O Globo
Que é proibido anistiar a quem comete crime
de golpe de Estado já foi percebido na Argentina, pelos tribunais e pela
doutrina
Está em discussão a concessão de anistia aos
condenados e acusados pelos crimes de tentativa de golpe de Estado e abolição
do Estado Democrático de Direito. A pergunta de 1 milhão de leis é: se
aprovada, o Supremo Tribunal Federal (STF) pode declarar a lei anistiante como
inconstitucional?
A resposta é afirmativa. Por vários motivos. Em primeiro lugar, há que rejeitar argumentos (existem muitos divulgados na mídia) de que uma lei de anistia não seria inconstitucional porque a Constituição Federal (CF) não a proíbe. Esse parece ser o principal argumento a favor da tese da anistia. Trata-se de uma tese que no Direito chamamos de textualista, pela qual “o que a Constituição não proíbe, permite”. Isso quer dizer que o legislador, toda vez que a CF não estabelecer o contrário ou não disser algo sobre o tema, poderia aprovar qualquer tipo de lei. Ora, pensar assim é fazer pouco-caso da Constituição. É pensar que a CF é uma espécie de simples código.
Um exemplo singelo derruba os argumentos
textualistas. Se uma lei proíbe cães no parque, um textualista — que defende a
constitucionalidade de uma lei de anistia aos golpistas — por certo responderia
que “a lei não proíbe ursos”. Logo, são permitidos. Pior ainda: por certo o
textualista dirá que, proibidos cães, o cão-guia do cego está impedido de
transitar no parque. Essa é a melhor maneira de saber o conceito de
“interpretação textualista”.
Em segundo lugar, temos o precedente Daniel
Silveira. Não era proibido expressamente pela Constituição que o
presidente Jair
Bolsonaro concedesse indulto. Mas o STF, baseado em forte doutrina e
na interpretação sistemática, entendeu que o ato contrariou a Constituição.
Nesse precedente (ADPF 964), já se vê a pista da inconstitucionalidade de
eventual lei anistiando golpistas. Há uma passagem em que se lê:
— Indulto que pretende atentar, insuflar e
incentivar a desobediência a decisões do Poder Judiciário é indulto atentatório
a uma cláusula pétrea prevista no art. 60 da CF.
Isso é o que se chama “proibição implícita”.
Igualzinha à vedação de ursos. Não precisa ser dito. Está implícita a
proibição. Chama-se a isso de hermenêutica da função da lei.
Que é proibido anistiar a quem comete crime
de golpe de Estado já foi percebido na Argentina, pelos
tribunais e pela doutrina (Bidart Campos). Por aqui, setores do Direito tentam
aplicar uma espécie de “textualismo seletivo”.
Ainda sobre o “precedente Daniel Silveira”,
consta no acórdão, no voto do ministro Alexandre de Moraes:
— Seria possível o STF aceitar indulto
coletivo para todos aqueles que eventualmente vierem a ser condenados pelos
atos de 8 de janeiro, atentados contra a própria democracia, contra a própria
Constituição?
E a resposta:
— Obviamente que não. Isso está implícito na
Constituição.
Aliás, no caso Silveira, o STF usa mais de 40
vezes a tese de que há vedações implícitas na Constituição ao direito de
anistia e indulto.
No nosso exemplo, parece óbvio que, proibidos
cães, ursos não são permitidos. E por quê? Porque onde está escrito cães,
leia-se “animais perigosos”. E onde está escrito democracia e Estado
Democrático de Direito, leia-se “ninguém pode usar a democracia contra si
mesma”. Nenhuma Constituição admitirá perdão (indulto, anistia) para quem
atenta contra o Estado Democrático. Tudo porque a Constituição não é um
oximoro. Não dá para “contentar-se de contentamento”. Na poesia, dá; no
Direito, não!
*Lenio Luiz Streck é jurista, professor e advogado
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