quarta-feira, 5 de março de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Acordo entre PCC e CV requer resposta unificada do Estado

O Globo

Combater aliança entre duas maiores facções criminosas do país exige coordenação do governo federal

Se o poder público precisava de argumento mais forte para articular a integração entre os governos federal, estadual e municipal no combate ao crime, não precisa mais. O acordo entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), depois de quase dez anos de guerra, é razão suficiente para que a Federação se articule para enfrentar a ação coordenada das duas maiores facções criminosas do país.

Segundo mensagens interceptadas pelas forças de segurança, o motivo alegado para que as duas facções passem a atuar em conjunto — prova do acordo entre as quadrilhas — é a tentativa de flexibilizar o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) a que estão submetidos seus chefes nas prisões federais de segurança máxima. Eles ficam em celas individuais monitoradas, têm direito a duas horas por dia de banho de sol, sem acesso a jornais, revistas, televisão, rádio ou telefone celular. Também não podem manter contato físico nas visitas de familiares. Mas evidentemente há um interesse muito maior: coordenar as atividades do crime organizado em todo o país.

Os efeitos da aliança entre PCC e CV são um desafio ao Estado, com implicações sobre as próprias instituições democráticas, no entender de David Marques, coordenador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Estima-se que haja no Brasil mais de 70 organizações criminosas, com seus entendimentos e desavenças a desgastá-las. A unificação da assistência jurídica aos integrantes do PCC e do CV chegará às ruas. O armistício entre os grupos poderá aumentar o tráfico de cocaína e de armas para o Brasil, levar ao compartilhamento de rotas e “sobretudo ao fortalecimento ainda maior dessas organizações criminosas”, na descrição do promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo, que investiga o PCC há 20 anos.

Por isso governadores, prefeitos e autoridades federais precisam superar suas divergências para fazer frente à sofisticação da criminalidade, a cada dia mais profissional e violenta. A melhor decisão, neste momento, é apressar a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública, elaborada no Ministério da Justiça, base para a ação integrada das diversas forças policiais. O ministro Ricardo Lewandowski fez ajustes no texto, enviado à Casa Civil, para contornar resistências de governadores e prefeitos. Ainda incluiu na proposta as Guardas Municipais, que poderão atuar no policiamento ostensivo e comunitário, de forma integrada com as polícias Militar e Civil.

Guardadas as proporções, o Brasil está no estágio dos Estados Unidos no início do século passado, quando criaram sua polícia federal, o FBI, para combater o crime organizado de alcance nacional. No caso brasileiro, o desafio é dar lógica à atuação da Justiça e das diversas forças policiais para que operem de maneira cooperativa, preenchendo espaços que as polícias estaduais isoladamente não têm condições de cobrir. O dispositivo constitucional que estabelece a segurança pública como atribuição exclusiva dos estados foi superado pela realidade.

Ao nomear juízes da Corte Suprema por decreto, Milei mina as instituições

O Globo

Seria uma lástima se presidente argentino pusesse a perder conquistas de seu governo para ampliar poderes

O presidente argentino, Javier Milei, cometeu um erro ao nomear por decreto dois novos juízes para a Corte Suprema de Justiça. A última instância do Judiciário argentino vinha atuando com apenas três de seus cinco integrantes. Para justificar a nomeação, o governo argumenta que Milei fez as indicações em maio, mas o Senado as ignora desde então. Aproveitando o recesso parlamentar, ele assinou o decreto como forma de pressionar o Congresso. Enquanto os senadores não votarem, os indicados podem exercer a função por até um ano.

É verdade que algo semelhante aconteceu no governo Mauricio Macri. Em 2015, assim que assumiu, Macri indicou dois juízes a postos vagos na Corte Suprema, mas recuou diante da pressão. Seis meses depois, o Senado aprovou ambos os candidatos. No caso de Milei, contudo, é difícil acreditar em recuo. A oposição o acusa de tentar esticar os poderes do Executivo para driblar a falta de maioria parlamentar. Juristas também afirmam que, por atropelar uma atribuição do Senado, a nomeação é inconstitucional.

O tema é especialmente sensível porque levanta a suspeita de aparelhamento da Justiça. Ocupar Cortes superiores com nomes fiéis ao Poder Executivo está no topo da lista das medidas adotadas por autocratas contemporâneos para sabotar as instituições democráticas. Foi o que aconteceu em países como Hungria, Polônia e Venezuela. O temor de que algo semelhante possa acontecer na Argentina justifica encarar as nomeações de Milei com a máxima atenção.

O decreto é também um erro do ponto de vista político, por criar um conflito desnecessário com o Congresso. O mês de fevereiro foi particularmente difícil para o governo, com o escândalo em que Milei se tornou suspeito de promover uma criptomoeda para auferir ganho financeiro (ele nega as acusações). O episódio foi explorado pela oposição, e ele só escapou de uma investigação no Senado por um voto.

Por fim, os próprios indicados por Milei despertam suspeitas. Ariel Lijo, um deles, é juiz federal com mais de 30 denúncias por mau desempenho no Conselho da Magistratura. Foi denunciado por associação ilícita, lavagem de dinheiro e suborno. Como mostrou O GLOBO, deixou de julgar 75 de um total de 89 casos de corrupção envolvendo dirigentes políticos.

Não há como escapar. A prioridade de Milei está na economia. Perto desse desafio, todo o resto é secundário, o que inclui comentários sobre criptoativos ou tentativas de expandir os poderes do Executivo. Graças a um programa arrojado de ajuste fiscal, ele já conseguiu reduzir a inflação anual de 211% para 84,5%. Por volta de 50% dos argentinos seguem aprovando o governo, e a previsão é que a economia cresça 5% neste ano. Seria uma lástima se, em vez de prosseguir em seu programa de estabilização, ele pusesse tudo a perder com iniciativas que sabotam os caminhos institucionais regulares.

Tarifas elevam riscos para inflação e crescimento global

Valor Econômico

A alta da inflação, ou um mergulho na estagflação, será apenas um dos problemas que Trump legará à economia mundial se executar uma guerra tarifária generalizada

O presidente Donald Trump colocou em prática suas ameaças de impor tarifas altas sobre seus principais parceiros comerciais, México e Canadá, de 25%, e mais 10% sobre mercadorias vindas da China, além dos 10% que determinara no início de fevereiro. Há mais a caminho. Pendente de estudos, os EUA podem implantar em 2 de abril a “reciprocidade” de tarifas, tendo a do país como base, e aumentar os impostos de importação sobre a compra de bens de nações cuja tarifação seja considerada discriminatória aos EUA. O aumento das tarifas ocorre enquanto o orçamento de Trump vai para o Senado, após aprovação na Câmara dos Deputados, prevendo um corte de gastos de US$ 2 trilhões e de impostos de US$ 4,5 trilhões em 10 anos. O resultado fiscal líquido se choca com a perda do ritmo da economia prevista de preços de importados maiores e as mais que prováveis retaliações contra as exportações americanas. A inflação deve subir e os juros, interromper sua queda. Sob choque de muitos impulsos conflitantes, os rumos da economia americana tornaram-se incertos e, com ele, os da economia global.

A estratégia de caos “planejado” de Trump, já em seu segundo mês, começa a ter impacto negativo. O Índice de Confiança do Conference Board teve em fevereiro sua maior queda desde agosto de 2021, quando houve repique da covid-19 no país, no sétimo recuo consecutivo. O índice correlato da Universidade de Michigan teve rara queda em todos seus componentes. Um mau augúrio foi que as expectativas inflacionárias para a média dos próximos 12 meses subiram de 5,6% para 6%, uma enormidade visto o índice de inflação em 12 meses de janeiro (CPI), de 3%.

Os sinais dados pelos indicadores econômicos não indicam ainda uma tendência segura. Os gastos de consumo cresceram 4,2% no quarto trimestre de 2024, um ótimo desempenho, mas na ponta, em dezembro, recuaram 0,2%. Os investimentos encolheram 5,7% e o PIB do período teve avanço de 2,3%, ante 3,1% do trimestre anterior. O ritmo da economia está longe de ser fraco, o que demonstra a resistência da inflação, que voltou a subir um pouco recentemente. O índice de preços ao consumidor foi de 3% anualizados em janeiro. O de gastos pessoais de consumo, preferido pelo Federal Reserve, foi de 2,8%, e seu núcleo, de 2,6%. Todos esses números ainda se mantêm a boa distância da meta de inflação de 2% perseguida pelo banco central americano, que interrompeu a queda de juros e não deu sinais de, e se, vai retomar o ciclo.

Ao estabelecer o jogo do protecionismo radical, Trump tende a desacelerar a economia a médio prazo, embora ela possa manter seu ritmo a curto prazo, sem que haja alívio na inflação. Retomar a produção industrial doméstica de bens que eram importados de países que os produziam de forma mais competitiva elevará os custos de imediato. As tarifas extravagantes cobradas dos principais fornecedores do mercado americano serão repassadas aos preços. A equipe de Trump não acredita que isso vá ocorrer porque os aumentos dos impostos de importação para a China, em seu primeiro mandato, praticamente não afetaram a inflação.

A situação agora é diferente. A inflação na época estava abaixo dos 2%, e o Fed só começou a elevar os juros em março de 2022. A preocupação do banco central durante aqueles anos continuava a ser a de evitar um risco de deflação. Além disso, as tarifas agora serão universalizadas - Trump anunciou que também que vai aplicá-las às mercadorias importadas da Europa, intenções que, se levadas em frente por um bom tempo, trarão um choque de preços nada desprezível nos Estados Unidos.

O impulso fiscal à economia depende do orçamento, aprovado por dois votos de diferença (217-215) na Câmara e que foi ao Senado. Prevê cortes de US$ 2 trilhões em dez anos, que deverão atingir programas como o Medicaid, de seguro-saúde para a baixa renda, e o programa de auxílio alimentação. O corte dos impostos estende o anterior feito por Trump em seu primeiro mandato, que acaba este ano, e acrescenta outros. O efeito, segundo o Comitê por um Orçamento Responsável, será acrescentar mais US$ 2,4 trilhões em 2034 a uma dívida que hoje é de US$ 25 trilhões.

A alta da inflação, ou um mergulho na estagflação, será apenas um dos problemas que Trump legará à economia mundial se executar uma guerra tarifária generalizada. China, outrora motor principal da expansão, está em desaceleração controlada e na mira dos EUA. A Europa se debate com a semiestagnação. Juros altos e dólar valorizado estimularão a inflação em muitos países, como ocorreu no Brasil, e impedirão ou retardarão a queda das taxas. A aversão ao risco elevará os prêmios de papéis da dívida, que, hoje contidos, permitiram bom volume de emissões de dívidas de empresas brasileiras e do Tesouro, a taxas razoáveis.

Os riscos externos não mudaram muito desde que Trump assumiu a Presidência. Sua política de barganhas apenas retardou a execução, que agora é executada. A melhor defesa contra as pressões desestabilizadoras seria ter a casa fiscal em ordem. O Brasil é vulnerável por não ter feito isso e não há sinais de grande preocupação com isso pela frente.

Gasto do Judiciário é anomalia e Congresso precisa agir

Folha de S. Paulo

Projeto para enquadrar despesas com supersalários no setor está parado no Senado e governo apresentou proposta melhor

Assim como o Supremo Tribunal Federal (STF), por iniciativa do ministro Flávio Dino, impôs algum nível de transparência à origem, propósito e destinação das bilionárias emendas parlamentares, o Congresso deveria, mesmo que em forma de salutar resposta, tomar a iniciativa de regular os gastos do Poder Judiciário.

Eles tornaram-se uma anomalia no Brasil, onde uma casta do funcionalismo se apropria do dinheiro público de forma voraz, sem que isso se traduza em eficiência para o sistema de Justiça.

País de renda média e com enormes desafios no campo da desigualdade social, o Brasil sustenta privilégios escandalosos para juízes, desembargadores e servidores do setor. Algo que requer, o quanto antes, uma ação contundente a fim de que possam ser eliminados.

Notícias sobre rendimentos na casa de centenas de milhares de reais pagos a magistrados e desembargadores, muito acima do teto constitucional, tornaram-se corriqueiras e, infelizmente, quase não chocam mais. Trata-se de dinheiro de impostos, e os chamados penduricalhos custaram nada menos que cerca de R$ 40 bilhões entre 2018 e 2023.

Não apenas no topo. Dados oficiais mostram que a remuneração dos servidores do Judiciário nos últimos 40 anos ultrapassou em várias vezes o reajuste concedido à média do funcionalismo federal, estadual e municipal.

Outro levantamento, do Tesouro Nacional, revela que o gasto do poder público brasileiro com os tribunais de Justiça, incluindo a remuneração de magistrados e funcionários, é o segundo maior entre 50 nações analisadas. O sistema custa aqui quatro vezes mais que a média internacional.

O Brasil despende cerca de 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) com o Poder Judiciário, ante 0,3% em outros países. Apenas El Salvador tem um gasto maior com tribunais, de 1,6% do PIB.

Não há nenhuma justificativa para isso, apenas o fato de, encastelados, juízes e desembargadores legislarem em causa própria, com autonomia para se apropriar do Orçamento na União e, principalmente, nos estados.

Tal situação ocorre por omissão do Congresso Nacional, onde dormita no Senado, desde 2021, projeto para limitar o pagamento de benefícios acima do teto. É lamentável que, mesmo considerando mais de 30 exceções que permitiriam a existência de penduricalhos, a matéria não tenha sido analisada até hoje.

No final do ano passado, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em iniciativa sensata, encaminhou ao Legislativo uma Proposta de Emenda Constitucional que pretende substituir o projeto ora parado no Senado, de forma a limitar as brechas para pagamentos acima do teto.

Em nome da moralidade e do equilíbrio orçamentário, o Congresso deveria encarar já a matéria. Seria uma conveniente resposta ao STF pela fiscalização das emendas. Os dois movimentos tornariam o Brasil mais justo.

Nunes abusa de dispositivo legal para minar licitações

Folha de S. Paulo

Regime emergencial em obras é importante, mas falta de transparência gera dúvidas sobre lisura e revela mau planejamento

Pouca transparência na execução de políticas públicas sinaliza má gestão do dinheiro dos contribuintes e até corrupção, além de dificultar o escrutínio das práticas de governo pela sociedade. Entretanto a Prefeitura de São Paulo sob o comando de Ricardo Nunes (MDB) insiste nessa conduta duvidosa.

Em 2024, ano em que Nunes venceu a eleição, a Secretaria Municipal de Infraestrutura e Obras assinou 28 contratos sem licitação com base no regime de emergência no valor de R$ 810,3 milhões. Desses, 8 não foram respaldados por laudos da Defesa Civil e representam quase a metade do gasto total na categoria de urgência (R$ 391 milhões).

Mesmo que a análise da Defesa Civil não seja obrigatória, trata-se de mais um elemento que coloca em suspeição o uso que a prefeitura tem feito do regime de emergência —instituído por decreto em 2019 para agilizar ações em "situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens".

Por dispensar licitações, exige-se apresentação de informações minuciosas e, se necessário, "laudo técnico" e "relatório de risco".

O modelo é essencial para proteger vidas, mas sua aplicação deveria ser criteriosa. O que se vê, porém, é uma interpretação elástica da sua aplicabilidade, o que suscita questionamentos sobre a lisura do processo —ainda mais ao se considerar interesses políticos em período eleitoral.

Tal fenômeno em 2024 é a ponta do iceberg. Entre setembro de 2021 e dezembro de 2023, a prefeitura contratou 140 obras emergenciais que custaram R$ 2,2 bilhões —65% da verba direcionada ao combate a enchentes. Ademais, das 41 empresas responsáveis por realizá-las, 10 concentraram 63% do montante (R$ 1,4 bi).

Nunes assumiu a prefeitura em maio de 2021. A Folha mostrou que de 2020, último ano completo do mandato de Bruno Covas (PSDB), a 2022, o valor gasto com obras sem licitação pelo regime emergencial aumentou 1.313%, sem apresentação de justificativa para o salto exorbitante.

Além de dúvidas quanto à retidão, há indícios de mau planejamento. Parte significativa das obras relacionadas a enchentes são pontuais, em vez de estruturais. Ou seja, não resolvem as causas do problema e geram mais gastos no curto prazo.

Nunes deve explicações aos paulistanos —até porque se comprometeu em abril do ano passado a vetar o uso arbitrário do regime emergencial. Já a Câmara Municipal precisa exercer sua função institucional e monitorar a aplicação desse dispositivo

Uma pequena vitória no caso das emendas

O Estado de S. Paulo

Acordo validado pelo STF sobre as emendas é importante como freio de arrumação, mas ainda há muito o que corrigir, incluindo a magnitude única do poder parlamentar sobre o Orçamento

Terreno fértil de onde têm brotado sucessivas más notícias, o impasse em torno das emendas parlamentares finalmente recebeu um freio de arrumação para impedir o avanço de uma aberração nacional. A construção do acordo entre a cúpula do Congresso, o governo e o ministro Flávio Dino, relator do caso no Supremo Tribunal Federal (STF), e sua validação pelo plenário da Corte oferecem ao menos alguma luz para que se assegure mais transparência e rastreabilidade à previsão, destinação e liberação de recursos das emendas no âmbito do Orçamento da União. Mas convém ter cautela na comemoração: ainda que seja um acordo no limite do possível, trata-se de uma decisão tardia e longe de ser suficiente para resolver o mal maior, isto é, o excessivo poder de parlamentares sobre bilionários recursos federais.

Esse poder já tem longa data. A ampliação, imposição e diversificação das emendas parlamentares começou em 2015, ainda no mandato de Dilma Rousseff. Foi o momento em que se tornaram impositivas – o que permitiu um salto de R$ 9 bilhões para R$ 15 bilhões em 2017, no governo de Michel Temer. Dois anos depois, na gestão de Jair Bolsonaro, surgiu um novo triunfo: a impositividade das emendas coletivas. Mas o apetite clientelista chegou ao paroxismo com as antigas emendas de relator, identificadas com a sigla RP-9, e com as transferências especiais sob o rótulo de “emendas Pix”, realizadas diretamente pelos parlamentares em suas bases eleitorais e repassadas de maneira arbitrária e sem transparência.

O esforço para criar diques de contenção começou em 2021, quando este jornal revelou a existência de um sofisticado esquema de compra de apoio parlamentar urdido pelo governo Bolsonaro e pela caciquia do Congresso – o chamado “orçamento secreto”. O STF declarou sua inconstitucionalidade em dezembro de 2022, mas descobriu-se que a marotagem seguiu firme no governo de Lula da Silva, com ministérios transferindo dinheiro para municípios sob ordens de deputados e senadores e fora do alcance de controles institucionais claros e precisos. Converteu-se, assim, em valioso trunfo eleitoral de parlamentares nas eleições do ano passado, período em que R$ 53 bilhões do Orçamento estavam em suas mãos.

Pelo raio de ação dos cupins do Orçamento, no entanto, qualquer feito do acordo validado agora já terá sido um alento. É esse o caso. Com a decisão, o Congresso se compromete a dar transparência a valores, prazos e cronogramas, identificar nominalmente os autores das emendas de comissão e de relator – estas usadas desde 2020 no orçamento secreto e até hoje sem informação completa sobre quem indicou as verbas. Se cumprido o básico a partir daqui, as emendas, por ora bloqueadas pelo STF, passarão a ser liberadas. O plano validado, contudo, mantém represadas aquelas que desrespeitam parâmetros elementares de transparência e rastreabilidade dos gastos, ou suspensas por ordem judicial.

Chama a atenção, porém, o fato de os principais porta-vozes do atual corporativismo sindical congressista terem comemorado a liberação das emendas. Afinal, quase sempre quando parlamentares ficam felizes é o País que paga a conta. “É o reconhecimento das prerrogativas dos parlamentares”, vibrou o presidente da Câmara, Hugo Motta. “Reconhecemos que se trata de um instrumento legítimo para a entrega de bens e serviços à população”, disse o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Enquanto isso, diferentes projetos tentam ressuscitar verbas que não foram pagas nos últimos anos. Também ainda não há responsabilização para quem atuou para driblar as decisões da Corte e repaginar o esquema.

Há muito o que corrigir, portanto, não só entre os ardis do Congresso quanto ao monumental controle exercido por parlamentares sobre o Orçamento federal. Não há caso similar no mundo. Em torno de 23% de todo o gasto discricionário – aquele que não é despesa obrigatória, como aposentadorias, salários e pisos constitucionais de saúde e educação – está nas mãos de deputados e senadores. Há dez anos eram 2%. Em termos proporcionais, nos EUA o Congresso não interfere em mais do que 1,5% das despesas discricionárias previstas no orçamento federal. Nem se o Congresso brasileiro exibisse atributos sobrenaturais se justificaria tamanha magnitude.

O Brasil precisa de um arcabouço antimáfia

O Estado de S. Paulo

O crime se organiza cada vez mais. O Estado precisa se organizar também. Em boa hora, o Ministério da Justiça elabora uma proposta com o condão de desarticular as facções criminosas

Desde outubro passado, um grupo de trabalho mobilizado pelo Ministério da Justiça elabora uma proposta de legislação antimáfia. Segundo depoimento do secretário nacional de Segurança Pública, Mario Sarrubbo, ao Valor Econômico, entre os objetivos estão estabelecer um tratamento diferenciado entre organizações criminosas comuns e organizações de caráter mafioso (ou seja, sistematicamente infiltradas na sociedade civil) e novos instrumentos de asfixia financeira, como bloqueio de bens mais ágil. O projeto deve ser apresentado este mês. É cedo para avaliar a qualidade e a abrangência da iniciativa, mas ela se orienta na direção certa.

Não há indicador que não evidencie uma metástase que avança por todos os órgãos do corpo nacional. O crime organizado se capilariza na economia legal; se infiltra na política; controla territórios, atuando como um Estado paralelo; e amplia conexões com máfias estrangeiras, resultando num aumento quantitativo dos crimes e na diversificação qualitativa de seus negócios.

Mas o Estado não acompanhou essa sofisticação: os órgãos de segurança não estão integrados; a tecnologia e os sistemas de inteligência estão defasados; as forças de segurança são subfinanciadas; o sistema prisional é deficiente; a legislação é insuficiente; o sistema judicial é ineficaz.

A experiência internacional oferece um cardápio de boas práticas para subsidiar o poder público brasileiro.

Desde os anos 1970, os EUA reprimiram substantivamente a articulação do crime organizado, especialmente pelos instrumentos fornecidos pela Lei de Organizações Corruptas e Influenciadas por Extorsão (Rico). Focando mais em padrões de comportamento criminoso do que em crimes individuais, a lei dá latitude aos agentes da Justiça, permitindo que eles processem diversos indivíduos como membros de uma “família” criminosa, se houver evidência de participação em ao menos duas atividades tipicamente associadas ao crime organizado, como extorsão, fraude, tráfico, lavagem de dinheiro ou suborno. A lei autoriza penas pesadas e ampla capacidade de confisco ao Estado.

O arcabouço criado pela Itália desde os anos 1990 é um dos que mais se aproximam do “padrão ouro” de combate ao crime organizado. Escorado em um tripé – compromisso político, leis adequadas e engajamento da sociedade civil –, o poder público italiano criou uma série de medidas preventivas e repressivas, como uma legislação para facilitar e acelerar inquéritos e procedimentos judiciais contra chefes mafiosos; penas mais duras e regimes penitenciários especiais; institutos de colaboração premiada; confisco preventivo e expropriação em favor da sociedade; e políticas holísticas para reprimir a infiltração do crime organizado, como dissolução de órgãos locais controlados pelas máfias, melhorias na segurança e desenvolvimento econômico de comunidades carentes e sistemas de transparência, prestação de contas e responsabilização voltados a colaboradores do colarinho branco no empresariado e na administração pública.

Crucial para a efetividade desse arcabouço foi a instauração de instituições aparelhadas para enfrentar organizações multifacetadas e sistematicamente capazes de transcender delitos, investigações e processos penais individuais. Notadamente, a Direzione Investigativa Antimafia (DIA) promove esforços de inteligência focados mais em empreendimentos sistêmicos do que em crimes individuais, atuando ao mesmo tempo em investigações no plano internacional. A DIA tem autonomia gerencial e financeira, é composta por membros das diversas forças de segurança e opera em campos como gestão de bancos de dados, monitoramento de licitações e obras públicas e transações suspeitas. Seu diretor tem a prerrogativa de propor aos tribunais medidas de prevenção, seja em caráter pessoal (vigilância especial), seja em caráter patrimonial (sequestro de bens). Entre 1992 e 2018, a DIA sequestrou mais de € 17 bilhões em ativos, confiscou mais de € 10 bilhões e prendeu mais de 10 mil pessoas acusadas de associação mafiosa.

No Brasil, o crime se organiza cada vez mais e melhor. É hora de o Estado se organizar também.

As inaceitáveis perdas do BPC

O Estado de S. Paulo

Benefício a idosos e carentes acumula irregularidades e amplia fatia no Orçamento

Os gastos do governo com o pagamento do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que em janeiro de 2024 somaram R$ 8,8 bilhões, bateram em R$ 10,1 bilhões em janeiro deste ano. O crescimento real (já descontada a inflação) de 14,8% no mês reforça a diligência do Tribunal de Contas da União (TCU) que identificou perdas de R$ 5 bilhões ao ano com a concessão indevida do benefício e fixou prazo de seis meses para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) apresentar medidas corretivas.

Uma série de falhas tem colocado na berlinda a eficiência do BPC, voltado a atender idosos e pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade. Como política pública, estabelece critérios específicos para a concessão, sendo os dois principais a comprovação de renda familiar de até um quarto do salário mínimo por pessoa (o que equivale atualmente a R$ 379,50) e não cumulatividade com outros benefícios previdenciários e assistenciais.

A auditoria do TCU constatou 31,1 mil inconsistências em registros de dados cadastrais de titulares do BPC e seus familiares e suspeita de que quase 2,5 mil mortos figurem entre os beneficiários. Reportagem recente do Estadão, com dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, mostrou que o recorde de judicialização do ano passado resultou em 182 mil novos benefícios – 23,4% do total – concedidos por determinação da Justiça.

O crescimento exponencial, o grande volume de irregularidades, a judicialização e o comprometimento orçamentário cada vez maior mostram a necessidade de adequação da política pública, tanto na forma quanto na operacionalização. Em primeiro lugar, o mínimo que se espera do Estado são ações contínuas de combate a fraudes e atualizações cadastrais permanentes para preservar a eficácia do programa. Essa fiscalização é fundamental para o monitoramento de qualquer benefício assistencial.

Dito isso, a indexação do reajuste do BPC à política de valorização do salário mínimo, reajustado acima da inflação, acaba por criar distorções sobre o benefício e onerar ainda mais o Estado, sendo um ponto de pressão fiscal nada desprezível. De acordo com levantamento dos pesquisadores Sergio Kelner Silveira e Carolina Beltrão de Medeiros, da Fundação Joaquim Nabuco, ligada ao Ministério da Educação (MEC), em 2023, com crescimento real de 12,4%, as despesas com o BPC já se aproximavam de 1% do PIB.

Como auxílio assistencial a uma população idosa vulnerável, é previsível seu aumento diante do envelhecimento da população. Mas é importante frisar que o BPC não é uma aposentadoria, muito menos salário. Por isso, este jornal defende que não há justificativa em atrelar o auxílio à fórmula do salário mínimo, até porque o beneficiário não precisa ter contribuído para a Previdência, como fizeram durante a vida laboral os aposentados que recebem pelo menos um salário mínimo.

Nas propostas para redução de gastos públicos, o BPC é presença recorrente, barrada sempre pela visão populista de Lula da Silva. Para manter a sustentabilidade do BPC, o governo precisa encarar com neutralidade a revisão de seus critérios e de sua operacionalidade.

Casos de gripe aviária nos EUA viram alerta 

Correio Braziliense

Muitos avicultores não fazem ideia dos sintomas da doença, portanto, sequer conhecem os perigos

É comum nos depararmos, vez por outra, com notícias alarmantes que apontam para o surgimento de novos vírus capazes de reviver o horror da pandemia de covid-19. Enquanto muito desse conteúdo surfa na onda do imediatismo em busca de audiência, uma doença, em específico, merece cuidado redobrado da sociedade civil e das autoridades: a gripe aviária causada pelo Influenza H5N1. 

Nos Estados Unidos, o governo Trump inicia com um desafio econômico causado pela exorbitante alta no preço dos ovos — o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês) estima que a inflação do produto pode chegar a 41%. A explosão da cotação é explicada pelo surto do H5N1 no país. Na Geórgia, em janeiro e fevereiro, 45 mil aves foram infectadas, o que forçou a suspensão de toda a avicultura do estado. 

Mas os impactos não ficam restritos somente à economia. Os Estados Unidos também identificaram casos de infecção pelo H5N1 em mamíferos, como vacas leiteiras, nos últimos meses. Por terem um sistema respiratório muito semelhante aos humanos, os bovinos infectados representam um risco importante para nossa saúde. É possível que o vírus, como aconteceu diversas vezes com o novo coronavírus, sofra mutações que permitam a infecção de pessoas. 

Essas infecções, apesar de raras, já aconteceram. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), são 954 casos em humanos entre janeiro de 2003 e dezembro do ano passado, em 24 países. O que chama atenção para o tamanho do risco, no entanto, é a altíssima taxa de letalidade: 49% dos diagnosticados não resistiram. Para efeito de comparação, o mesmo indicador da covid-19 no Brasil gira em torno dos 2%. 

O controle do H5N1 passa por desafios importantes. Pela falta de conhecimento, muitos avicultores não fazem ideia dos sintomas da doença, portanto, sequer conhecem os perigos. Os sinais passam pela redução da produtividade dos animais, dificuldade para respirar e tosse.

Essa limitação gera, evidentemente, risco de subnotificação. Há uma baixíssima cobertura epidemiológica voltada ao vírus, por isso infecções assintomáticas e, até mesmo, sintomáticas podem passar despercebidas pelas autoridades de saúde. Tal cenário aumenta ainda mais o risco, já que os vírus têm como característica a rápida adaptação para o surgimento de novas cepas, com intuito de diversificar seus hospedeiros.

Mas qual a saída para reduzir o risco? Além de maior conscientização de avicultores e de reforço da vigilância epidemiológica, o mundo precisa investir recursos em pesquisas voltadas à criação de uma vacina capaz de frear a transmissão da gripe aviária. Nos EUA, cinco trabalhos estão em andamento – dois deles querem motivar a geração de anticorpos capazes de neutralizar o H5N1. 

Outra saída é a criação de vacinas que protejam diretamente as aves – como acontece com a febre aftosa, por exemplo. A discussão, no entanto, passa pelo impacto econômico da medida. Há risco de que essa estratégia comprometa o desempenho do setor, sobretudo em países com fortes agendas contra os imunizantes, como os Estados Unidos. 

Além disso, a conscientização dos avicultores também passa pelo aspecto econômico. Por temerem perder dinheiro, muitos ignoram os sinais da doença e evitam a notificação junto às autoridades. Nos EUA, um acerto do governo foi a remuneração dos criadores mesmo em caso de sacrifício dos animais. No entanto, só há reembolso daqueles que forem mortos após a comunicação.

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