quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Carlos Melo* - Lula III: ‘De volta para o Futuro’

Valor Econômico

O desafio é religar o passado às urgências contemporâneas

Presidentes da República que compreenderam as circunstâncias com que foram confrontados conquistaram reconhecimento da história. Com José Sarney, foi a democracia: entregou ao país uma nova Constituição e eleições diretas. Itamar Franco enfrentou a inflação. Mentor do Real, FHC consolidou a estabilidade da moeda. Luiz Inácio Lula da Silva pôde avançar enfrentando a pobreza e a fome. Michel Temer administrou o colapso até a eleição de 2018.

Fernando Collor de Mello, Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro não souberam interpretar seu tempo. O presidencialismo imperial de Collor resultou no impeachment de 1992; a tecnocracia desenvolvimentista, amiga do patrimonialismo, levou Dilma ao seu, em 2016.

Bolsonaro agarrou-se ao mandato, aliando-se ao fisiologismo mais explícito da história. Mas comprometeu o processo político, econômico e institucional do país acumulado desde 1985.

Presidente do negacionismo - científico, democrático e institucional -, alimentou a voracidade fisiológica do Centrão, comprometeu políticas públicas, a saúde fiscal e a imagem internacional do país; usou e abusou de recursos públicos, da máquina administrativa e do poder econômico.

Perdeu a eleição e pôs em risco a paz e a unidade nacionais. Mas, admita-se, o retrocesso foi um filme de vários protagonistas.

Na última década, o diabo esteve solto “na rua, no meio do redemoinho” sem quem o domasse. Tempo agreste sem vereda.

O voluntarismo econômico voltou; a exacerbação do conflito expulsou o diálogo da mesa de jantar; militares se expandiram na arena política; o equilíbrio entre poderes foi desprezado; o meio ambiente esteve à sorte de exterminadores.

A fome retornou, a peste se chegou. O abismo sorriu e só não nos engoliu porque a eleição e a Justiça Eleitoral o contiveram.

Como recuperar frutos se árvores arrancadas não retomam o mesmo viço? O retrocesso foi superlativo, mas o pressuposto é recuperar raízes: o conceito de democracia e sua pedagogia, reconstruir a higidez institucional e a racionalidade econômica, restabelecer um padrão fiscal confiável.

E, ainda assim, o país não voltará à euforia de fins da década de 2000: o Cristo Redentor permanecerá estático por bom tempo. Simplesmente buscar o ponto de ruptura pode ser inútil. Sob ruínas em vários aspectos, o mundo mudou e requer, agora, nova arquitetura.

Na roda dos recomeços, o país necessita tanto de um novo pacto político quanto de modernização.

Algo como a temperança de Tancredo Neves somada ao arrojo de Juscelino Kubitscheck: distensão com os olhos no século XXI. O resgate é do passado, mas a fuga precisa ser para frente.

Este é o desafio histórico do Lula 3: encontrar o fio da meada e religar o passado às urgências contemporâneas, recuperar o espírito nacional, compreender dificuldades, aproveitar oportunidades. Redivivo para a política, o novo-velho presidente tem consciência do drama e atenderá aos apelos das circunstâncias que requerem reconexão, renovação e melhoria?

Ressentimento e oportunismo, autossuficiência e arrogância são maus conselheiros. Voltar à Hora H do impeachment de Dilma é ilusão e já ali desvios e devaneios abalavam a estrada. Erros repetidos somados não perfazem acertos. É preciso refazer com ajustes.

Os condicionantes da história são radicalmente novos: o planeta está abalado pela revolução tecnológica, envelhecido nas relações do trabalho, ultrapassado em modelos de educação, questionado nos sistemas de representação política e mais exposto à pandemias e guerras. Melhor abraçar os novos problemas do que fugir deles: a superação está no futuro.

Ao redor de Lula, no entanto, não há a constelação de quadros de 2002.

A formulação política e programática envelheceu e importantes colaboradores se foram com o tempo, a morte e o escândalo.

Inútil e improdutivo recrutar quadros em forças ultrapassadas, profetas do ontem fissurados nos erros de sempre. Obrigado a engolir indicações, ainda assim o presidente da República deve favorecer o futuro.

Hoje, os atores políticos conectados com o mundo moderno são poucos. Será necessário identificá-los e promovê-los.

Seria proveitoso que Lula se distanciasse de bajuladores que o façam outra espécie de “mito”. Ao pé de si, o presidente necessita que o digam: “és mortal”.

A realidade brasileira pede um núcleo duro capaz de compreender que o mundo moderno gira em torno da reconstrução do processo democrático, institucional e econômico, com inovação.

O paradoxo é apenas aparente: voltar atrás para seguir em frente; roteiro de um “De Volta Para o Futuro” político e real. A magia requer capacidade de articulação com o velho que desmorona, mas ainda respira.

Será fundamental “fazer política”, mas com vistas à transformação. Política sem objetivo programático é só politicagem. Um novo núcleo duro surgirá - e parte já surgiu na transição. Seu desafio é de visão e timing.

A sociedade de Lula, seus companheiros e inimigos já não existe; restam nostalgia e melancolia. O refazimento requer a ousadia do contemporâneo. Desesperadamente, o país precisa que Lula se mantenha entre os presidentes que compreenderam a história.

*Carlos Melo é cientista político e professor senior fellow do Insper.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom o artigo.