O Estado de S. Paulo
Ninguém ficou incólume. Todos fomos
afetados em todas as esferas da vida familiar, profissional e social.
O presidente Jair Bolsonaro convocou seus
apoiadores para irem às ruas no 7 de Setembro e eles o obedeceram em massa. No
primeiro turno, obteve 51 milhões de votos. Qual é a mágica do bolsonarismo?
Bolsonaro falhou no exercício institucional
da Presidência. Na pandemia, deixou o trabalho árduo para os governadores e
prefeitos. Na relação com o Congresso, foi um desastre. O projeto mais
relevante de autoria de seu governo aprovado pelo Congresso consistiu em
alterar a lei de trânsito. A reforma da Previdência e o marco do saneamento,
para citar dois projetos significativos, estão situados temporalmente neste
mandato, mas não são criação intelectual do governo nem resultado de sua
articulação política.
Esse panorama pode levar à interpretação, simplista e equivocada, de que Bolsonaro não exerceu o poder, tendo sido mero refém do Centrão. Não. Ele exerceu um efetivo poder ao longo de todo o mandato. Caso contrário, não teria recebido 51 milhões de votos. Qual foi, então, o seu poder?
Ele capturou a agenda pública e o
imaginário coletivo. Bolsonaro não age no campo formal do Estado. Veja sua
produção legislativa enquanto deputado federal. Mas isso não significa que ele
não exerça poder. Como disse Barack Obama, “a capacidade de liderar um país não
tem que ver com a legislação ou a regulamentação, e sim com moldar atitudes,
moldar a cultura, conscientizar”. Bolsonaro está continuamente moldando
atitudes, definindo o enquadramento dos temas, criando expectativas e temores.
Isso tudo é muito poderoso, com efeitos sobre toda a sociedade.
Bolsonaro não age no campo formal nem no
racional. Sua atuação é afetiva, emocional, visceral. Nada do que ele diz
remete à racionalidade do interlocutor. Entre outras consequências, onde ele
está nunca há diálogo. Nunca há debate de ideias ou propostas. A meu ver, esse
é o dano mais imediato e perigoso do bolsonarismo à democracia e ao
funcionamento do Estado.
Bolsonaro divide. Não há termo médio. É
adesão ou rejeição. Ele não dá espaço à indiferença. Quando louva a ditadura,
quando homenageia um torturador, quando diz que sonega tudo quanto pode, quando
debocha o doente de covid com falta de ar, quando despreza quem passa a fome,
Bolsonaro não remete à esfera racional. Está continuamente dando, em chave
afetiva, uma machadada na sociedade. Ame-o ou deixe-o.
Talvez esperássemos que todos o deixassem.
Mas a vida é mais complexa e as percepções, mais ambíguas. Quando Bolsonaro
xinga juízes, quando agride mulheres, quando entoa imbrochável, sua rejeição
aumenta. Mas ele também ganha votos.
Num cenário político-partidário
pasteurizado, a machadada de Bolsonaro conferiu-lhe um perfil público único.
Deu-lhe visibilidade. E ele soube aproveitar cada segundo desse espetáculo,
para dizer uma barbaridade, para escandalizar, para ferir a sensibilidade
dominante. Descobriu para si um “oceano azul” na política, sem nenhum
competidor. Desde 1988, Bolsonaro vem tendo sucesso em todas as eleições nas
quais concorreu.
A abordagem visceral serviu a Bolsonaro
para não responder a nenhuma pergunta incômoda. Suspeitas de rachadinha,
cheques na conta da mulher, relações com milicianos, compra de imóveis com
dinheiro vivo, escândalos no MEC – nada disso recebeu uma resposta racional. E
duvido que algum dia receba.
Não foi por acaso que a educação no governo
Bolsonaro foi desprezada. Que a ciência e as universidades foram atacadas. Que
o jornalismo foi ameaçado. O bolsonarismo é a antítese da racionalidade –
aspecto que se conecta com um traço próprio do fenômeno neopentecostal, a
depreciação da razão.
Bolsonaro não tem nada de conservador, de
reflexão, de olhar sereno sobre a realidade social. Ele fala palavras com
verniz conservador – liberdade, família, pátria –, mas nunca se referindo ao
conteúdo racional desses conceitos. É um uso meramente emotivo, simbólico, manipulador.
É “apenas” mais uma machadada sobre o imaginário coletivo.
Pode não se reeleger – corajosamente os
mais pobres e miseráveis têm sido, nestas eleições, o esteio da racionalidade e
da democracia –, mas Bolsonaro já causou danos profundos e duradouros ao País.
Não bastará revogar sigilos contrários à Lei de Acesso à Informação. Não
bastará restaurar a vigência da legislação relativa às armas. Não bastará
devolver ao Ministério da Defesa sua moldura institucional original. Bolsonaro
submeteu o imaginário coletivo a uma sessão de destruição e tortura de quatro
anos. Ninguém ficou incólume. Todos fomos afetados em todas as esferas da vida
familiar, profissional e social – e por isso sua machadada é totalitária.
Gilbert K. Chesterton dizia que, ao tirarem
a mitra do bispo, arrancaram junto sua cabeça, sua razão. Bolsonaro, ao atirar
contra nossa razão, feriu também o nosso coração, o nosso núcleo afetivo mais
íntimo. Que os corações voltem a ser livres. É tempo de educar as crianças, de
dar a comer a quem tem fome, de reconstruir a racionalidade. É hora de tirar
quem, em vez de governar, preferiu vandalizar este solo sagrado que todos
levamos dentro.
*Advogado
Um comentário:
Tentando explicar Jair Bolsonaro!
Texto BRILHANTE! SENSACIONAL!
Parabéns ao autor e ao blog que o divulga.
Acho que nos ajuda bastante a entender o que o GENOCIDA realmente faz e é, além de deixar morrer 400 mil brasileiros que estariam vivos se ele não fosse o miliciano mentiroso e INCOMPETENTE que é e foi! E que consegue convencer os papagaios desmiolados a apoiarem suas imbecilidades e acreditarem nas suas MILHARES DE MENTIRAS! E acreditarem que ele é mesmo cristão, religioso, bom pai e bom marido, político HONESTO (kkkkkkk), enquanto defende a tortura, os torturadores, o armamento DESCONTROLADO da população...
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