Acordo entre PCC e CV requer resposta unificada do Estado
O Globo
Combater aliança entre duas maiores facções
criminosas do país exige coordenação do governo federal
Se o poder público precisava de argumento
mais forte para articular a integração entre os governos federal, estadual e
municipal no combate ao crime, não precisa mais. O acordo entre o Primeiro
Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), depois de quase dez anos de
guerra, é razão suficiente para que a Federação se articule para enfrentar a
ação coordenada das duas maiores facções criminosas do país.
Segundo mensagens interceptadas pelas forças de segurança, o motivo alegado para que as duas facções passem a atuar em conjunto — prova do acordo entre as quadrilhas — é a tentativa de flexibilizar o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) a que estão submetidos seus chefes nas prisões federais de segurança máxima. Eles ficam em celas individuais monitoradas, têm direito a duas horas por dia de banho de sol, sem acesso a jornais, revistas, televisão, rádio ou telefone celular. Também não podem manter contato físico nas visitas de familiares. Mas evidentemente há um interesse muito maior: coordenar as atividades do crime organizado em todo o país.
Os efeitos da aliança entre PCC e CV são um
desafio ao Estado, com implicações sobre as próprias instituições democráticas,
no entender de David Marques, coordenador do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública. Estima-se que haja no Brasil mais de 70 organizações criminosas, com
seus entendimentos e desavenças a desgastá-las. A unificação da assistência
jurídica aos integrantes do PCC e do CV chegará às ruas. O armistício entre os
grupos poderá aumentar o tráfico de cocaína e de armas para o Brasil, levar ao
compartilhamento de rotas e “sobretudo ao fortalecimento ainda maior dessas
organizações criminosas”, na descrição do promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de
Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público
de São Paulo, que investiga o PCC há 20 anos.
Por isso governadores, prefeitos e
autoridades federais precisam superar suas divergências para fazer frente à
sofisticação da criminalidade, a cada dia mais profissional e violenta. A
melhor decisão, neste momento, é apressar a aprovação da Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) da Segurança Pública, elaborada no Ministério da Justiça,
base para a ação integrada das diversas forças policiais. O ministro Ricardo
Lewandowski fez ajustes no texto, enviado à Casa Civil, para contornar
resistências de governadores e prefeitos. Ainda incluiu na proposta as Guardas
Municipais, que poderão atuar no policiamento ostensivo e comunitário, de forma
integrada com as polícias Militar e Civil.
Guardadas as proporções, o Brasil está no
estágio dos Estados Unidos no início do século passado, quando criaram sua
polícia federal, o FBI, para combater o crime organizado de alcance nacional.
No caso brasileiro, o desafio é dar lógica à atuação da Justiça e das diversas
forças policiais para que operem de maneira cooperativa, preenchendo espaços
que as polícias estaduais isoladamente não têm condições de cobrir. O
dispositivo constitucional que estabelece a segurança pública como atribuição
exclusiva dos estados foi superado pela realidade.
Ao nomear juízes da Corte Suprema por
decreto, Milei mina as instituições
O Globo
Seria uma lástima se presidente argentino
pusesse a perder conquistas de seu governo para ampliar poderes
O presidente argentino, Javier Milei,
cometeu um erro ao nomear por decreto dois novos juízes para a Corte Suprema de
Justiça. A última instância do Judiciário argentino vinha atuando com apenas
três de seus cinco integrantes. Para justificar a nomeação, o governo argumenta
que Milei fez as indicações em maio, mas o Senado as ignora desde então.
Aproveitando o recesso parlamentar, ele assinou o decreto como forma de
pressionar o Congresso. Enquanto os senadores não votarem, os indicados podem
exercer a função por até um ano.
É verdade que algo semelhante aconteceu no
governo Mauricio Macri. Em 2015, assim que assumiu, Macri indicou dois juízes a
postos vagos na Corte Suprema, mas recuou diante da pressão. Seis meses depois,
o Senado aprovou ambos os candidatos. No caso de Milei, contudo, é difícil
acreditar em recuo. A oposição o acusa de tentar esticar os poderes do
Executivo para driblar a falta de maioria parlamentar. Juristas também afirmam
que, por atropelar uma atribuição do Senado, a nomeação é inconstitucional.
O tema é especialmente sensível porque
levanta a suspeita de aparelhamento da Justiça. Ocupar Cortes superiores com
nomes fiéis ao Poder Executivo está no topo da lista das medidas adotadas por
autocratas contemporâneos para sabotar as instituições democráticas. Foi o que
aconteceu em países como Hungria, Polônia e Venezuela. O temor de que algo
semelhante possa acontecer na Argentina justifica encarar as nomeações de Milei
com a máxima atenção.
O decreto é também um erro do ponto de vista
político, por criar um conflito desnecessário com o Congresso. O mês de
fevereiro foi particularmente difícil para o governo, com o escândalo em que
Milei se tornou suspeito de promover uma criptomoeda para auferir ganho
financeiro (ele nega as acusações). O episódio foi explorado pela oposição, e
ele só escapou de uma investigação no Senado por um voto.
Por fim, os próprios indicados por Milei
despertam suspeitas. Ariel Lijo, um deles, é juiz federal com mais de 30
denúncias por mau desempenho no Conselho da Magistratura. Foi denunciado por
associação ilícita, lavagem de dinheiro e suborno. Como
mostrou O GLOBO, deixou de julgar 75 de um total de 89 casos de corrupção
envolvendo dirigentes políticos.
Não há como escapar. A prioridade de Milei
está na economia. Perto desse desafio, todo o resto é secundário, o que inclui
comentários sobre criptoativos ou tentativas de expandir os poderes do
Executivo. Graças a um programa arrojado de ajuste fiscal, ele já conseguiu
reduzir a inflação anual de 211% para 84,5%. Por volta de 50% dos argentinos
seguem aprovando o governo, e a previsão é que a economia cresça 5% neste ano.
Seria uma lástima se, em vez de prosseguir em seu programa de estabilização,
ele pusesse tudo a perder com iniciativas que sabotam os caminhos
institucionais regulares.
Tarifas elevam riscos para inflação e
crescimento global
Valor Econômico
A alta da inflação, ou um mergulho na estagflação, será apenas um dos problemas que Trump legará à economia mundial se executar uma guerra tarifária generalizada
O presidente Donald Trump colocou em prática
suas ameaças de impor tarifas altas sobre seus principais parceiros comerciais,
México e Canadá, de 25%, e mais 10% sobre mercadorias vindas da China, além dos
10% que determinara no início de fevereiro. Há mais a caminho. Pendente de
estudos, os EUA podem implantar em 2 de abril a “reciprocidade” de tarifas,
tendo a do país como base, e aumentar os impostos de importação sobre a compra
de bens de nações cuja tarifação seja considerada discriminatória aos EUA. O aumento
das tarifas ocorre enquanto o orçamento de Trump vai para o Senado, após
aprovação na Câmara dos Deputados, prevendo um corte de gastos de US$ 2
trilhões e de impostos de US$ 4,5 trilhões em 10 anos. O resultado fiscal
líquido se choca com a perda do ritmo da economia prevista de preços de
importados maiores e as mais que prováveis retaliações contra as exportações
americanas. A inflação deve subir e os juros, interromper sua queda. Sob choque
de muitos impulsos conflitantes, os rumos da economia americana tornaram-se
incertos e, com ele, os da economia global.
A estratégia de caos “planejado” de Trump, já
em seu segundo mês, começa a ter impacto negativo. O Índice de Confiança do
Conference Board teve em fevereiro sua maior queda desde agosto de 2021, quando
houve repique da covid-19 no país, no sétimo recuo consecutivo. O índice
correlato da Universidade de Michigan teve rara queda em todos seus
componentes. Um mau augúrio foi que as expectativas inflacionárias para a média
dos próximos 12 meses subiram de 5,6% para 6%, uma enormidade visto o índice de
inflação em 12 meses de janeiro (CPI), de 3%.
Os sinais dados pelos indicadores econômicos
não indicam ainda uma tendência segura. Os gastos de consumo cresceram 4,2% no
quarto trimestre de 2024, um ótimo desempenho, mas na ponta, em dezembro,
recuaram 0,2%. Os investimentos encolheram 5,7% e o PIB do período teve avanço
de 2,3%, ante 3,1% do trimestre anterior. O ritmo da economia está longe de ser
fraco, o que demonstra a resistência da inflação, que voltou a subir um pouco
recentemente. O índice de preços ao consumidor foi de 3% anualizados em janeiro.
O de gastos pessoais de consumo, preferido pelo Federal Reserve, foi de 2,8%, e
seu núcleo, de 2,6%. Todos esses números ainda se mantêm a boa distância da
meta de inflação de 2% perseguida pelo banco central americano, que interrompeu
a queda de juros e não deu sinais de, e se, vai retomar o ciclo.
Ao estabelecer o jogo do protecionismo
radical, Trump tende a desacelerar a economia a médio prazo, embora ela possa
manter seu ritmo a curto prazo, sem que haja alívio na inflação. Retomar a
produção industrial doméstica de bens que eram importados de países que os
produziam de forma mais competitiva elevará os custos de imediato. As tarifas
extravagantes cobradas dos principais fornecedores do mercado americano serão
repassadas aos preços. A equipe de Trump não acredita que isso vá ocorrer
porque os aumentos dos impostos de importação para a China, em seu primeiro
mandato, praticamente não afetaram a inflação.
A situação agora é diferente. A inflação na
época estava abaixo dos 2%, e o Fed só começou a elevar os juros em março de
2022. A preocupação do banco central durante aqueles anos continuava a ser a de
evitar um risco de deflação. Além disso, as tarifas agora serão universalizadas
- Trump anunciou que também que vai aplicá-las às mercadorias importadas da
Europa, intenções que, se levadas em frente por um bom tempo, trarão um choque
de preços nada desprezível nos Estados Unidos.
O impulso fiscal à economia depende do
orçamento, aprovado por dois votos de diferença (217-215) na Câmara e que foi
ao Senado. Prevê cortes de US$ 2 trilhões em dez anos, que deverão atingir
programas como o Medicaid, de seguro-saúde para a baixa renda, e o programa de
auxílio alimentação. O corte dos impostos estende o anterior feito por Trump em
seu primeiro mandato, que acaba este ano, e acrescenta outros. O efeito,
segundo o Comitê por um Orçamento Responsável, será acrescentar mais US$ 2,4
trilhões em 2034 a uma dívida que hoje é de US$ 25 trilhões.
A alta da inflação, ou um mergulho na
estagflação, será apenas um dos problemas que Trump legará à economia mundial
se executar uma guerra tarifária generalizada. China, outrora motor principal
da expansão, está em desaceleração controlada e na mira dos EUA. A Europa se
debate com a semiestagnação. Juros altos e dólar valorizado estimularão a
inflação em muitos países, como ocorreu no Brasil, e impedirão ou retardarão a
queda das taxas. A aversão ao risco elevará os prêmios de papéis da dívida,
que, hoje contidos, permitiram bom volume de emissões de dívidas de empresas
brasileiras e do Tesouro, a taxas razoáveis.
Os riscos externos não mudaram muito desde
que Trump assumiu a Presidência. Sua política de barganhas apenas retardou a
execução, que agora é executada. A melhor defesa contra as pressões
desestabilizadoras seria ter a casa fiscal em ordem. O Brasil é vulnerável por
não ter feito isso e não há sinais de grande preocupação com isso pela frente.
Gasto do Judiciário é anomalia e Congresso
precisa agir
Folha de S. Paulo
Projeto para enquadrar despesas com
supersalários no setor está parado no Senado e governo apresentou proposta
melhor
Assim como o Supremo Tribunal Federal (STF), por
iniciativa do ministro Flávio Dino,
impôs algum nível de transparência à origem, propósito e destinação das
bilionárias emendas parlamentares, o Congresso deveria, mesmo que em forma de
salutar resposta, tomar a iniciativa de regular os gastos do Poder Judiciário.
Eles tornaram-se uma anomalia no Brasil, onde
uma casta do funcionalismo se apropria do dinheiro público de forma voraz, sem
que isso se traduza em eficiência para o sistema de Justiça.
País de renda média e com enormes desafios no
campo da desigualdade social, o
Brasil sustenta privilégios escandalosos para juízes, desembargadores
e servidores do setor. Algo que requer, o quanto antes, uma ação contundente a
fim de que possam ser eliminados.
Notícias sobre rendimentos na casa de
centenas de milhares de reais pagos a magistrados e desembargadores, muito
acima do teto constitucional, tornaram-se corriqueiras e, infelizmente, quase
não chocam mais. Trata-se de dinheiro de impostos, e os chamados penduricalhos
custaram nada menos que cerca de R$ 40 bilhões entre 2018 e 2023.
Não apenas no topo. Dados oficiais mostram
que a remuneração dos servidores do Judiciário nos últimos 40 anos ultrapassou
em várias vezes o reajuste concedido à média do funcionalismo federal, estadual
e municipal.
Outro levantamento, do Tesouro Nacional,
revela que o gasto do poder público brasileiro com os tribunais de Justiça,
incluindo a remuneração de magistrados e funcionários, é o segundo maior entre
50 nações analisadas. O
sistema custa aqui quatro vezes mais que a média internacional.
O Brasil despende cerca de 1,4% do Produto
Interno Bruto (PIB)
com o Poder Judiciário, ante 0,3% em outros países. Apenas El Salvador tem um
gasto maior com tribunais, de 1,6% do PIB.
Não há nenhuma justificativa para isso,
apenas o fato de, encastelados, juízes e desembargadores legislarem em causa
própria, com autonomia para se apropriar do Orçamento na União e,
principalmente, nos estados.
Tal situação ocorre por omissão do Congresso
Nacional, onde dormita no Senado, desde
2021, projeto para limitar o pagamento de benefícios acima do teto. É
lamentável que, mesmo considerando mais de 30 exceções que permitiriam a
existência de penduricalhos, a matéria não tenha sido analisada até hoje.
No final do ano passado, o governo de Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT), em iniciativa sensata, encaminhou ao Legislativo uma Proposta de
Emenda Constitucional que pretende substituir o projeto ora parado no Senado,
de forma a limitar
as brechas para pagamentos acima do teto.
Em nome da moralidade e do equilíbrio
orçamentário, o Congresso deveria encarar já a matéria. Seria uma conveniente
resposta ao STF pela fiscalização das emendas. Os dois movimentos tornariam o
Brasil mais justo.
Nunes abusa de dispositivo legal para minar
licitações
Folha de S. Paulo
Regime emergencial em obras é importante, mas
falta de transparência gera dúvidas sobre lisura e revela mau planejamento
Pouca transparência na execução de políticas
públicas sinaliza má gestão do dinheiro dos contribuintes e até corrupção,
além de dificultar o escrutínio das práticas de governo pela sociedade.
Entretanto a Prefeitura de São Paulo sob
o comando de Ricardo Nunes (MDB) insiste nessa
conduta duvidosa.
Em 2024, ano em que Nunes venceu a eleição, a
Secretaria Municipal de Infraestrutura e
Obras assinou 28 contratos sem licitação com
base no regime de emergência no valor de R$ 810,3 milhões. Desses, 8 não
foram respaldados por laudos da Defesa Civil e
representam quase a metade do gasto total na categoria de urgência (R$ 391
milhões).
Mesmo que a análise da Defesa Civil não seja
obrigatória, trata-se de mais um elemento que coloca em suspeição o uso que a
prefeitura tem feito do regime de emergência —instituído por decreto em 2019
para agilizar ações em "situação que possa ocasionar prejuízo ou
comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros
bens".
Por dispensar licitações, exige-se
apresentação de informações minuciosas e, se necessário, "laudo
técnico" e "relatório de risco".
O modelo é essencial para proteger vidas, mas
sua aplicação deveria ser criteriosa. O que se vê, porém, é uma interpretação
elástica da sua aplicabilidade, o que suscita questionamentos sobre a lisura do
processo —ainda mais ao se considerar interesses políticos em período
eleitoral.
Tal fenômeno em 2024 é a ponta do iceberg.
Entre setembro de 2021 e dezembro de 2023, a prefeitura contratou 140
obras emergenciais que custaram R$ 2,2 bilhões —65% da verba
direcionada ao combate a enchentes. Ademais, das 41 empresas responsáveis por
realizá-las, 10 concentraram 63% do montante (R$ 1,4 bi).
Nunes assumiu a prefeitura em maio de 2021.
A Folha mostrou que de 2020, último ano completo do mandato de Bruno Covas (PSDB), a 2022, o
valor gasto
com obras sem licitação pelo regime emergencial aumentou 1.313%, sem
apresentação de justificativa para o salto exorbitante.
Além de dúvidas quanto à retidão, há indícios
de mau planejamento. Parte significativa das obras relacionadas a enchentes são
pontuais, em vez de estruturais. Ou seja, não resolvem as causas do problema e
geram mais gastos no curto prazo.
Nunes deve explicações aos paulistanos —até porque se comprometeu em abril do ano passado a vetar o uso arbitrário do regime emergencial. Já a Câmara Municipal precisa exercer sua função institucional e monitorar a aplicação desse dispositivo
Uma pequena vitória no caso das emendas
O Estado de S. Paulo
Acordo validado pelo STF sobre as emendas é
importante como freio de arrumação, mas ainda há muito o que corrigir,
incluindo a magnitude única do poder parlamentar sobre o Orçamento
Terreno fértil de onde têm brotado sucessivas
más notícias, o impasse em torno das emendas parlamentares finalmente recebeu
um freio de arrumação para impedir o avanço de uma aberração nacional. A
construção do acordo entre a cúpula do Congresso, o governo e o ministro Flávio
Dino, relator do caso no Supremo Tribunal Federal (STF), e sua validação pelo
plenário da Corte oferecem ao menos alguma luz para que se assegure mais
transparência e rastreabilidade à previsão, destinação e liberação de recursos
das emendas no âmbito do Orçamento da União. Mas convém ter cautela na
comemoração: ainda que seja um acordo no limite do possível, trata-se de uma
decisão tardia e longe de ser suficiente para resolver o mal maior, isto é, o
excessivo poder de parlamentares sobre bilionários recursos federais.
Esse poder já tem longa data. A ampliação,
imposição e diversificação das emendas parlamentares começou em 2015, ainda no
mandato de Dilma Rousseff. Foi o momento em que se tornaram impositivas – o que
permitiu um salto de R$ 9 bilhões para R$ 15 bilhões em 2017, no governo de
Michel Temer. Dois anos depois, na gestão de Jair Bolsonaro, surgiu um novo
triunfo: a impositividade das emendas coletivas. Mas o apetite clientelista
chegou ao paroxismo com as antigas emendas de relator, identificadas com a sigla
RP-9, e com as transferências especiais sob o rótulo de “emendas Pix”,
realizadas diretamente pelos parlamentares em suas bases eleitorais e
repassadas de maneira arbitrária e sem transparência.
O esforço para criar diques de contenção
começou em 2021, quando este jornal revelou a existência de um sofisticado
esquema de compra de apoio parlamentar urdido pelo governo Bolsonaro e pela
caciquia do Congresso – o chamado “orçamento secreto”. O STF declarou sua
inconstitucionalidade em dezembro de 2022, mas descobriu-se que a marotagem
seguiu firme no governo de Lula da Silva, com ministérios transferindo dinheiro
para municípios sob ordens de deputados e senadores e fora do alcance de
controles institucionais claros e precisos. Converteu-se, assim, em valioso
trunfo eleitoral de parlamentares nas eleições do ano passado, período em que
R$ 53 bilhões do Orçamento estavam em suas mãos.
Pelo raio de ação dos cupins do Orçamento, no
entanto, qualquer feito do acordo validado agora já terá sido um alento. É esse
o caso. Com a decisão, o Congresso se compromete a dar transparência a valores,
prazos e cronogramas, identificar nominalmente os autores das emendas de
comissão e de relator – estas usadas desde 2020 no orçamento secreto e até hoje
sem informação completa sobre quem indicou as verbas. Se cumprido o básico a
partir daqui, as emendas, por ora bloqueadas pelo STF, passarão a ser liberadas.
O plano validado, contudo, mantém represadas aquelas que desrespeitam
parâmetros elementares de transparência e rastreabilidade dos gastos, ou
suspensas por ordem judicial.
Chama a atenção, porém, o fato de os
principais porta-vozes do atual corporativismo sindical congressista terem
comemorado a liberação das emendas. Afinal, quase sempre quando parlamentares
ficam felizes é o País que paga a conta. “É o reconhecimento das prerrogativas
dos parlamentares”, vibrou o presidente da Câmara, Hugo Motta. “Reconhecemos
que se trata de um instrumento legítimo para a entrega de bens e serviços à
população”, disse o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Enquanto isso,
diferentes projetos tentam ressuscitar verbas que não foram pagas nos últimos
anos. Também ainda não há responsabilização para quem atuou para driblar as
decisões da Corte e repaginar o esquema.
Há muito o que corrigir, portanto, não só
entre os ardis do Congresso quanto ao monumental controle exercido por
parlamentares sobre o Orçamento federal. Não há caso similar no mundo. Em torno
de 23% de todo o gasto discricionário – aquele que não é despesa obrigatória,
como aposentadorias, salários e pisos constitucionais de saúde e educação –
está nas mãos de deputados e senadores. Há dez anos eram 2%. Em termos
proporcionais, nos EUA o Congresso não interfere em mais do que 1,5% das
despesas discricionárias previstas no orçamento federal. Nem se o Congresso
brasileiro exibisse atributos sobrenaturais se justificaria tamanha magnitude.
O Brasil precisa de um arcabouço antimáfia
O Estado de S. Paulo
O crime se organiza cada vez mais. O Estado
precisa se organizar também. Em boa hora, o Ministério da Justiça elabora uma
proposta com o condão de desarticular as facções criminosas
Desde outubro passado, um grupo de trabalho
mobilizado pelo Ministério da Justiça elabora uma proposta de legislação
antimáfia. Segundo depoimento do secretário nacional de Segurança Pública,
Mario Sarrubbo, ao Valor Econômico, entre os objetivos estão estabelecer
um tratamento diferenciado entre organizações criminosas comuns e organizações
de caráter mafioso (ou seja, sistematicamente infiltradas na sociedade civil) e
novos instrumentos de asfixia financeira, como bloqueio de bens mais ágil. O
projeto deve ser apresentado este mês. É cedo para avaliar a qualidade e a
abrangência da iniciativa, mas ela se orienta na direção certa.
Não há indicador que não evidencie uma
metástase que avança por todos os órgãos do corpo nacional. O crime organizado
se capilariza na economia legal; se infiltra na política; controla territórios,
atuando como um Estado paralelo; e amplia conexões com máfias estrangeiras,
resultando num aumento quantitativo dos crimes e na diversificação qualitativa
de seus negócios.
Mas o Estado não acompanhou essa
sofisticação: os órgãos de segurança não estão integrados; a tecnologia e os
sistemas de inteligência estão defasados; as forças de segurança são
subfinanciadas; o sistema prisional é deficiente; a legislação é insuficiente;
o sistema judicial é ineficaz.
A experiência internacional oferece um
cardápio de boas práticas para subsidiar o poder público brasileiro.
Desde os anos 1970, os EUA reprimiram
substantivamente a articulação do crime organizado, especialmente pelos
instrumentos fornecidos pela Lei de Organizações Corruptas e Influenciadas por
Extorsão (Rico). Focando mais em padrões de comportamento criminoso do que em
crimes individuais, a lei dá latitude aos agentes da Justiça, permitindo que
eles processem diversos indivíduos como membros de uma “família” criminosa, se
houver evidência de participação em ao menos duas atividades tipicamente
associadas ao crime organizado, como extorsão, fraude, tráfico, lavagem de
dinheiro ou suborno. A lei autoriza penas pesadas e ampla capacidade de
confisco ao Estado.
O arcabouço criado pela Itália desde os anos
1990 é um dos que mais se aproximam do “padrão ouro” de combate ao crime
organizado. Escorado em um tripé – compromisso político, leis adequadas e
engajamento da sociedade civil –, o poder público italiano criou uma série de
medidas preventivas e repressivas, como uma legislação para facilitar e
acelerar inquéritos e procedimentos judiciais contra chefes mafiosos; penas
mais duras e regimes penitenciários especiais; institutos de colaboração
premiada; confisco preventivo e expropriação em favor da sociedade; e políticas
holísticas para reprimir a infiltração do crime organizado, como dissolução de
órgãos locais controlados pelas máfias, melhorias na segurança e
desenvolvimento econômico de comunidades carentes e sistemas de transparência,
prestação de contas e responsabilização voltados a colaboradores do colarinho
branco no empresariado e na administração pública.
Crucial para a efetividade desse arcabouço
foi a instauração de instituições aparelhadas para enfrentar organizações
multifacetadas e sistematicamente capazes de transcender delitos, investigações
e processos penais individuais. Notadamente, a Direzione Investigativa
Antimafia (DIA) promove esforços de inteligência focados mais em
empreendimentos sistêmicos do que em crimes individuais, atuando ao mesmo tempo
em investigações no plano internacional. A DIA tem autonomia gerencial e
financeira, é composta por membros das diversas forças de segurança e opera em
campos como gestão de bancos de dados, monitoramento de licitações e obras
públicas e transações suspeitas. Seu diretor tem a prerrogativa de propor aos
tribunais medidas de prevenção, seja em caráter pessoal (vigilância especial),
seja em caráter patrimonial (sequestro de bens). Entre 1992 e 2018, a DIA
sequestrou mais de € 17 bilhões em ativos, confiscou mais de € 10 bilhões e
prendeu mais de 10 mil pessoas acusadas de associação mafiosa.
No Brasil, o crime se organiza cada vez mais
e melhor. É hora de o Estado se organizar também.
As inaceitáveis perdas do BPC
O Estado de S. Paulo
Benefício a idosos e carentes acumula
irregularidades e amplia fatia no Orçamento
Os gastos do governo com o pagamento do
Benefício de Prestação Continuada (BPC), que em janeiro de 2024 somaram R$ 8,8
bilhões, bateram em R$ 10,1 bilhões em janeiro deste ano. O crescimento real
(já descontada a inflação) de 14,8% no mês reforça a diligência do Tribunal de
Contas da União (TCU) que identificou perdas de R$ 5 bilhões ao ano com a
concessão indevida do benefício e fixou prazo de seis meses para o Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS) apresentar medidas corretivas.
Uma série de falhas tem colocado na berlinda
a eficiência do BPC, voltado a atender idosos e pessoas com deficiência em
situação de vulnerabilidade. Como política pública, estabelece critérios
específicos para a concessão, sendo os dois principais a comprovação de renda
familiar de até um quarto do salário mínimo por pessoa (o que equivale
atualmente a R$ 379,50) e não cumulatividade com outros benefícios
previdenciários e assistenciais.
A auditoria do TCU constatou 31,1 mil
inconsistências em registros de dados cadastrais de titulares do BPC e seus
familiares e suspeita de que quase 2,5 mil mortos figurem entre os
beneficiários. Reportagem recente do Estadão, com dados obtidos por meio
da Lei de Acesso à Informação, mostrou que o recorde de judicialização do ano
passado resultou em 182 mil novos benefícios – 23,4% do total – concedidos por
determinação da Justiça.
O crescimento exponencial, o grande volume de
irregularidades, a judicialização e o comprometimento orçamentário cada vez
maior mostram a necessidade de adequação da política pública, tanto na forma
quanto na operacionalização. Em primeiro lugar, o mínimo que se espera do
Estado são ações contínuas de combate a fraudes e atualizações cadastrais
permanentes para preservar a eficácia do programa. Essa fiscalização é
fundamental para o monitoramento de qualquer benefício assistencial.
Dito isso, a indexação do reajuste do BPC à
política de valorização do salário mínimo, reajustado acima da inflação, acaba
por criar distorções sobre o benefício e onerar ainda mais o Estado, sendo um
ponto de pressão fiscal nada desprezível. De acordo com levantamento dos
pesquisadores Sergio Kelner Silveira e Carolina Beltrão de Medeiros, da
Fundação Joaquim Nabuco, ligada ao Ministério da Educação (MEC), em 2023, com
crescimento real de 12,4%, as despesas com o BPC já se aproximavam de 1% do
PIB.
Como auxílio assistencial a uma população
idosa vulnerável, é previsível seu aumento diante do envelhecimento da
população. Mas é importante frisar que o BPC não é uma aposentadoria, muito
menos salário. Por isso, este jornal defende que não há justificativa em
atrelar o auxílio à fórmula do salário mínimo, até porque o beneficiário não
precisa ter contribuído para a Previdência, como fizeram durante a vida laboral
os aposentados que recebem pelo menos um salário mínimo.
Nas propostas para redução de gastos
públicos, o BPC é presença recorrente, barrada sempre pela visão populista de
Lula da Silva. Para manter a sustentabilidade do BPC, o governo precisa encarar
com neutralidade a revisão de seus critérios e de sua operacionalidade.
Casos de gripe aviária nos EUA viram
alerta
Correio Braziliense
Muitos avicultores não fazem ideia dos
sintomas da doença, portanto, sequer conhecem os perigos
É comum nos depararmos, vez por outra, com
notícias alarmantes que apontam para o surgimento de novos vírus capazes de
reviver o horror da pandemia de covid-19. Enquanto muito desse conteúdo surfa
na onda do imediatismo em busca de audiência, uma doença, em específico, merece
cuidado redobrado da sociedade civil e das autoridades: a gripe aviária causada
pelo Influenza H5N1.
Nos Estados Unidos, o governo Trump inicia
com um desafio econômico causado pela exorbitante alta no preço dos ovos — o
Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês)
estima que a inflação do produto pode chegar a 41%. A explosão da cotação é
explicada pelo surto do H5N1 no país. Na Geórgia, em janeiro e fevereiro, 45
mil aves foram infectadas, o que forçou a suspensão de toda a avicultura do
estado.
Mas os impactos não ficam restritos somente à
economia. Os Estados Unidos também identificaram casos de infecção pelo H5N1 em
mamíferos, como vacas leiteiras, nos últimos meses. Por terem um sistema
respiratório muito semelhante aos humanos, os bovinos infectados representam um
risco importante para nossa saúde. É possível que o vírus, como aconteceu
diversas vezes com o novo coronavírus, sofra mutações que permitam a infecção
de pessoas.
Essas infecções, apesar de raras, já
aconteceram. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), são 954 casos em
humanos entre janeiro de 2003 e dezembro do ano passado, em 24 países. O que
chama atenção para o tamanho do risco, no entanto, é a altíssima taxa de
letalidade: 49% dos diagnosticados não resistiram. Para efeito de comparação, o
mesmo indicador da covid-19 no Brasil gira em torno dos 2%.
O controle do H5N1 passa por desafios
importantes. Pela falta de conhecimento, muitos avicultores não fazem ideia dos
sintomas da doença, portanto, sequer conhecem os perigos. Os sinais passam pela
redução da produtividade dos animais, dificuldade para respirar e tosse.
Essa limitação gera, evidentemente, risco de
subnotificação. Há uma baixíssima cobertura epidemiológica voltada ao vírus,
por isso infecções assintomáticas e, até mesmo, sintomáticas podem passar
despercebidas pelas autoridades de saúde. Tal cenário aumenta ainda mais o
risco, já que os vírus têm como característica a rápida adaptação para o
surgimento de novas cepas, com intuito de diversificar seus hospedeiros.
Mas qual a saída para reduzir o risco? Além
de maior conscientização de avicultores e de reforço da vigilância
epidemiológica, o mundo precisa investir recursos em pesquisas voltadas à
criação de uma vacina capaz de frear a transmissão da gripe aviária. Nos EUA,
cinco trabalhos estão em andamento – dois deles querem motivar a geração de
anticorpos capazes de neutralizar o H5N1.
Outra saída é a criação de vacinas que
protejam diretamente as aves – como acontece com a febre aftosa, por exemplo. A
discussão, no entanto, passa pelo impacto econômico da medida. Há risco de que
essa estratégia comprometa o desempenho do setor, sobretudo em países com
fortes agendas contra os imunizantes, como os Estados Unidos.
Além disso, a conscientização dos avicultores também passa pelo aspecto econômico. Por temerem perder dinheiro, muitos ignoram os sinais da doença e evitam a notificação junto às autoridades. Nos EUA, um acerto do governo foi a remuneração dos criadores mesmo em caso de sacrifício dos animais. No entanto, só há reembolso daqueles que forem mortos após a comunicação.
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