quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Diante da tumba de Companys | Demétrio Magnoli

- O Globo

Ele foi executado pelo franquismo por resistência às forças fascistas, não por separatismo, mas, ‘para justificar uma ação no presente’, os nacionalistas fundem duas histórias

Naquele domingo, 1º de outubro, “milhares de integrantes da Guarda Civil, uma força paramilitar, foram mobilizados pelo governo central de Madri para impedir os catalães de realizarem um plebiscito ‘ilegal’ de independência”, relatou Jon Lee Anderson na revista “The New Yorker”. Figura icônica da esquerda intelectual nos EUA, biógrafo de Che Guevara, Anderson mentia deliberadamente. Ele morou durante anos nos arredores de Granada — e sabe, portanto, que a Guarda Civil é um corpo policial regular, de caráter civil. Mas a lógica subjacente de sua narrativa solicita tanto a falsa qualificação quanto as aspas que contestam a ilegalidade do plebiscito. O jornalista move-se no campo das esquerdas que, por oportunistas razões táticas ou por obtusa convicção, adotam o discurso do nacionalismo catalão, obrigando-se a fabricar o retrato de uma Espanha opressora, persistentemente franquista.

“Quando alguém mira o passado para justificar uma ação no presente, faz o passado dizer aquilo que quer dizer no presente”, explica o historiador espanhol Santos Juliá. O nacionalismo é, invariavelmente, um abuso da História. Na orgia das bandeiras, os dois lados praticam o mesmo esporte: à “Espanha, nação mais antiga do mundo”, brandida pelo governo de Mariano Rajoy, os separatistas de Barcelona contrapõem a “nação catalã de mil anos”. Contudo, a missa do independentismo é, hoje, muito mais danosa, pois ameaça os direitos realmente existentes na Catalunha.

Rezou-se a missa diante da tumba de Lluís Companys, em Barcelona. O republicano Companys proclamou, em 1934, um “Estado catalão” dentro de uma imaginária “República Federal Espanhola” — mas os nacionalistas catalães o exibem como mártir da causa da secessão. Companys foi executado pelo franquismo triunfante, em 15 de outubro de 1940, por seu papel na resistência às forças fascistas, não por um delito de separatismo — mas, “para justificar uma ação no presente”, os nacionalistas catalães fundem as duas histórias numa só.

“Foi fuzilado em Montjuic, em nome da legalidade e da ordem estabelecida”, disse Carles Puigdemont, o nacionalista conservador que governa a Catalunha em aliança com os partidos da esquerda separatista. Assim, magicamente, o próprio Puigdemont torna-se Companys e a “legalidade” da Espanha franquista iguala-se à legalidade da Espanha atual. Aqui, na moldura de um passado inventado que fala ao presente, ganham sentido as aspas de Anderson. O Tribunal Constitucional espanhol, que declarou ilegal o plebiscito separatista, não passaria de uma engrenagem da opressão estatal de Madri: a face judicial da repressão “paramilitar” à nação catalã.

No dia do plebiscito, o inepto governo espanhol de Rajoy preferiu a reação policial à resposta política, oferecendo pretextos úteis aos atores mais disparatados. Pablo Iglesias, líder do Podemos, partido esquerdista espanhol, juntou seu protestos aos dos nacionalistas catalães. Sua voz indignada soma-se ao coro dos partidos xenófobos da ultradireita europeia. “Na Catalunha, vemos como a União Europeia pratica democracia”, clamou o britânico Nigel Farage, enquanto Heinz-Christian Strache, líder do FPO austríaco, exigia uma “condenação europeia”. O porta-voz da alemã AfD denunciou os “atos de violência contra a democracia”, ecoando um tuíte de Geert Wilders, líder do Partido da Liberdade Holandês.

“Desde quando os governos europeus impedem seus cidadãos de votarem?”, indagou um escandalizado Anderson na “New Yorker”, estabelecendo uma ponte entre os dois extremos do espectro político. Nas duas pontas, o “direito de decidir” fornece um manto comum aos nacionalistas catalães e aos partidos antieuropeus de direita e esquerda. O secessionismo catalão deve, por isso, ser inscrito no quadro mais amplo da contestação populista à União Europeia. O plebiscito é “ilegal” segundo a ilegítima legalidade espanhola, mas representa a “vontade popular” — eis a mensagem compartilhada por Puigdemont, Iglesias, Strache, Farage, Wilders e cia.

O direito à secessão não está abrigado pela Constituição espanhola. Na democracia, as leis podem ser mudadas, por meios constitucionais e parlamentares — e, em tese, pode-se até chegar a um plebiscito pactuado. Mas a multidão de centenas de milhares que tomou as ruas de Barcelona para protestar contra o plebiscito ilegal tinha um recado diferente, que se pretende enterrar sob o mármore da lápide de Companys. Os manifestantes, com exceção de um minúsculo grupo de nostálgicos que celebrava a bandeira da “Espanha eterna”, defendiam um valioso patrimônio de direitos.

Os cidadãos da Catalunha têm três camadas de proteções legais. Como catalães, beneficiamse do autogoverno consagrado no Estatuto de Autonomia. Como espanhóis, dispõem das garantias da Constituição democrática de 1978. Como europeus, estão abrigados pelos tratados da União Europeia. A secessão implica a abolição imediata de todos esses direitos políticos e civis, em troca da promessa de uma república irredenta, definida em termos étnicos e dirigida pela elite nacionalista em aliança com partidos da esquerda milenarista. O que, exatamente, Anderson não entendeu?

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Demétrio Magnoli é sociólogo

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