• Impossível negar o caráter de retaliação do ato de aceitação do pedido de impeachment por Eduardo Cunha, mas agora isto é passado
• O importante é garantir a tramitação do processo sob a vigilância das instituições, e que tudo seja resolvido, para resgatar o país da paralisia
A aceitação pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), de um dos pedidos de impeachment contra a presidente Dilma é o desfecho de um enredo que se desenrola desde que o deputado venceu PT e Planalto na eleição para conduzir a Casa. Já atingido pelo que emanava da Operação Lava-Jato, Cunha, como é do seu estilo, não teria pudor em usar todos os recursos do cargo para se defender, contingência que passaria a ser aproveitada pela oposição para tentar defenestrar Dilma antes de 2018. Um jogo de interesses, sem ética.
Munição não faltaria. A começar pela aguda impopularidade de Dilma, construída na campanha para a reeleição, em que a petista cometeu flagrante estelionato com os eleitores, ao acenar com um segundo governo de leite e mel, quando a crise causada por sua própria política econômica já evoluía. Mas baixa popularidade e incompetência não justificam impeachment. São questões a serem resolvidas pelas urnas.
A alternativa encontrada por Eduardo Cunha, bastante manchado por delações premiadas feitas na Operação Lava-Jato e a comprovação de contas na Suíça não declaradas à Receita, foi usar como arma de defesa e chantagem um pedido de impeachment de Dilma encaminhado pelos juristas Hélio Bicudo, fundador dissidente do PT, Miguel Reale Jr., ministro da Justiça de FH, e Janaína Paschoal, professora da USP. Inicialmente apresentado com base em supostos crimes de responsabilidade cometidos no não cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal no primeiro mandato de Dilma, os autores revisaram o texto, aconselhados pelo próprio Cunha, para embasá-lo em alegadas provas da continuidade desses crimes em 2015, de acordo com o entendimento do corpo técnico do Tribunal de Contas. Dessa forma, dribla-se o dispositivo constitucional, de antes do estabelecimento da reeleição, de que presidente só pode ser acusado de crimes cometidos enquanto exerce o mandato. Numa interpretação literal, Dilma não poderia ser denunciada por fatos ocorridos até dezembro de 2014. Ou este ponto teria, antes, de ser resolvido pelo Supremo, num certamente demorado debate, enquanto o país se angustia devido à paralisia generalizada.
Sem considerar o mérito da argumentação do pedido dos juristas, a decisão tomada na tarde de quarta-feira por Eduardo Cunha carrega um sinal reluzente de vingança. Desde que assumiu a presidência da Casa, o deputado se manteve distante do Planalto até se declarar em “oposição” ao governo, em julho, logo depois de o lobista Júlio Camargo denunciá-lo na Lava-Jato por ter recebido propina de uma das negociatas feitas na Petrobras, no bojo do esquema lulopetista do petrolão. Como sempre tem reagido nas revelações sobre sua participação em traficâncias financeiras no submundo da política, Cunha contra-atacou, acusando o Planalto de se mancomunar com o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra ele. Mas não rebateu as acusações com provas.
A instalação do processo de impeachment culmina intensas barganhas de Cunha, PT e governo sobre os três votos petistas no Conselho de Ética em torno da acusação de quebra de decoro contra o presidente da Câmara, por ter mentido perante a última CPI da Petrobras, na sua instalação, ao garantir não possuir contas no exterior. E possuía. O presidente da Câmara contava com os votos do PT, garantidos a ele pelo governo. Mas o partido não aceitou o arreglo e, cinco horas após os deputados garantirem os votos contra o presidente da Casa, Cunha anunciou a concordância com o pedido de processo de impeachment, registrando, de maneira sintomática, que não praticava qualquer “ato de vingança”. Estava evidente que era vingança, mas agora isto é passado. Há evidências de que o ato do presidente da Câmara carrega sérios desvios de legitimidade. Mesmo Bicudo, um dos autores do pedido, disse que Eduardo Cunha “escreve certo por linhas tortas, porque ele usou o impeachment o tempo todo como instrumento de barganha”. No pronunciamento que fez no final da tarde na própria quarta no Planalto, Dilma preferiu atacar a pessoa de Cunha: “Não possuo conta no exterior, nem ocultei do conhecimento público a existência de bens pessoais.”
Mas importa agora é tratar do mérito do pedido do impedimento e zelar pelo cumprimento dos ritos estabelecidos por regimentos, leis e dispositivos constitucionais. Incomoda que o vetor da reclamação contra a presidente seja um parlamentar com folha corrida reprovável, que usa o caso como retaliação ao Planalto. Ministros do Supremo consideravam, também na quarta-feira, que o melhor seria que não estivesse na presidência da Casa alguém como Eduardo Cunha, já denunciado à Corte, devido à Lava-Jato, pela Procuradoria-Geral da República. Alguns deles, porém, registravam que Eduardo Cunha cumpria com prerrogativas do cargo ao dar sinal verde ao processo de impeachment. Reclamações ao STF contra o ato em si do presidente da Câmara não deverão, portanto, prosperar. Além disso, está garantida a não interferência do presidente da Casa, não importa quem ele seja, na tramitação do processo, todo ele conduzido por colegiados.
Importante é que as instituições atuem para garantir a legalidade de toda a tramitação, sem atropelos. Neste sentido, fica prejudicada a clássica denúncia de “golpe” que começou a ser feita por petistas a qualquer crítica mais veemente da oposição. As denúncias aumentavam enquanto a situação da presidente Dilma se fragilizava, à medida que a Lava-Jato entrava principalmente nos meandros do financiamento da campanha à reeleição com recursos desviados da Petrobras para empreiteiras do esquema do petrolão. A Justiça Eleitoral teria sido usada “como lavanderia” de dinheiro da corrupção, assunto a ser julgado pelo TSE.
O país volta a debater um impeachment de presidente 23 anos depois do afastamento de Collor. À época, chegou a haver algum temor com a estabilidade institucional. Nada aconteceu de negativo, e as instituições republicanas, reconstruídas depois da ditadura militar encerrada havia apenas sete anos, resistiram e se fortaleceram. Hoje, o cenário é ainda mais tranquilo. Iniciado o rito do processo, há a esperança de que, independentemente do desfecho, ele consiga romper a preocupante paralisia que tomou conta do país, em função das incertezas. Definir o futuro político do governo Dilma será algo positivo.
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