Folha de S. Paulo
Não há genialidade tática prestes a nos
surpreender; americano defende tarifas desde os anos 1980
O trabalho do colunista —ou do comentarista—
é, em boa medida, revelar alguma ordem na torrente de fatos e dados em que
estamos imersos diariamente. É fácil se afogar na multiplicidade. Precisamos
daquilo que organiza: relações causais, narrativas que deem sentido,
conhecimento das intenções e planos dos envolvidos, ainda que ocultos. O dia a
dia do comentarista consiste em incorporar novos fatos às narrativas possíveis,
sempre reavaliando quais delas ainda fazem sentido e quais estão ruindo diante
da realidade.
A tentativa de encontrar ordem, porém, parte da nossa mente. A realidade nem sempre colabora. Aleatoriedade, incompetência, erro; tudo isso também existe. E tudo indica que é o caso do tarifaço de Trump.
Desde que foi anunciado, deixou
todo mundo perplexo. As tarifas vieram muito acima do previsto, e sem
qualquer relação com a ideia de "reciprocidade tarifária" que
supostamente guiaria o plano. Países que mal taxam produtos americanos,
como Suíça e Israel, foram
alvos de tarifas pesadas. Outros, notoriamente protecionistas, como o Brasil,
ficaram com a tarifa mínima de 10%.
Tem sido quase divertido assistir às
acrobacias de muitos liberais econômicos tentando justificar o tarifaço.
Segundo alguns, as tarifas anunciadas no dia 2 são apenas uma jogada inicial:
um blefe calculado, que abriria espaço para negociar taxas menores num futuro
próximo.
Só esqueceram de combinar com o próprio
Trump. Ele tem sido claro em defender a volta dos empregos industriais
aos EUA.
Se daqui a algumas semanas ele recuar para tarifas inferiores às que já
existiam, não haverá renascimento industrial nenhum. Além disso, ele
não pode retroceder demais por causa do buraco fiscal. Precisa de
tarifas robustas para compensar, ainda que parcialmente, os cortes de impostos
com os quais pretende aquecer a economia, e que devem reduzir a arrecadação em
cerca de US$ 5 trilhões ao longo da próxima década. Caso contrário, o rombo nas
contas públicas pode se transformar em uma crise ainda mais grave.
As tarifas, portanto, vieram para ficar. Não
duvido que Trump queira, mediante negociações, reduzi-las
a um patamar menos catastrófico —mas não será abaixo do que já estava
em vigor. Ainda que se aceite que o protecionismo é mesmo a política econômica,
contudo, resta a pergunta: por que essa tabela desigual, com tarifas
personalizadas para cada país, baseadas numa equação arbitrária dos fluxos
comerciais? E por que mudar as regras com tanta frequência, a ponto de ninguém
saber se a tabela ainda estará de pé em duas semanas? A
incerteza, por si só, já tem cobrado seu preço, inclusive nas bolsas.
Em vez de procurar um plano oculto, talvez
caiba reconhecer algo mais simples: 1) Trump realmente gosta de tarifas, como
vem dizendo desde os anos 1980. 2) Ele
não faz ideia do que está fazendo e os bajuladores a seu redor são
incapazes de limitá-lo.
Não há xadrez 4D. Não há plano secreto. Não há genialidade tática prestes a nos surpreender. Quem insiste nisso está apenas procurando, a cada novo desastre, um motivo para não admitir que errou. Às vezes, uma burrada é apenas uma burrada.
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