crença de que a
sociedade só será livre quando todos pensarem da sua maneira.
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