- Folha de S. Paulo
O menino fincava os cotovelos no piano e a escutava, ao vivo, todos os dias
O Rio de 1953 tinha uma boate exclusiva, criada por um grupo de artistas e boêmios que gostavam de se encontrar para beber, ouvir música e conversar, livres dos chatos de sempre. Era o Clube da Chave, formado por 50 sócios, cada qual com sua chave, daí o nome. Mulheres não precisavam ser sócias —tinham entrada livre, inclusive desacompanhadas, tabu até então. Ficava no Posto 6 de Copacabana e mantinha um pianista para fazer fundo musical. Um desses pianistas, antes da fama, foi Antonio Carlos Jobim.
Era permitido aos sócios levar um ou outro músico para dar uma canja, e alguns convidados foram Sylvio Caldas, Nora Ney e Luiz Bonfá, para se ver o nível. Certa noite, um sócio anunciou que Tia Amelia iria se apresentar. Ouviram-se cochichos: como alguém se atrevia a trazer sua tia para tocar naquele lugar sofisticado? E ainda mais aquela senhora robusta e de cara amarrada, cabelos brancos e severo tailleur escuro.
Mas bastou que Tia Amelia atacasse seu choro "Chora Coração" --uma tempestade de acordes em alta velocidade e com uma energia que o piano da casa nunca vira. Ela era sensacional. Ninguém ali sabia que Tia Amelia era apenas o novo nome artístico da pernambucana Amelia Brandão Nery, que fora famosa no Rio dos anos 30, sumira por 20 anos para criar sua família e estava de volta à cena. Dali, Tia Amelia partiria para grandes discos, excursões e um programa semanal na TV Rio, "Velhas Estampas".
Tia Amelia morreu em 1983, aos 86 anos, e, claro, foi esquecida. Mas isso agora pode mudar. Um pianista capixaba, Hercules Gomes, acaba de gravar um CD com 14 músicas de Tia Amelia —porque ela era, também, inspirada compositora.
Sei disso porque, dos 10 aos 12 anos, entre 1958 e 1960, eu a escutei ao piano do apartamento de minha tia Nair, no Flamengo, onde Tia Amelia morava, ensaiando seus choros, valsas, maxixes e, pode crer, vibrantes ragtimes.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
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