O Estado de S. Paulo
Armas são necessárias no combate à
criminalidade, mas quando usadas por funcionários públicos adequadamente
preparados para isso
Deu no jornal: Mortes de menores em ações
policiais em SP mais do que dobram (Estadão, 4/4, A16). Mais do que espanto, um
título desses deveria causar indignação, revolta. Mesmo num país em que a
violência se tornou a maior preocupação da população, a informação de que não
apenas a polícia de São Paulo mata crianças, meninos e adolescentes, mas de que
passou a matar mais deveria levar-nos a refletir sobre o que estamos fazendo
com os jovens, e sobretudo como permitimos que a ação policial chegasse a esse
ponto.
Estatisticamente, o aumento de 120% no número de crianças e adolescentes que morreram em decorrência de intervenções policiais no Estado de São Paulo entre 2022 e 2024 resulta da comparação de números relativamente baixos (35 vítimas em 2022 e 77 em 2024). Estes números foram apurados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e fazem parte do estudo As câmeras corporais na Polícia Militar do Estado de São Paulo (2.ª edição): mudanças na política e impacto nas mortes de adolescentes. Não se trata, porém, de mera estatística. Nem se pode dizer que se trata, como se justifica em certas ações, de danos colaterais. Vidas em construção foram brutalmente interrompidas pela ação policial.
Assassinatos de crianças e adolescentes não
são problema novo. Os números são chocantes. Não podem ser banalizados.
Relatório de 2024 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o
Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), mostrou que, entre 2021 e
2023, o Brasil registrou morte violenta intencional de pelo menos 15.101
crianças e adolescentes. Essa categoria (morte violenta intencional) inclui
registros criminais de homicídio doloso, feminicídio, latrocínio, lesão
corporal seguida de morte e morte decorrente de intervenção policial em serviço
ou não. Somam-se aqui apenas os casos registrados. Certamente há
subnotificação.
Em debate na Comissão de Direitos Humanos do
Senado em agosto do ano passado, o pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública Cauê Martins disse que os números evidenciam uma realidade brutal “e
dimensionam o fracasso da sociedade brasileira, que banaliza a morte violenta
intencional de 13 crianças por dia”. Participantes do debate disseram que os
índices mostram uma epidemia de violência contra os jovens.
Há particularidades na violência letal que
atinge crianças e adolescentes, observou Martins. Houve redução do número total
de mortes violentas intencionais no País nessa parcela da população, mas a
redução não foi homogênea entre as diferentes faixas etárias. Nas faixas de 10
a 14 e de 15 a 19, o número de mortes diminuiu, mas, o que é assustador,
aumentou na de crianças mais novas, especialmente de 0 a 4 anos. A pesquisa
trata de mortes violentas de todas as naturezas; as decorrentes de ações
policiais compõem parcela pequena.
No caso da ação policial no Estado de São
Paulo, é preciso destacar que não se trata de violência individual do agente ou
dos agentes das forças de repressão causada por estresse, forte emoção,
descontrole ou outro fator de natureza psicológica ou pessoal, embora esse tipo
de causa possa ter havido em algum episódio. O que torna mais grave o aumento
do número de crianças e adolescentes mortos pela polícia do Estado de São Paulo
é o fato de ser decorrência de decisões tomadas em instâncias superiores da segurança
pública. Trata-se de um efeito da política do governo de Tarcísio de Freitas.
O relatório do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública sobre o uso de câmeras corporais pela Polícia Militar (PM) do Estado de
São Paulo observa que mudanças nas políticas de controle da corporação
resultaram em aumento de 153,5% entre 2022 e 2024 nas mortes em intervenções
policiais. O número de mortes em ações de batalhões que utilizam câmera
corporal aumentou mais (175,4%) do que nos que não usam (129,5%). Mas é apenas
uma casualidade. Dados a partir de 2020, quando a PM adotou o programa de
câmeras, mostram notável redução da letalidade das unidades que utilizam o
equipamento, o que demonstra sua eficácia. O que o crescimento recente mostra é
apenas que, a partir de 2023, isto é, no governo atual, a letalidade aumentou
muito em toda a PM, com ou sem o uso da câmera corporal.
A missão da polícia é garantir segurança e
paz, sem acentuar ou perpetuar a violência, especialmente a praticada em nome
do combate ao crime, mas fora dos limites da lei. Despreparo, ineficiência dos
setores de inteligência, apologia da violência, desrespeito aos direitos do
cidadão e conivência com organizações criminosas vêm sendo apontados como
graves vícios de forças policiais em diferentes regiões. Boa parte dos
governantes ainda ameaça puxar o revólver quando fala de reforçar a segurança
pública. Armas são necessárias no combate à criminalidade, mas quando usadas
por funcionários públicos adequadamente preparados para isso. Nem sempre tem
sido assim.
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