A antecipação radical de um clima
plebiscitário próprio de segundo turno eleitoral é, por um lado, má notícia
para quem se preocupa com a estabilidade e integridade do regime democrático,
condições sem as quais a democracia, como instituição e como conduta política, não
pode prosperar como valor, nem avançar no enfrentamento das questões
econômicas, sociais e ambientais pendentes no país. A antecipação subjetiva do
clima sugere que as datas decisórias magnas do pleito (sejam duas ou termine
sendo apenas uma) avizinham-se com rapidez incomum, a ponto de se imaginar, a
cada amanhecer, que o próximo será o do dia D, durante o qual virá uma
enigmática hora H. Sim, ainda é julho e o país (não mais apenas suas elites,
como ocorria há poucas semanas) já começa a respirar um quase outubro.
Os pulmões da democracia, entretanto, precisam de oxigênio e tecidos razoavelmente íntegros para cumprir ainda cerca de três meses de uma maratona eleitoral. Pode-se prever (na incerteza de praxe) que a atual sensação de antecipação se despedirá de nós daqui a duas semanas, quando se espera que estejam definidos os atores que irão até o fim do jogo, bem como seus respectivos alinhamentos em cada estado da federação. Embora peguem o carro andando - com o script plebiscitário já acertado antes com o eleitor - esses arranjos finais são importantes e podem produzir alterações na cena, para o bem ou para o mal, seja lá o que cada pessoa ou partido entenda sobre os sentidos dessas duas palavras amigas dos dogmas religiosos ou ideológicos e inimigas do pluralismo da política democrática.
Nada visível no horizonte promete descanso
ou caminho fácil, a partir de agosto. Forças estarão mobilizadas para uma
batalha eleitoral de muita intensidade e pouca civilidade. Receios e tons
cinzentos que adversários da democracia plantam no ambiente político já
permitem supor que o tempo não mais passará rápido e se arrastará em angústia crescente.
À sensação de antecipação seguir-se-á ansiedade por um "tomara que passe
logo", um desejo de desfecho, mesmo que de sentido incerto.
Se a incerteza extrema não resultar de um maior
equilíbrio - que é possível - nos números revelados em pesquisas, tende a
provir de uma escalada de radicalização, que é a reação previsível da extrema-direita
à manutenção ou ampliação de sua atual desvantagem nas intenções de voto. O
caminho da troca da atual manipulação criminosa da vontade das urnas pelo da
tentativa de golpe contra ela já é um script encenado em público há
meses, artesanato desavergonhado que já não pode ser corretamente chamado de
conspiração contra a ordem constituída e sim de estupro, até aqui tolerado,
contra a Constituição.
Por outro lado, nos termos de Gonzaguinha,
em tempo ruim todo mundo também dá bom dia. A sensação de antecipação da hora H
predomina e tensiona, mas também mobiliza. Almoços, jantares, reuniões cada vez
mais decisivas e, logo mais, convenções
partidárias; debates em recintos
fechados, comícios, caminhadas, carreatas
(motoqueiros bem vindos à cena também,
apesar da captura perversa da sua imagem social por quem trafega na mão oposta
à da democracia); registro cotidiano e
plural (graças ao nível da liberdade de imprensa de que desfrutamos) de fatos,
versões e opiniões no noticiário, nas análises e em entrevistas a meios de
comunicação de variados tipos;
corpo-a-corpo nas casas, onde familiaridade e hospitalidade são possíveis
e televisores certos; ações de rua - seja de porte médio, avenida ou beco – e esquinas
onde houver, conforme o caso, shoppings, bares,
bodegas, praias, parques, locais de eventos e de hábitos de encontro
para a arte, a cultura e o entretenimento; e redes digitais, com seus vídeos e
áudios onde cada vez mais se dança por
celulares, no compasso de tik tok.
Tudo isso também é realidade e é
possibilidade da nossa democracia que, sob angústia social e rebaixamento ético
da política, prepara-se para viver, mais uma vez, seu momento mais nobre, a um
só tempo institucional e massivo. É patrimônio acumulado a duras penas, sequestrado
por quem ocupa o governo e corrompe parte da representação política legislativa.
Há perdas temporárias, mas nada que a política democrática, aliada à inteligência
e à força legítima de guardiães atuantes no Poder Judiciário não possa fazer
cessar e reverter, agindo em sintonia com a cidadania, titular do patrimônio.
Para assegurar a continuidade e
consolidação desse legado, outro movimento, concomitante e convergente ao de
campanhas eleitorais legítimas e democráticas, precisa e pode, afirmando seu
caráter cívico, ocupar um lugar diagonal, agregador de candidaturas e partidos
diversos. Gradualmente a sociedade civil mobiliza-se e coloca-se, como em
outros momentos decisivos da história política do Brasil contemporâneo, como
defensora das eleições, a instituição que maximamente expressa a primazia que, por
definição, a maioria eleitoral deve ter, numa democracia. Primazia exercida
inclusive sobre a própria sociedade civil. Esse reconhecimento explica porque
ela, a sociedade civil, embora frontal e antecipadamente abalada pelo
desafortunado resultado das eleições de 2018, respeitou a vontade majoritária do
eleitor não necessariamente organizado e comportou-se, nesses quatro anos
difíceis, nos marcos do pacto constitucional, enquanto o governo federal
trabalhou, subversivamente e sem descanso, para desmoralizá-lo, através da
transgressão contumaz. Assim ela acumulou autoridade moral para dizer um basta,
que já tarda, a essa escalada de arruaças contra nosso patrimônio comum.
Poderia enumerar exemplos de deslocamento
gradual ao espaço público de consciências indignadas e de vontades esperançosas.
Um degelo que permite enlaçar várias formas de participação civil. Vou me ater
a duas iniciativas que me estimularam hoje a “fazer alguma coisa mais”, além de
escrever, o que já não considero pouco. A primeira delas está sendo a coleta de
assinaturas individuais a uma carta aberta ao Conselho Nacional de Justiça pela
“legítima defesa da liberdade”. Oportuna lembrança num momento em que a palavra
liberdade vem sendo pronunciada e escrita em vão, como blasfêmia, por vozes e
mãos que armam fanáticos, arruaceiros e milicianos dispostos a ferir e a matar,
agredindo os direitos humanos mais elementares para defenderem uma suposta
liberdade só sua e de seus credos, turmas e falanges. Do texto, compartilhado
em rodas democráticas cito aqui um trecho que paga o ingresso no link https://chng.it/vQTFnMKN, pelo qual pode-se
assinar e difundir o texto e encorpar o movimento.
“É tarde, mas ainda há tempo. Ao Conselho Nacional de
Justiça compete implementar ações inequívocas de inteligência para o fim de
garantir uma política nacional de segurança do Poder Judiciário que assegure
autonomia, independência e imparcialidade de nossos julgadores, mediante a
antecipação e a neutralização de ameaças, violências e quaisquer outros atos
hostis contra o Poder Judiciário, desde a Praça dos Três Poderes à zona
eleitoral mais remota. Dos Ministros aos eleitores, todos os brasileiros têm
direito às liberdades de dizer, de não ter medo e de ter segurança”.
Disse-me hoje um queridíssimo amigo - desses
dos quais não há facilmente cópias disponíveis por aí - que cartas não adiantam
mais, quer-se ouvir a voz das ruas. Dei-lhe a seguinte opiniãoi: adiantam, sim.
Se não resolvem, ajudam. Por que pensar que bons meios são cartas OU a voz das
ruas? Não pode ser uma coisa E outra? Além do mais, quem já não tem corpo e pernas
para encarar o tranco das ruas, pode e precisa fazer o que estiver a seu
alcance. A escolha não é entre ficar vendo as coisas de longe, em telas e
telinhas, ou botar estrela no peito e correr mundo, correr perigo. Entre a
estrela do PT e a assinatura da sky há terceiras vias. Fustigar o CNJ e
demais instâncias do Sistema de Justiça é só uma delas.
Mas creio também que a esperança do meu
amigo não ficará à deriva, como fio desencapado. Há, por exemplo, um segundo
convite à participação – menos direto, mas igualmente convincente - que recebi
de outro amigo. Convite envelopado em vídeo, cuja mensagem estimula mais que atitudes
participantes de cada qual. É um chamado moral e político a uma ação
fisicamente coletiva que resulta de uma fala inspiradora, que chamei de
poderosa, de Dom Pedro Stringhini. Ecoou na Catedral da Sé de São Paulo, num
significativo ato ecumênico em protesto pela presente violência política, em defesa
da paz, de direitos humanos vilipendiados, da democracia, logo, também das
eleições. Sou inapelavelmente incapaz de reproduzir a força dessa fala de Dom
Pedro, na qual não se encontra metáforas. Reluzem palavras de entendimento
fácil e direto, de uma objetividade cortante, de elegante e serena dureza, que
instiga não a heroísmos de qualquer tipo, mas à ação em concerto. Ele não
precisaria evocar, como evocou, a memória, hoje presente como nunca, de Dom
Paulo Evaristo Arns. Aquela figura cardeal estava ali como símbolo e como palavra
viva, através do pensamento falado de um bispo de carne e osso. A História em
ato, conforme a percepção do remetente do vídeo. Compartilharei com meus
contatos pessoais, juntamente a esta coluna de hoje, mas a todos que me leem e
ouvem sugiro procurar.
Lembrando de 1975, do ato ecumênico de
denúncia do assassinato de Vladimir Herzog, na ocasião do seu funeral, Dom
Pedro evocou o movimento irresistível que teve, então, seu levante na mesma
catedral e só descansou com o fim da ditadura. O orador resgatou, daquele
momento, o espírito liberador da energia humanística, ecumênica e democrática
que volta a ser requisitado hoje, para cumprir outra missão. Sem ser levado
pela tentação fácil de confundir os contextos, Dom Pedro lembrou que, naquele
momento, naquela mesma Sé, a sociedade civil decidiu e proclamou que a ditadura
ia acabar e que a democracia ia chegar. E assinala que hoje volta a se reunir
para dizer que a democracia não vai embora.
Existe relevante diferença entre dizer que
queremos a democracia de volta, como se já não a tivéssemos e dizer o que disse
Dom Pedro. A sua proclamação não cede ao agressor qualquer narrativa de
vitória. Comunica que já não nos mobilizamos ao relento, contra uma ditadura
para construir uma democracia.
Mobilizamos forças da democracia que construímos contra um governo
autoritário que quer destruí-la. Não somos candidatos à civilização. Somos
parte dela e dispomos dos seus meios para deter a barbárie.
*Cientista político e professor da UFBa.
Um comentário:
Tem muita gente apoiando a continuidade dessa autocracia desgovernada.
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