quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Cristiano Romero - Mitos e inverdades sobre o Estado no Brasil

Valor Econômico

Constituição de 1988 acabou com “muito Brasília e pouco Brasil”

A visão de que Brasília, como sede do poder e, portanto, da burocracia estatal, impede o progresso do país é similar e tão perigosa quanto a de que o Congresso Nacional é povoado por políticos corruptos. Não é coincidência o fato de que, quando essas percepções escalam na opinião pública, a democracia seja colocada em xeque. Casos de corrupção envolvendo protagonistas políticos são a justificativa usada por grupos da sociedade que ainda veem a democracia como um aborrecimento.

No livro “A construção de um Estado para o século XXI” (Cobogó, 2022), Francisco Gaetani e Miguel Lago explicitam velhos e conhecidos problemas do serviço público, mas são iconoclastas ao derrubarem mitos que predominam na maneira como parte da sociedade vê o Estado brasileiro. Didática, a obra é desprovida de “economês” (dialeto criado por economistas que consideram o conhecimento da Economia um recurso de poder extraordinário que os coloca numa categoria acima das dos demais cidadãos) e trata os temas de maneira profunda.

A tese de que o serviço público é de baixa qualidade, por exemplo, é corrente entre não usuários dos serviços, mas não é corroborada por aqueles que mais recorrem ao Estado. Pesquisa feita pelo Datafolha em 2019, antes, portanto do início da pandemia, mostrou que, dentre as pessoas que avaliaram negativamente o Serviço Único de Saúde (SUS), 68% se declararam como “não usuários” do sistema público. No caso dos usuários frequentes do SUS, a avaliação positiva foi superior à negativa (30% contra 26%).

“O fato, porém, é que essa ideia de que ‘o governo não serve para nada’ é mais forte nas classes médias do que nas classes populares. Contudo, é preciso registrar que, no Brasil, as primeiras evitam o serviço público sempre que podem, enquanto as segundas não têm outra opção”, observam Gaetani e Lago.

Outro tema, este ainda mais controverso, é o da estabilidade do funcionalismo no emprego. Os funcionários têm estabilidade, mas será que todos os 11,5 milhões (considerando os três poderes na União, nos Estados e municípios) são estáveis?

“Apenas os servidores estatutários têm estabilidade na carreira. Eles representam a grande maioria do funcionalismo, mas não a sua totalidade. Em 2019, cerca de 10 milhões eram estatutários, cerca de 850 mil eram temporários e cerca de 550 mil, celetistas (sob a égide da Consolidação das Leis do Trabalho). Quando pensamos em 11,5 milhões parece muito, mas em termos comparativos, o Brasil tem poucos funcionários.”

Gaetani e Lago lançam mão do conceito de funções “regalianas” (palavra que deriva do latim “regalis”, cujo significado é “real”) para tratar das atividades típicas de Estado, daquilo que está estreitamente ligado ao exercício da soberania do chefe de Estado. “Designa os poderes exclusivos que apenas o soberano pode exercer e sem os quais não há como haver soberania. São funções regalianas as que garantem a segurança externa - Forças Armadas e diplomacia -, a segurança interna - forças policiais e Justiça - e a soberania monetária - a emissão de moeda [a cargo do Banco Central]”, explicam os dois autores, que, para viabilizar esta obra de suma importância ao debate nacional, tiveram o apoio fundamental da ONG Republica.org, criada e dirigida por Guilherme Coelho.

“[O setor público] deve organizar uma série de serviços que, dada a escala e o volume, seriam mais bem conduzidos pelo Estado, do ponto de vista econômico, do que por agentes do mercado. Esse é o caso de estruturas universais que atendem à integralidade da população. É o caso de algumas infraestruturas de abastecimento, algumas modalidades de transporte e algumas atividades comuns a todos os cidadãos, como educação e saúde. Sistemas de saúde públicos tendem a ser mais econômicos do que sistemas de saúde privados, pois o próprio pagador controla os custos da atividade, tornando a ação de saúde menos fragmentada e com menos custos de transação.”

Para se ter um ambiente de negócios dinâmico, uma economia de mercado funcional, é importante que o setor público se ocupe de estruturas universais que são mais eficientes, do ponto de vista gerencial, sob sua responsabilidade do que sob a batuta do setor privado, explicam Gaetani e Lago. O mesmo diz respeito à concorrência, aspecto fundamental para a legitimação da economia de mercado como melhor sistema de geração de riquezas numa democracia. “A proteção da concorrência é uma das mais importantes instituições para o bom funcionamento do mercado. Um mercado sem concorrência é um monopólio ou um cartel, que causa prejuízos à sociedade e à economia.”

O governo faz muita coisa, porém, pelas razões mencionadas, é possível ver que o setor público produza uma série de ações diversas, complexas, com grande multiplicidade de objetos e setores. “A pessoa que reclama por pagar impostos e não receber nada em troca não entende que toda a regulação de trânsito quando ele se move é feita pelo setor público, que todas as empadinhas comidas no boteco da esquina passaram (ou deveriam ter passado) por um controle da Vigilância Sanitária, que fiscaliza a higiene dos estabelecimentos comerciais privados, entre tantas outras coisas. A questão, portanto, não é se perguntar se o Estado faz coisas pelo cidadão, mas, sim, perguntar-se quais são aquelas que o Estado deve priorizar e se o Estado as faz bem”, dizem os autores.

Outro ponto crucial nessa discussão é sobre a ideia de que existe pouco Brasil e muito Brasília. Trata-se de afirmação historicamente verdadeira, mas que, desde a Constituição de 1988, está longe de ser uma realidade. “Ao contrário, o que se viu desde então foi uma expansão das competências, dos orçamentos próprios. Os municípios deixaram de ser unidades administrativas para se tornar entes federativos. Em 1950, o Brasil dispunha de 1.889 municípios. No período anterior ao golpe de 1964, esse número cresceu para 2.766. No período final do regime militar, em 1980, chegava-se a 3.991 municípios. Logo após a Constituição, esse número chegou a 4.491 e só estagnou a partir de meados dos anos 1990, com já pouco mais de 5 mil, graças às novas regras estabelecidas no Fundo de Participações dos Municípios (instrumento do governo federal que gere os repasses federais).”

 

2 comentários:

Almir Albuquerque disse...

Acredito que haja um detalhe que precisa ser levado em conta: muitos críticos liberais atacam o estado de forma injusta e até leviana, na ilusão de que o mercado representa o âmbito mais eficiente para o desenvolvimento.
Tirando esse detalhe, e reforçando a importância do funcionalismo público dos escalões inferiores que representam 99 por cento do setor, o fato é que a crítica a uma nababesca cidade encravada nos rincões do planalto, longe das grandes cidades, ou seja, da pressão popular, é uma postura importante.
Brasília vive no mundo da fantasia, onde os altos escalões do poder podem usufruir de uma segurança e uma paz, aliado a um padrão de vida elevado, que não reflete a vida dos seus representados.
Apenas fazer essa distinção necessária.
Grande abraço,
Almir Albuquerque
Panorâmica Social

ADEMAR AMANCIO disse...

O sistema de saúde e educação funcionam muito bem no interior,na minha cidade só não se formam quem não quer,e o SUS funciona muito bem.