Recém-desembarcado de um voo decerto turbulento para ele, depois de uma viagem
à África e à Índia, o ex-presidente Lula teria dito a pessoas de sua confiança
que se sentia "apunhalado pelas costas" por outra pessoa de sua
confiança, a então chefe do escritório da Presidência da República em São
Paulo, Rosemary Nóvoa de Noronha, a Rose. Secretária do companheiro José Dirceu
durante 12 anos, da década de 1990 até a ascensão do PT ao Planalto, Lula a
empregou na representação do governo federal na capital paulista. Dois anos
depois, em 2005, entregou-lhe a chefia da repartição. Na sexta-feira passada,
ela e José Weber Holanda, o sub do advogado-geral da União, Luís Inácio Adams,
foram indiciados pela Polícia Federal (PF), no curso da Operação Porto Seguro,
pela participação em um esquema de venda de facilidades instalado em sete órgãos
federais.
O indiciamento alcançou 11 outros ocupantes de cargos públicos, além do
notório ex-senador Gilberto Miranda. Cinco pessoas foram presas, entre as quais
três irmãos, o empresário Marcelo Rodrigues Vieira, um diretor da agência
reguladora da aviação civil (Anac), Rubens Carlos Vieira, e outro da agência de
águas (ANA), Paulo Rodrigues Vieira - ambos patrocinados pela amiga de Lula. A
PF devassou o apartamento de Rose e o gabinete de Holanda. No dia seguinte, a
presidente Dilma Rousseff afastou de suas funções os diretores das agências
(tendo mandato aprovado pelo Senado, eles não podem ser demitidos sumariamente)
e mandou abrir processo disciplinar contra eles. O caso da nomeação de Paulo
Rodrigues, tido como chefe da gangue e também chegado a Lula e a Dirceu, é um
capítulo de livro de texto sobre a esbórnia no Estado sob o governo petista e a
serventia de seus aliados nos altos círculos do poder nacional.
Submetida ao Senado, como requerido, a indicação começou mal e seguiu pior.
A primeira votação terminou empatada. Na segunda, o nome foi rejeitado por um
voto de diferença. Se os mandachuvas da República se pautassem pela decência, a
história terminaria por aí. Não terminou porque, contrariando até mesmo um
parecer da Comissão de Constituição e Justiça da Casa, o seu presidente José
Sarney ordenou uma terceira votação da qual o afilhado de Rose saiu vencedor
por confortável maioria. A essa altura, 2010, estava para mudar a sorte da
madrinha - cuja influência derivava diretamente de sua intimidade com Lula, a
quem, aliás, acompanhava nas viagens ao exterior, não se sabe bem para fazer o
que. Eleita Dilma, que só a manteria no posto em São Paulo para não criar caso
com o padrinho, Rose tentou em vão conseguir uma boquinha em Brasília. O
imponderável fez o resto.
Em um dia de março do ano passado, um servidor do Tribunal de Contas da
União (TCU) procurou a Polícia Federal para se confessar. Contou que aceitara
uma propina de R$ 300 mil, dos quais já havia recebido um adiantamento de R$ 100
mil, para produzir um parecer técnico sob medida para uma empresa que atua no
Porto de Santos. Além disso, Paulo Rodrigues Vieira falsificou um documento
acadêmico para beneficiar o funcionário. Mas este se arrependeu, devolveu o
dinheiro e revelou aos federais o que sabia. A PF abriu inquérito, obteve
autorização judicial para grampear telefonemas e interceptar e-mails. Do
material, emergiu uma Rose que lembra a personagem do samba de Chico Buarque
que pedia apenas "uma coisa à toa" - no caso, um cruzeiro de Santos a
Ilha Grande animado por uma dupla sertaneja, um serviço de marcenaria, uma
pequena operação... Claro que ela também empregou uma filha na Anac e o marido
na Infraero. Tinha fama de mandona e jeito de alpinista social.
Mas o dono do escândalo é quem deu a Rose o aparentemente inexplicável poder
de que desfrutava, a ponto de o Senado de Sarney inovar em matéria de
homologação de um futuro diretor de agência reguladora. Ao se declarar
"apunhalado pelas costas", Lula faz como fez quando o mensalão veio à
tona, e ele, fingindo ignorar a lambança, se disse "traído". Resta
saber se, desta vez, tornará a repetir mais adiante que tudo não passou de uma
"farsa" - quem sabe, uma conspiração da Polícia Federal com a mídia
conservadora, a que a sua sucessora no Planalto afinal sucumbiu.
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