Com efeito, essa questão estatal x privado está no mínimo mal colocada, uma vez que a empresa estatal corresponde à fase do Capitalismo Monopolista de Estado, quando o capital público financia a atividade privada, penetrando em setores no qual o capital privado tem poucas possibilidades de realização de lucros ou então não possui recursos suficientes para investir em determinada área de produção. A burguesia simplesmente não tem como existir fora da ordem do Capitalismo Monopolista de Estado.
E o mesmo vale para a
automação, aliás: a burguesia não pode levar essa lógica até o fim, pois não
existe extração de mais-valia a partir de robô. Ou seja, ela forjou uma base
material que não lhe serve. A meu juízo, a experiência da União Soviética esbarrou
nisso, já que não criou uma base material apropriada à sociedade sem classes.
Estabeleceu as condições políticas, mas não as condições materiais. Atualmente,
temos as condições materiais, mas perdemos momentaneamente as condições
políticas.
Defender uma empresa estatal
não significa necessariamente defender a esfera pública. E estatização não se
confunde de maneira alguma com socialização. Como o controle ou as indicações
para as diretorias das estatais partem dos partidos políticos – que são órgãos
privados, nunca podemos nos esquecer disso –, muitas vezes esses partidos
tendem a fazer a defesa das estatais por razões de conveniência, e não por que
estejam preservando de fato os interesses da população. Mais, até: o pior tipo
de privatização que existe é o roubo ou a corrupção. E esse roubo ocorre volta
e meia em companhias estatais. Assim, penso que tudo vai depender da gestão
e não tanto do caráter formal da propriedade (que pode ser “pública”
apenas no papel). Aí está o x da questão. E
uma determinada entidade privada, convém mencionar, pode perfeitamente
encarnar a esfera pública. Uma cooperativa é uma entidade privada, assim como
uma ONG. Entidade privada não é sinônimo de propriedade de um só. Aí está o x da
questão também.
Mais: que a empresa –
portanto capitalista – seja estatal ou privada, nem por isso ela deixa de
recorrer à exploração da força de trabalho pela via do assalariamento. Pelo
contrário. E o que caracteriza um determinado modo de produção historicamente
falando é a forma de existência social da força de trabalho,
justamente. Uma sociedade é escravista porque explora a força de trabalho
escrava. Uma sociedade é feudal porque se baseia na extração do trabalho
servil.
Parece óbvio, mas para
alguns ainda não é: assim como a propriedade capitalista “privada", a
propriedade capitalista “estatizada” não implica de forma alguma a propriedade
dos meios de produção para aqueles que trabalham. Marx chegou a dizer que
a luta dos trabalhadores tinha por objetivo restabelecer “a propriedade
individual fundada sobre as conquistas mesmo da era capitalista”, vendo assim o
trabalhador como um detentor pessoal das suas condições de trabalho. Não havia
outra forma dele ser dono do seu próprio trabalho. Dá o que pensar.
Em outras palavras, há uma via
jurídica, de um lado, e uma via política ou burocrática, de outro, para
o acesso à propriedade. Durante a campanha presidencial do PCB, em 1989, o
candidato Roberto Freire lembrou que os governos que mais estatizaram no Brasil
foram os governos ditatoriais, isto é, o Estado Novo de Getúlio Vargas e as
experiências dos militares a partir de 1964. Justamente os dois períodos em que
mais houve perseguição aos trabalhadores fabris e intelectuais durante o Brasil
republicano.
Além do que, há uma
tendência a não se respeitar a propriedade coletiva, como se ela não fosse de
ninguém. A única propriedade reconhecida, muitas vezes, é a propriedade
privada. Eis o que vai explicar o comportamento de algumas pessoas frente ao
patrimônio público, sujeito a depredações que, entretanto, não atingem o
patrimônio privado ou raramente.
Sob uma economia como aquela
da China hoje, convém constatar que as estatais cumprem o papel de alimentar a
ideologia da burocracia, como justificando a sua presença e força política. A
estatal está para essa camada dominante no Estado - colocada ali pelo partido
também dominante e proprietário informal dos meios de produção - como a empresa
privada “puro sangue” está para os capitalistas: é fonte de poder e lucro. A
China tem comprado, por intermédio de suas empresas estatais, terras para
plantar e explorar soja no Brasil, competindo com o agronegócio entre nós. A
estatal é a base material da expansão imperialista chinesa, via burocracia. E
essa burocracia de corte imperialista é a mesma que já se projetava lá atrás,
fazendo com que a China fosse o primeiro país a reconhecer a ditadura de
Augusto Pinochet no Chile em 1973. Isso, para não esquecer que essa burocracia
também apoiou as tropas de Jonas Savimbi, notório agente da PIDE portuguesa,
contra o MPLA, a partir de 1975. E como se isso não bastasse, essa burocracia
invadiu ainda por cima o Vietnam, em fevereiro de 1979. Foi fragorosamente
derrotada, da mesma forma que os invasores franceses, japoneses e
norte-americanos.
O que a China pretende está
ficando cada vez mais claro. A questão é saber se o Brasil vai, mais uma vez,
se conformar em ser um coadjuvante nessa história toda, que tem os Brics como
grande alavanca econômica, buscando relegar países como o nosso a um papel de
produtor de mercadorias primárias. Que os diferentes ciclos pelos quais
passamos no período colonial sirvam de sinal de alerta.
Hoje, mais do que nunca, precisamos de um projeto de nação. Para isso, é preciso entender o novo mundo do trabalho, a ordem globalizada que se apresenta diante de nós, o valor da questão ambiental e os problemas relacionados à identidade dos povos.
*Ivan Alves Filho,
historiador.
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