- O Globo
Temos que enfrentar um governo contra a nossa própria existência
Sempre fui um cinéfilo febril. Acho que nunca perdi nenhuma novidade dos três cinemas de Botafogo, onde moravam meus pais, no Rio de Janeiro. Acho que muita coisa do que sei hoje, comecei a aprender com os filmes que vi no Nacional, no Star e no Guanabara. E ainda tive, até o fim de minha adolescência, as férias de verão em Maceió, entre a turma da Avenida da Paz, os fins de semana no cinema São Luiz e as sessões semanais no clube Fênix Alagoana, onde podíamos ver filmes franceses permitidos para maiores acima de minha idade. Depois é que eu ia consultar outras fontes, como livros, mestres e amigos que entendiam das coisas mais do que eu.
O cinema sempre foi, para mim, não apenas uma fonte prazerosa de entretenimento, como também um indispensável instrumento de cultura, capaz de revelar desde a geografia até os costumes, os modos de vida, a ética dos tempos em que vivíamos. A partir das duas primeiras décadas do século XX, o cinema se tornou o pai fundador, o avozinho de uma família de audiovisual que gerou a televisão, o VHS e o DVD, o digital, a internet, o videogame e o streaming, tanta coisa que rola e ainda vai rolar por aí.
Antes de tudo, o cinema é um modo original de contar histórias e de registrar movimentos de formas, cores e sons, esteja tudo isso fora ou dentro de nós mesmos. Quando fazemos um filme, seja ele uma baita produção ou modesta selfie com nosso celular, ele é sempre, ao mesmo tempo, o registro do que existe no mundo e de um mundo que existe dentro de nós. As melhores obras audiovisuais são sempre aquelas capazes de ser essas duas coisas.
A primeira sessão pública de um filme se deu em 28 de dezembro de 1895, num café de Paris, com filmes dos irmãos Lumière, de Lyon. Menos de um ano depois, esses filmes inaugurais seriam exibidos no Rio de Janeiro, numa sala na Rua do Ouvidor, por iniciativa dos irmãos Segreto, ítalo-brasileiros que se tornariam produtores. O cinema foi, portanto, desde o início, um empenho fraterno, uma questão de família.
O cinema nasceu no berço dos anseios progressistas do século XIX, um século de tantas certezas. E foi criado no tumulto alucinante do século XX, um século sem rumo, perdido em tantas batalhas guerreiras e de finanças, que construiu, entre as duas Grandes Guerras, as ilusões do nosso futuro, quase todas fracassadas.
Potencial veículo de um novo individualismo responsável, um individualismo generoso, não marcado pelo egoísmo ou pela invisibilidade do outro, mas pela responsabilidade de cada um por todos, o cinema era a primeira manifestação de uma coisa nova que o homem inventou, para além da arte e do comércio, para o ser humano melhor se conhecer e se expressar.
Quando comecei a fazer filmes, em plena revolução autoral, o cinema era a coisa mais moderna do mundo. O poder de um filme não era medido apenas pelo número de ingressos vendidos, mas também por sua capacidade de fazer girar o mundo, criar novos paradigmas de toda natureza. Desse modo, o cinema americano e sua máquina industrial, teria o que absorver do semiartesanato brasileiro. Ou vice-versa, claro. Talvez seja até por isso que, nessa guerra cultural que nosso governo pratica contra os pensadores e os artistas do país, o cinema venha sendo uma vítima preferencial.
Enquanto cineasta, convivi, às vezes, com governos que, à direita ou à esquerda, tinham planos de nos domar, não levando muito a sério a atividade. À esquerda ou à direita, enfrentamos autoridades que desejavam criar censura prévia de investimentos. Ou, ainda, autoridades que não julgavam necessário ou conveniente haver cinema no Brasil. O governo Bolsonaro é diferente desses dois partidos — este governo é pura e simplesmente contra a existência de um cinema brasileiro e está disposto a tudo, para que isso não aconteça.
Conheci muitos governantes do país que não se interessavam pelo cinema brasileiro. Mas esta é a primeira vez, em meu tempo de vida, que estamos tendo que enfrentar um governo que é contra a nossa própria existência, a existência de um cinema brasileiro capaz de nos representar. Talvez só nos reste torcer para que esses próximos dois anos e meio passem bem depressa. Tomara que passem logo.
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