- O Estado de S. Paulo - 08/02/2015
O haraquiri é uma nobre tradição japonesa em que militares, políticos, empresários e, por vezes, escritores (como Yukio Mishima), envergonhados por fracassos ou ações que, ao seu ver, os desonravam, se destripavam numa cerimônia sangrenta. Hoje, quando a ideia de honra se desvalorizou ao mínimo, os cavalheiros nipônicos já não se suicidam.
Mas o ritual da imolação se mantém no mundo e agora é coletivo: praticam-no os países que, presas de um desvario passageiro ou prolongado, decidem empobrecer-se, barbarizar-se, corromper-se, ou todas essas coisas juntas.
A América Latina é pródiga em exemplos trágicos. O mais notável é o da Argentina, que há três quartos de século era um país do Primeiro Mundo, próspero, culto, aberto, com um sistema educacional modelar e, de repente, presa da febre peronista, decidiu retroceder e arruinar-se.
O país se submeteu a uma prolongada agonia que, amparada por sucessivos golpes militares e uma heroica perseverança no erro de seus eleitores, persiste até hoje. Esperemos que algum dia os deuses ou o acaso devolvam a sensatez e a lucidez à terra de Sarmiento e de Borges.
Outro caso emblemático de haraquiri político é o da Venezuela. Ela tinha uma democracia imperfeita, é verdade, mas real, com imprensa livre, eleições genuínas, partidos políticos diversos, e mal e mal, o país progredia. Infelizmente, grassavam a corrupção e o desperdício, e isso levou uma maioria de venezuelanos a descrer da democracia e confiar sua sorte a um caudilho messiânico: o comandante Hugo Chávez.
Em oito oportunidades eles puderam corrigir seu erro e não o fizeram, votando todas as vezes por um regime que os levava ao precipício. Hoje eles pagam caro sua cegueira. A ditadura é uma realidade asfixiante, fechou estações de televisão, de rádio e jornais, encheu os cárceres de dissidentes, multiplicou a corrupção a extremos vertiginosos - um dos principais dirigentes militares do regime dirige o narcotráfico, a única indústria que floresce num país onde a economia desandou e a pobreza triplicou - e onde as instituições, desde os juízes até o Conselho Nacional Eleitoral, são subservientes ao poder.
Embora haja uma significativa maioria de venezuelanos que quer voltar à liberdade, isso não será fácil: o governo de Nicolás Maduro demonstrou que, embora inepto para tudo o mais, na hora de fraudar eleições e encarcerar, torturar e assassinar opositores; sua mão não treme.
O haraquiri não é uma especialidade terceiro-mundista, porém. Na civilizada Europa ele também é praticada de tempos em tempos: Hitler e Mussolini chegaram ao poder por vias legais e um bom número de países centro-europeus se atiraram aos braços de Stalin sem maiores pudores. O caso mais recente parece ser o da Grécia, que, em eleições livres, acaba de levar ao poder - com 36% dos votos, o Syriza, um partido demagógico e populista de extrema esquerda que se aliou para governar com uma pequeno grupo de direita ultranacionalista e antieuropeu. O Syriza prometeu uma revolução e o paraíso. No estado catastrófico em que se encontra o país que foi berço da democracia e da cultura ocidental talvez seja compreensível essa catarse sombria do eleitorado. Mas, em vez de superar as pragas que os assolam, essas poderiam recrudescer agora se o novo governo se empenhar em cumprir o que prometeu a seus eleitores.
Essas pragas são uma dívida pública vertiginosa de 317 bilhões de euros com a União Europeia e o sistema financeiro internacional, que resgataram a Grécia da quebra. Ela equivale a 175% do Produto Interno Bruto do país. Desde o início da crise, o PIB da Grécia caiu 25% e a taxa de desemprego chegou perto de 26%. Isso significa o colapso dos serviços públicos, uma queda atroz dos níveis de vida e um crescimento canceroso da pobreza. A se ouvir os dirigentes do Syriza e seu inspirado líder - o novo primeiro-ministro Alexis Tsipras -, essa situação não se deve à inépcia e à corrupção desenfreada dos governos gregos ao longo de várias décadas, que, com irresponsabilidade delirante, chegaram a apresentar balaços e informes econômicos fraudados à UE para dissimular seus desmandos, mas às medidas de austeridade impostas pelos organismos internacionais à Grécia para resgatá-la da impotência a que as más políticas a haviam conduzido.
O Syriza propôs acabar com a austeridade e com as privatizações, renegociar o pagamento da dívida com a condição de que houvesse um cancelamento da maior parte dela, e reativar a economia, o emprego e os serviços com investimentos públicos contínuos. Um milagre equivalente ao de curar um doente terminal fazendo-o correr maratonas.
Desse modo, o povo grego recuperaria uma "soberania" que, ao que parece, a Europa em geral, a troica, o governo da senhora Merkel, em particular, lhe haviam arrebatado.
O melhor que poderia ocorrer é que essas bravatas da campanha eleitoral fossem arquivadas agora que o Syriza tem responsabilidades de governo e, como fez François Hollande na França, ele reconheça que prometeu coisas mentirosas e impossíveis e retifique seu programa com espírito pragmático, o que, sem dúvida, provocará uma decepção terrível entre seus ingênuos eleitores. Se não o fizer, a Grécia poderá enfrentar a bancarrota, a saída do euro e da União Europeia, e afundar no subdesenvolvimento. Há sintomas contraditórios e ainda não está claro se o novo governo grego dará marcha à ré. Ele acaba de propor, em vez do cancelamento, uma fórmula picaresca e velhaca que consiste em converter sua dívida em duas classes de bônus, uns reais, que iriam sendo pagos à medida que sua economia crescesse, e outros fantasmas, que iriam se renovando ao longo da eternidade. França e Itália, também vítimas de graves problemas econômicos, manifestaram não ver com maus olhos semelhante proposta. Ela não prosperará, com certeza, porque nem todo país europeu perdeu o senso de realidade.
Em primeiro lugar, e com muita razão, vários membros da União Europeia, além da Alemanha, recordaram a Grécia de que não aceitam "quitações", nem explícitas nem dissimuladas, e os países devem cumprir seus compromissos. Os mais severos a esse respeito foram Portugal, Espanha e Irlanda, que, depois de grandes sacrifícios, estão saindo da crise depois de cumprir com suas obrigações.
A Grécia deve 26 bilhões à Espanha. A recuperação espanhola custou sangue, suor e lágrimas. Por que os espanhóis teriam de pagar de seus bolsos as más políticas dos governos gregos, além de já estar pagando pelas políticas dos seus? A Alemanha não é culpada de um bom número de países da Europa comunitária estar com sua economia arruinada. A Alemanha teve governos prudentes e competentes, austeros e honrados, e, por isso, enquanto outros países se desestabilizavam, ela crescia e se fortalecia. E convém não esquecer que a Alemanha teve de absorver e ressuscitar um cadáver - a Alemanha comunista - também à custa de formidáveis esforços, sem se queixar, sem pedir ajuda a ninguém, só com o empenho e o estoicismo de seus cidadãos.
Por outro lado, o governo alemão da senhora Merkel é europeísta decidido. A melhor prova disso é a maneira generosa e constante com que apoia, com seus recursos e suas iniciativas, a construção europeia. Só a proliferação dos estereótipos e mitos ideológicos explica esse fenômeno de transferência freudiana que leva a Grécia a culpar o país mais eficiente da União Europeia pelos desastres que provocaram os políticos que, durante tantos anos, o povo grego enviou ao governo com seus votos. /tradução de Celso Paciornik
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Escritor peruano e prêmio Nobel
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