domingo, 14 de setembro de 2008

"Fortuna" e "virtù"

Editorial
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Recorde na popularidade de Lula reflete bonança na economia que seria injusto atribuir apenas à sorte presidencial

CRESCIMENTO econômico, redução da desigualdade de renda, controle da inflação. Uma rara confluência de fatores positivos se reflete no recorde histórico alcançado pela popularidade do presidente Lula, segundo a última pesquisa do Datafolha: 64% da população qualifica como "ótimo" ou "bom" o seu governo.

Lula tem muito a agradecer, por certo, ao concurso da "fortuna" -e a descoberta de grandes reservas de petróleo no oceano, abaixo da camada de sal, parece mais uma vez confirmar no seu caso a intervenção desse fator imponderável, que Maquiavel apontava como essencial para o sucesso de um governante.

Essencial, mas insuficiente, segundo o autor de "O Príncipe", se não vier acompanhada da "virtù". Noção difícil de definir, mistura de audácia e de oportunismo, de cálculo e de instinto, não faltaram ao presidente condições de demonstrá-la.

O que talvez mais surpreenda em Lula é que sua "virtù", no Planalto, em nada se confunde com as características que alardeava enquanto líder partidário. O que aparentasse possuir de coerente, de inflexível, de "diferente", deu lugar a uma adaptabilidade cautelosa, feita menos de indignação mudancista que de conformidade com o mundo real.

Essa conformidade, de resto, foi o que lhe permitiu resistir às pressões no sentido de alterar os rumos adotados na política econômica sob FHC. Lula teve o mérito de contribuir para um ambiente de segurança econômica que, antes de sua posse em 2002, nenhum observador se dispunha a prognosticar.

A crise do mensalão, a que reagiu com mediocridade, teve o efeito paradoxal de desvinculá-lo definitivamente da tutela partidária; fortaleceu-se com o tempo a imagem de um presidente pairando acima das instituições, de forte identificação popular, no velho estilo varguista.Sem dúvida, a hábil conivência com o atraso político constitui um aspecto decisivo na sustentação de Lula, tanto no Congresso quanto nas camadas que mais se beneficiaram de sua investidura como um novo "pai dos pobres". Destituído de qualquer audácia no sentido de promover reformas institucionais profundas, o presidente fez, nesse campo, da inação sua "virtù".

O populismo, a tentação autoritária e continuísta, a cisão da sociedade em duas metades inconciliáveis, têm sido uma constante na América Latina; casos como os da Venezuela e da Bolívia, nos dias de hoje, reiteram essa maldição histórica.

Alcançando, pela primeira vez, setores populacionais de maior renda e escolaridade, a aprovação de Lula parece entretanto afastar-se do esquema arquiconhecido; fundamentos econômicos mais sólidos, além de uma maturidade institucional mais nítida, tendem a colocar o país diante de expectativas menos sombrias. Desde que o permitam, por certo, a "fortuna" e a "virtù" -não as de um presidente, mas sim as de todos nós.

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