Folha de S. Paulo
Autor de '1984' imaginou mundo dividido em 3
grandes potências, e é quase assim que o presidente dos EUA gosta
Quem leu "1984", de George Orwell, lembra-se
do ambiente de permanente vigilância e opressão, do medo e da lavagem
cerebral, da novilíngua e do Grande Irmão. Mas em geral esquece a lição de
geopolítica que o romance encerra.
Em "1984" há três blocos. O
primeiro, dominado pelos Estados
Unidos da América, é a Oceânia, e inclui todas as Américas mas também
as Ilhas Britânicas. O segundo bloco é a Eurásia, dominado
pela União Soviética e que vai, como o ex-presidente Dmitri Medvedev
gosta tanto de dizer ainda hoje, de Lisboa a Vladivostok. O terceiro é a
Lestásia, e é dominado pela China, incluindo
o Extremo Oriente e parte do Sudeste Asiático.
Donald Trump não leu "1984". Mas o mundo de que ele gosta é quase igual ao do romance. Há três potências que têm supersoberania: ele, Vladimir Putin e Xi Jinping. Os outros que se adaptem. As redes sociais, os algoritmos e a inteligência artificial tratam da hipervigilância. E a democracia dissolve-se num permanente espetáculo narcísico.
Foi em 1948 que George Orwell escreveu
"1984" (o título é uma mera inversão do ano em que estava). O romance
foi o seu diagnóstico de pesadelo para o mundo que antevia antes de morrer, no
ano seguinte. Mas também em 1948 Orwell escreveu um ensaio político, que quase
ninguém leu, no
qual expunha o seu otimismo da vontade em relação à alternativa política ao
mundo que temia.
Esse ensaio tinha por título "Sobre a
Unidade Europeia" e desenhava a proposta de uma federação continental, com
um forte viés socialista democrático, uma sociedade pluralista e de bem-estar
que assegurava a sua independência por meio da integração de países médios e
pequenos. A construção da unidade europeia era a forma de evitar o esmagamento
do continente entre o imperialismo do Kremlin e o da Casa Branca, que acabaram
por dividir a Europa a meio.
Pergunto-me como teria Orwell visto aquele
vergonhoso momento de agressão verbal de Trump e seu vice, J. D. Vance, a Volodimir
Zelenski, no Salão Oval, na semana passada. Por um lado, creio que não
teria ficado surpreendido, ele que uma vez escreveu que "se quereis uma
visão do futuro, basta imaginar a imagem de uma bota a pisar um rosto humano,
para sempre".
Ele entenderia que a brutalidade para o novo
fascismo do século 21, tal como para o original do século 20, é uma parte
essencial da natureza política do movimento, não apenas um subproduto.
Por outro lado, Orwell ficaria ainda mais
assustado, porque o que está em cima da mesa agora não é Trump e Putin
dividirem a Europa a meio, mas partilharem-na entre si. E ficaria ainda mais
preocupado porque os instrumentos tecnológicos de vigilância que existem hoje são
ainda mais perigosos do que aqueles que ele imaginou para o seu romance.
Perante isso, o que fazer? O episódio do
Salão Oval teve ao menos a vantagem de deixar claro perante os europeus que a
sua unidade não é apenas uma ideia bonita, mas uma necessidade prática.
Os desafios atuais transcendem as fronteiras
da Europa. Faz sentido hoje reinventar o mundo livre, e incluir todas as
democracias que ainda não soçobraram, para reformar as Nações Unidas e refazer
a globalização. Para grandes males, grandes remédios.
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