Folha de S. Paulo
Nova canção do músico foi acolhida em
segmentos diversos como um acontecimento
A última canção
de Chico Buarque tem toque de gênio na autoria e na recepção.
Do artista já se conhece o brilho solar, mas a canção foi acolhida em segmentos
diversos como um acontecimento, portanto, como uma marcação social
diferenciada. É que, no contexto atual da vida brasileira, golpeada por
sobressaltos sanitários, econômicos, políticos e morais, numa escala inédita na
história do país, espera-se geralmente que a boa repercussão pública de algo
reflita a urgência da reconstrução. Chico, voz das mais politizadas, limitou-se
a perguntar, compondo, "que tal um samba?"
Tanto quanto a letra da canção, é a própria
ideia de samba que instiga. A presença ativa do artista na cena brasileira não
deixa esquecer que ele, integrante de uma geração notável de criadores da
música popular, tem sido politicamente marcante no que há de generoso ou
esperançoso para com as agruras coletivas. Afinal, o que balançou o corpo do
povo nos longos e asfixiantes anos da ditadura militar foi o grito cantado.
Reiterada como forma de integração rítmica do homem na sociedade, a música
cerrou fileiras com a democracia.
No Brasil, essa forma não habita popularmente qualquer gênero. O
samba
carioca constitui uma diferença ao mesmo tempo cultural e
política, porque é a imagem nacional de uma síntese ou uma unidade: a
reinterpretação federal da diversidade rítmica em vários territórios negros sob
a designação de samba. É também uma forma em que o ritmo afro convoca
estruturalmente o corpo para a dança.
Musicalmente, a célula rítmica faz a ponte, por absorção simbólica, entre o
espaço sagrado das divindades afros e os lugares globais da festa. Isso é algo
essencial, pois cosmicamente vinculado ao entorno de homens e árvores: "ao
som do samba/ dança até o arvoredo" (Noel Rosa). Isso pode ser sentido por
negros e brancos.
Chico
Buarque é herdeiro espiritual tanto de Noel como de Ismael,
portanto, zelador de original parceria entre morro e asfalto.
Agora, com astuta simplicidade, o artista convida para o melhor na reanimação
do espírito coletivo: a adesão à alegria dessa forma singular de encontro musical,
evidência histórica da genialidade negra que sempre viveu e vive o samba como
um poema social, ou seja, como um modo de pensar, sentindo. Por isso, talvez se
possa ler o convite como que tal "o" em vez de "um" (que,
aliás, é samba-salsa), isto é, que tal auscultar o que bate generosamente no
corpo interno da nação: um amanhã sem ódio, que canta. Assim foi recebido, por
sentimento compartilhado. Sentimento é fruto que só dá no tempo, é offline e
chega aos poucos, pois "o pandeiro bate/ é dentro do peito/ mas ninguém
percebe" (Drummond, em Brejo das Almas, 1934).
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ,
autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar
Nagô"
2 comentários:
Mestre Muniz Sodré sabe tudo (ou quase tudo) das coisas da vida (social, civil e "incivil")! Intuiu, com Chico Buarque, que "tem mais samba no encontro que na espera" e que "se todo mundo sambasse, seria mais fácil viver ". Salve Muniz Sodré e Chico Buarque!!!
E não esquecendo que Chico quando surgiu era tratado como sambista e fez várias músicas exaltando o próprio samba.
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