quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

PEC da Transição é resposta errada a desafio fiscal e social

O Globo

Solução pode ter deixado o novo governo e parlamentares satisfeitos, mas está longe do que o Brasil precisa

aprovação ontem na Câmara da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Transição logrou a proeza de satisfazer ao novo governo, aos parlamentares e até ao mercado financeiro. Infelizmente, ela é uma resposta muito longe de satisfatória aos desafios impostos pela crise fiscal e pelas demandas sociais. Trata-se de uma PEC desnecessária, perdulária e conceitualmente equivocada.

A alegria da equipe que subirá a rampa do Palácio do Planalto vem da licença para gastar em 2023 mais R$ 168 bilhões além do previsto na proposta orçamentária original. A felicidade dos parlamentares, da adição de R$ 9,7 bilhões às emendas individuais, quase dobrando a cota que cada um tem direito de enviar a seus projetos de estimação. O respiro do mercado, do alívio porque a gastança poderia ser pior, mas a Câmara reduziu a apenas um ano o estouro autorizado no teto de gastos.

Nada disso significa, contudo, que o resultado será bom para o Brasil. A aprovação de uma PEC é desnecessária para manter no Orçamento de 2023 os pagamentos do novo Bolsa Família em R$ 600, pretexto alegado para justificá-la. Decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou o gasto com base em regras já presentes na Constituição, na folga orçamentária aberta pelo adiamento do pagamento de dívidas judiciais (precatórios) e em créditos extraordinários que poderiam ser emitidos por meio de Medida Provisória.

Além de desnecessária, a PEC é perdulária por abrir um espaço no Orçamento além do razoável para as despesas essenciais. Mesmo no formato ampliado para pagar R$ 150 por criança menor de 6 anos, o novo Bolsa Família exigiria R$ 70 bilhões além do já orçado. Com mais R$ 10 bilhões, seria possível recompor programas esvaziados, como Farmácia Popular ou merenda escolar. O total exigido pelas urgências não chega perto dos R$ 145 bilhões autorizados em estouro do teto, mais R$ 24 bilhões em investimentos.

Por fim, a PEC resulta de uma sucessão de erros conceituais. Primeiro: é a terceira iniciativa recente do Congresso que viola um arcabouço fiscal que deveria ser preservado (as anteriores foram as PECs dos Precatórios e Eleitoral). Não é outro o motivo de ansiedade dos investidores com a dívida pública.

Segundo: a PEC retira despesas permanentes do teto de gastos, quando as discussões em torno da revisão do mecanismo sugerem retirar investimentos, cujo retorno em tese justificaria outra contabilidade. O teto existe para disciplinar gastos recorrentes. É o caso do velho Bolsa Família, do novo e de várias outras despesas de cunho social, como benefícios previdenciários. O que acontecerá quando chegar 2024 e os mesmos pagamentos tiverem de ser mantidos? O gasto não desaparecerá.

Terceiro: a PEC ignora os problemas de fundo do Auxílio Brasil, programa social que deteriorou a qualidade do gasto público. O Bolsa Família custava R$ 32 bilhões antes da pandemia e era mais eficaz no combate à pobreza que o auxílio atual com R$ 175 bilhões. Por mais que os pobres tenham aumentado, é injustificável desperdiçar dinheiro quando o país detém conhecimento e experiência para fazer melhor.

Que nenhum desses temas tenha despertado discussão séria em Brasília — ao mesmo tempo que os parlamentares correram para repor perdas decorrentes do fim do orçamento secreto — é mais uma evidência das motivações que animam nossa classe política.

Libertação de Sérgio Cabral ilustra como Justiça favorece impunidade

O Globo

Corrupto confesso condenado a 425 anos, ex-governador não recebeu sentença definitiva em processo algum

Último condenado da Operação Lava-Jato que ainda estava preso, o ex-governador do Rio Sérgio Cabral saiu da cadeia depois de seis anos e 22 dias. Sua libertação tornou-se mais um pretexto para críticas aos exageros da força-tarefa de Curitiba. Mas, por mais que a Lava-Jato tenha cometido excessos e que Cabral já devesse ter sido solto, seu caso na verdade serve para ilustrar outro problema: a dificuldade da Justiça brasileira para condenar um corrupto confesso.

No voto decisivo em que o Supremo Tribunal Federal (STF) transferiu Cabral para o regime de prisão domiciliar num apart-hotel de Copacabana com vista para o mar, o ministro Gilmar Mendes fez a constatação sensata de que uma prisão provisória tão longa “representava a antecipação da pena”. Também lembrou que Cabral não está inocentado em nenhum dos vários processos em que é acusado, pois eles ainda não foram a julgamento final. O caso é, portanto, um exemplo acabado de como a legislação penal brasileira funciona como incentivo à impunidade.

Cabral foi alvo da força-tarefa da Lava-Jato no Rio e está denunciado em 35 processos. A Operação Eficiência tratou de seu patrimônio oculto, e a Calicute, lançada a partir de Curitiba para investigar corrupção na construção da usina nuclear de Angra-3, descobriu uma rede montada por Cabral para subornar empreiteiros e empresários.

Ele fez inúmeras confissões a respeito das propinas variadas que recebia, que apelidou de “taxa de oxigênio”. “A tradição era 10%, 20%, 30%. E aqui não quero me eximir, querendo ser bonzinho não, por cobrar 5%. Mas essa era a tradição do segmento”, afirmou Cabral sobre o dinheiro que obtinha em áreas como Educação, Saúde e Transporte. Houve corrupção na reconstrução do Maracanã e até na terraplenagem do terreno do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), em Itaguaí. Condenado em diversos processos a penas que somam 425 anos, ele chegou a fazer autocrítica: “Foi meu erro de postura, de apego ao dinheiro. Isso é um vício”.

Cabral só era mantido preso preventivamente em razão da decisão do STF do final de 2019 definindo que as sentenças começariam a ser cumpridas não mais mediante a confirmação da pena na segunda instância, mas só depois da sentença definitiva, esgotados todos os infindáveis caminhos que a Justiça brasileira oferece a réus que podem pagar bons advogados.

Entre aqueles que contam com assessoria jurídica competente, capaz de anular provas com base em filigranas processuais ou de estender os recursos até a prescrição dos crimes, voltou a predominar o sentimento de impunidade. Tão logo a Justiça referendou a suspeição do juiz Sergio Moro na Lava-Jato, os condenados e denunciados pela força-tarefa trataram de limpar seus prontuários judiciais. Não espanta que Sérgio Cabral, com todas as suas confissões e provas validadas pela Justiça, também se aproveite das brechas oferecidas aos corruptos pela lei brasileira.

MEC cearense

Folha de S. Paulo

Lula valoriza índices do estado e considera pressão petista em cargos na pasta

Ao indicar Camilo Santana (PT) para encabeçar o Ministério da Educação e Izolda Cela (sem partido) para a Secretaria de Educação Básica, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), emite sinais favoráveis e outros nem tanto sobre a formação do governo.

Decerto que, em comparação com a desastrosa condução da pasta sob Jair Bolsonaro (PL), seria difícil não haver avanços. Mais que isso, a dupla Santana-Cela reúne condições para uma gestão ditosa.

O primeiro, que até o início deste ano era governador do Ceará, cargo ao qual renunciou para lançar-se numa vitoriosa campanha ao Senado, conseguiu manter o estado na vanguarda dos avanços nacionais em ensino, posição que já ocupa há vários anos.

Também mostrou-se um político habilidoso e conseguiu eleger seu sucessor em primeiro turno. Capacidade de diálogo e articulação é característica sempre bem-vinda em um ministro.

Mais difícil para Lula pode ser explicar a decisão de não indicar Cela para comandar o MEC. Atual governadora do Ceará, cargo que herdou de Santana, ela estava no PDT, mas teve de abandonar o partido. Perdeu a chance de disputar a reeleição porque se desentendeu com o pedetista Ciro Gomes, entre outras razões, por apoiar Lula.

Diferentemente de Santana, que é engenheiro agrônomo, Cela é educadora e vista por profissionais da área como uma das grandes responsáveis pelas importantes conquistas do Ceará no setor, desde os tempos em que ocupou postos na cidade de Sobral.

O estado tem se destacado em indicadores de aprendizagem nos últimos anos, graças a políticas como o repasse de ICMS aos municípios vinculado ao desempenho das escolas —ideia que hoje inspira uma lei nacional em implantação.

Por ser do ramo, mulher, estar disponível a partir de 1° de janeiro e contar com apoio de grande parte dos especialistas, Cela era vista como a favorita ao posto. Entretanto o PT quis o cargo.

Pelo que se noticia, também pesou contra a governadora o seu bom trânsito com grupos de origem na iniciativa privada que desenvolvem projetos educacionais, como a Fundação Lemann. O que deveria ser vantagem torna-se opróbrio nas hostes petistas.

Ao preterir a nomeação de Cela para satisfazer apetites partidários, sobretudo de sua legenda, Lula indica que seu governo talvez não seja uma frente tão ampla quanto apregoava durante a campanha.

De toda maneira, se Cela mostra-se disposta a trabalhar com Santana, que não é uma má escolha, só o que se pode fazer é desejar-lhes sucesso. A educação brasileira precisa, após o desmonte na gestão Bolsonaro e a tragédia da pandemia.

Além do reajuste

Folha de S. Paulo

Aumento salarial na cúpula dos Poderes evoca distorção da administração pública

Por si só, o reajuste dos vencimentos das mais altas autoridades da República, recém-aprovado pela Câmara dos Deputados, não implicará despesas federais exorbitantes nem resultará em ganhos pessoais nababescos.

Conforme as estimativas oficiais, a medida, que eleva o teto salarial do serviço público, terá custo de R$ 2,5 bilhões, já considerando suas repercussões no restante do funcionalismo. Trata-se de montante não muito significativo em um Orçamento que se aproximará da casa dos R$ 2 trilhões.

O projeto, que agora será examinado pelo Senado, eleva a R$ 46,4 mil mensais os salários do presidente e de seu primeiro escalão, dos ministros do Supremo Tribunal Federal e dos parlamentares do Congresso Nacional. Os índices de alta, que variam em cada caso, estão abaixo da inflação acumulada desde o aumento anterior.

Há mais em torno do tema, porém, a impedir que o reajuste seja encarado como providência corriqueira —e nem é preciso mencionar a votação apressada nos instantes finais do ano legislativo.

O teto salarial dos servidores, hoje de R$ 39,3 mil mensais, está entre as muitas normas da administração pública que demandam reformas adiadas há décadas. Não se fala, aqui, de medidas complexas: basta fazer com que o limite moralizador seja cumprido.

São notórios os expedientes empregados nos três Poderes, como abonos, auxílios e acúmulo de vencimentos, para viabilizar o pagamento de cifras bem superiores. Tentativas de disciplinar os procedimentos acabam rotineiramente esquecidas no Congresso Nacional.

Propostas mais ambiciosas, como a revisão do alcance da estabilidade no emprego, foram deixadas de lado sob Jair Bolsonaro (PL), por corporativismo. Com Luiz Inácio Lula da Silva (PT), os empecilhos serão ainda maiores.

A nova benesse é também sintomática do ímpeto gastador de Brasília —a cúpula política e institucional teria dificuldade muito maior em elevar seus próprios ganhos se o momento fosse de ajuste em outras despesas orçamentárias.

A rodada de expansão de dispêndios começou com um objetivo correto, a assistência aos mais pobres, e vai se espraiando pela máquina pública, de áreas fundamentais como saúde e educação às famigeradas emendas de relator. Está preparado também o terreno para reajustes generalizados ao funcionalismo, bem mais custosos.

A quem serviu o orçamento secreto

O Estado de S. Paulo.

Emendas de relator facilitaram a vida de Bolsonaro, mas o que elas realmente garantiram foi o poder desmedido da Mesa Diretora da Câmara, ante o Executivo e o próprio plenário

Em março de 2019, o então presidente da Câmara Rodrigo Maia (PSDB-RJ) diagnosticou a existência de um problema que acabaria por se tornar crônico ao longo do mandato de Jair Bolsonaro. Ao falar sobre as dificuldades do governo para aprovar a reforma da Previdência, Maia discorreu sobre a dinâmica entre o Executivo e o Legislativo e as atribuições que cabiam a cada um dos Poderes. “O presidente da Câmara, que sou eu, vai continuar dentro da Câmara, dialogando com os deputados, mas eu não tenho responsabilidade e nem o governo pode me delegar responsabilidade de construir uma base para o governo”, afirmou.

Nunca compreendida pelo governo, a mensagem sintetiza o que foram as relações entre os Poderes nos últimos anos. Muitas vezes, Maia foi acusado de boicotar os projetos defendidos pelo presidente. É verdade que o deputado nunca levou a plenário propostas caras ao bolsonarismo, como as ligadas a costumes, mas também é fato que foi sob sua presidência que os parlamentares deram aval a marcos como a reforma da Previdência, a Lei do Saneamento e a Lei do Gás.

O bolsonarismo, porém, não aceita a independência dos Poderes, e foi assim que decidiu apostar suas fichas na eleição de um aliado para o comando da Câmara. Em 2020, a Secretaria de Governo deu início ao orçamento secreto, privilegiando parlamentares dispostos a votar em Arthur Lira (PP-AL) com as emendas de relator. Inapto e sem disposição para a articulação política, o presidente cedeu o controle de uma parcela da peça orçamentária para se manter no cargo e terceirizou a Lira a função que Maia recusou: formar uma maioria na Casa para aprovar os projetos de interesse do governo.

Sob esse ponto de vista, há quem veja que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao declarar a inconstitucionalidade do orçamento secreto, tenha reduzido os instrumentos que o Executivo tem à mão para negociar o apoio do Legislativo e gestado uma crise para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Se isso fosse verdade, isto é, se a governabilidade construída à base de emendas de relator fosse garantida, os deputados jamais teriam rejeitado, por exemplo, a PEC do voto impresso, a maior e mais amarga derrota imposta a Bolsonaro.

É claro que a intenção inicial não era essa, mas quem mais se beneficiou do esquema foi Lira. Não é coincidência que o orçamento secreto tenha nascido e morrido às vésperas da eleição do comando da Câmara. Com recursos bilionários à sua disposição, distribuídos por critérios que só ele conhecia, Lira não perdeu nenhuma votação na Casa, à exceção da PEC do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). As negociações entre Lula e o presidente da Câmara para aprovar a PEC da Transição provam que a base aliada, afinal, nunca pertenceu a Bolsonaro. Explicam, também, as razões pelas quais o moribundo governo acabou no dia em que ele perdeu a eleição, em 30 de outubro.

Não há dúvida de que as emendas de relator facilitaram a vida de Bolsonaro, mas o que elas realmente garantiram foi a onipotência da Mesa Diretora. A instituição legislativa, pela primeira vez na história, assumiu uma função típica do Executivo e passou a executar uma parte do Orçamento. As emendas, por fim, fortaleceram a posição do presidente da Câmara perante o próprio plenário de deputados, desequilibrando as relações entre os parlamentares a ponto de, até agora, não haver desafiantes para disputar a eleição com ele em fevereiro.

A ausência das emendas de relator cria, portanto, mais do que uma chance para a reconstrução das relações entre Executivo e Legislativo a partir de novas bases. Abre, também, uma oportunidade para restabelecer as condições de igualdade entre cada um dos 513 parlamentares. O orçamento secreto, afinal, sujeitou todos aos desígnios da Mesa Diretora e retirou a autonomia dos deputados para votar conforme a orientação de seu partido ou sua própria consciência. O fim do instrumento pode, por fim, representar o resgate da maior virtude do plenário: a garantia de que cada voto tem exatamente o mesmo valor.

Boiada sem fim

O Estado de S. Paulo.

Ao liberar a extração de madeira em terras indígenas a duas semanas do fim do mandato, governo Bolsonaro confirma: seu descaso com a preservação do meio ambiente não tem limite

Do início ao fim, foram quatro anos passando a boiada. Eis, infelizmente, a melhor síntese da atuação do governo do presidente Jair Bolsonaro em relação ao meio ambiente. A mais nova demonstração de descaso com a preservação das florestas veio a duas semanas do término do atual mandato: uma instrução normativa publicada no Diário Oficial da União autoriza a extração de madeira em terras indígenas, abrindo caminho para a devastação de uma das últimas fronteiras contra o desmatamento no País. Má notícia para quem se preocupa com a conservação do planeta.

A iniciativa, claro, atende a interesses poderosos. Como se sabe, as terras indígenas são áreas demarcadas e, em tese, protegidas. Por isso mesmo, concentram vastas porções de mata nativa, o que acaba despertando a cobiça de muita gente em regiões onde o crime organizado está presente. Como noticiou o Estadão, essas áreas já são alvo da exploração ilegal que se vale de falhas na fiscalização. Cabe perguntar: a quem interessa flexibilizar regras para permitir a extração de madeira em terras indígenas?

A instrução normativa é obra conjunta da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Além de autorizar a derrubada de árvores em áreas indígenas, prevê que isso possa ser feito por “organizações de composição mista”, isto é, por associações formadas por indígenas e não indígenas. Mais um disparate que abre brechas para a exploração indevida de florestas em localidades que, na verdade, devem servir de barreira ao desmatamento.

Não surpreende que representantes de organizações ambientais tenham reagido no mesmo dia em que a instrução normativa foi publicada, denunciando que o ato atropela a Constituição e o Estatuto do Índio. Entrevistada pelo Estadão, a advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental, foi categórica ao afirmar que a nova regra “afronta o usufruto exclusivo que os indígenas têm das riquezas dos rios, lagos e solos” nas terras demarcadas.

Fosse em qualquer outro governo, a simples menção à Funai e ao Ibama sugeriria, em princípio, tratar-se de medida voltada à proteção do meio ambiente e dos povos indígenas. Sob Bolsonaro, porém, os sinais se inverteram: não raro, nos últimos anos, autoridades e setores do governo que deveriam zelar por sua missão institucional foram flagrados agindo em sentido contrário. Uma lástima.

Nada disso surpreende, considerando que o próprio ministro do Meio Ambiente deixou claro, a certa altura, que o governo deveria aproveitar que a atenção nacional estava mobilizada pela pandemia de covid-19 para “passar a boiada” – isto é, aprovar a toque de caixa leis e normas tendentes a destruir o arcabouço de proteção ambiental, em nome do “progresso” e do “desenvolvimento”. Não à toa, o Brasil virou pária internacional e foi escanteado nas discussões globais a respeito das mudanças climáticas, tema central em todo o mundo. Esse mesmo ministro deixou o governo em 2021, na condição de investigado em um caso de exportação ilegal de madeira.

Sem dúvida, o próximo governo fará bem se puser fim aos diversos atos danosos ao meio ambiente produzidos na gestão Bolsonaro, como, por exemplo, as medidas que facilitaram o garimpo na Amazônia. Os olhos do mundo, com razão, estão voltados para a política ambiental brasileira, e é preciso mudar drasticamente o rumo do que foi feito nos últimos quatro anos.

Mas ainda restam alguns dias desse governo tão danoso ao meio ambiente, e, como mostra a decisão que permite a extração de madeira em reservas indígenas, sua capacidade de destruição ainda não se esgotou. Menos mal que não há ato legal capaz de frear o tempo: a partir de 1.º de janeiro, o presidente que classificou como fake news as informações alarmantes sobre a devastação na Amazônia durante seu mandato já não estará mais lá para insultar a inteligência dos cidadãos brasileiros nem para continuar sua razia ambiental.

A democracia se defende

O Estado de S. Paulo.

Ao sugerir indiciamento de Trump, comissão mostra que tentativas de golpe devem ter custos para os golpistas

A comissão da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos encarregada de investigar o assalto trumpista ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, fez história na sessão de votação de seu relatório final, no dia 19 passado. No documento, aprovado por unanimidade, os membros da comissão pediram o indiciamento do expresidente Donald Trump por quatro crimes relacionados àquela intentona: obstrução de processo oficial do Congresso, conspiração para fraudar o governo, conspiração para fazer declaração falsa e incitação ou auxílio a uma insurreição. Não há precedentes de um pedido dessa gravidade contra um ex-presidente no país.

O relatório final da comissão foi encaminhado ao Departamento de Justiça, haja vista que os congressistas não têm poderes legais para indiciar Trump e mais cinco aliados do ex-presidente, também implicados no caso. São eles: Mark Meadows, último chefe de gabinete de Trump, e os advogados Rudolph Giuliani, John Eastman, Jeffrey Clark e Kenneth Chesebro. Todos podem ser condenados à prisão por sua participação, direta ou indireta, na tentativa de impedir o Congresso de certificar a vitória do democrata Joe Biden na eleição presidencial de 2020.

Cabe agora ao procurador-geral, Merrick B. Garland, aceitar ou não os pedidos de indiciamento. Para o bem da democracia – e não apenas nos Estados Unidos, mas em todos os países que têm o regime constitucional americano como modelo ou inspiração – é extremamente importante que Trump responda por seus atos e palavras sediciosos na Justiça. Para qualquer cidadão, principalmente para as mais altas autoridades da República, tentativas de subversão da ordem democrática devem sempre ser manobras com pesadíssimos custos judiciais. É assim que a democracia se defende.

Será difícil tanto para Garland como para o procurador especial encarregado da invasão do Capitólio, Jack Smith, não dar prosseguimento judicial aos pedidos de indiciamento formulados pela esfera política. Os membros da comissão foram hábeis o bastante para selecionar os alvos principais de sua investigação e reunir contra eles um sólido conjunto de provas da participação de cada um na tentativa de golpe de Estado.

O relatório final da comissão de investigação é resultado de um minucioso e exaustivo trabalho de quase dois anos, período no qual os congressistas analisaram dezenas de milhares de documentos, ouviram longas horas de gravação de telefonemas e discursos e inquiriram mais de mil testemunhas.

O desfecho da comissão da Câmara, se não sela o destino político de Trump, impõe ao ex-presidente um grande revés em sua tentativa de voltar à Casa Branca. “Ninguém que se comporte daquela maneira (como Trump se comportou ao final da eleição) poderá servir em qualquer posição de autoridade em nossa nação novamente. Ele (Trump) é inadequado para qualquer cargo público nos Estados Unidos”, resumiu a deputada republicana Liz Cheney, uma das mais aguerridas congressistas com assento na comissão.

Nos limites de sua competência, o Congresso americano honrou a Constituição e reagiu à altura daquele que talvez tenha sido o mais grave ataque ao regime democrático nos Estados Unidos.

Política fiscal será decisiva para trajetória da inflação

Valor Econômico

Incertezas sobre as contas públicas podem pressionar o câmbio, dificultando a tarefa do BC de combater a alta de preços

O Brasil terá em 2022 o segundo ano seguido com a inflação acima do teto da banda de tolerância da meta perseguida pelo Banco Central (BC) - e tudo indica que isso também vai ocorrer em 2023. Depois de encerrar 2021 em 10,1%, bem acima do teto de 5,25%, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) deve fechar este ano na casa de 5,6% a 5,7%. É um número também superior ao topo da meta de 2022, de 5% - o centro do alvo é de 3,5%.

O cenário para 2023 não indica uma desaceleração expressiva da taxa de inflação, mesmo com a perspectiva de desaceleração da atividade, tanto pelo efeito mais forte do ciclo de alta da Selic quanto pelo impacto da perda de fôlego da economia global. As projeções apontam para um IPCA um pouco acima de 5%, com alguns analistas esperando um número um pouco acima do indicador deste ano. Para 2023, a meta é de 3,25% e o teto de intervalo de tolerância é de 4,75%.

Embora distante dos dois dígitos, uma inflação superior a 5% não é confortável, especialmente num país que adotou metas cadentes ao longo dos anos. A partir de 2024, o alvo será de 3%, percentual que será mantido em 2025. Com isso, reduzir as incertezas fiscais é fundamental para aliviar as pressões sobre a inflação.

De setembro de 2021 a julho de 2022, o IPCA ficou acima de dois dígitos. Em parte desse período, a inflação refletia efeitos da guerra entre Rússia e Ucrânia, que pressionava os preços de commodities e afetava as cadeias globais de suprimentos. Outro impacto veio da reabertura da economia, resultado do relaxamento das medidas de restrição social, devido à melhora dos números da pandemia da covid-19. Isso levou à alta mais forte dos serviços. Por fim, o câmbio desvalorizado também contribuiu para a alta dos preços.

O quadro mudou, porém, com a redução do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre itens como combustíveis, energia elétrica, telecomunicações e transporte público. Nesse ambiente, o IPCA recuou em julho, agosto e setembro, um movimento também auxiliado pela queda do petróleo em parte da segunda metade deste ano. Nas contas do economista André Braz, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), o indicador deve fechar o ano em 5,6%, considerando a inflação acumulada até novembro e os números do Monitor da Inflação da FGV para dezembro.

Em artigo para o Boletim Macro do FGV Ibre, Braz destaca que, entre as principais influências que fizeram o IPCA perder força neste ano, estão quatro itens que tiveram o ICMS reduzido - gasolina, energia elétrica residencial, etanol e acesso à internet. “A soma de tais influências chega a 2,9 pontos percentuais”, diz ele. “Se não fosse pela renúncia fiscal, elas elevariam a inflação de 2022 para no mínimo 8,5%”. O IPCA mais baixo, desse modo, foi fruto em grande parte da medida orquestrada pelo governo de Jair Bolsonaro e pelo Congresso, de redução do ICMS, para tentar melhorar a popularidade do presidente, então bastante baixa.

Para 2023, Braz diz que a inflação deve seguir acima de 5%, mais alta que o teto do intervalo de tolerância da meta do ano que vem, de 4,75%. Na visão do economista, o maior desafio será a política fiscal. Incertezas sobre as contas públicas podem pressionar o câmbio, dificultando a tarefa do BC de combater a inflação. Nesse cenário, a queda da Selic, hoje em 13,75% ao ano, pode demorar mais para ocorrer, com efeitos mais fortes sobre a atividade econômica.

O Bradesco divulgou ontem a revisão mensal do seu cenário econômico. O banco manteve a estimativa para o IPCA deste ano em 5,7%, mas elevou a projeção para o IPCA de 2023 de 4,9% para 5,1%, num quadro em que vários indicadores “sugerem que a economia opera com baixa ociosidade”. Os economistas observam, contudo, que “esse número não contempla a reoneração dos impostos federais sobre combustíveis”. Hoje, esses tributos estão zerados. Se o novo governo voltar a cobrar os impostos federais sobre combustíveis, haverá impacto sobre a inflação. Para o Bradesco, a decisão sobre esse tema levará em conta os níveis da taxa de câmbio e do preço do petróleo, além de considerar eventuais benefícios do aumento da arrecadação para a redução do déficit primário. Isso pressionaria mais o IPCA, com possíveis impactos sobre a política monetária. No entanto, o que mais deve influenciar o BC em sua decisão sobre a Selic é a condução da política fiscal. Se permanecerem dúvidas sobre a trajetória da dívida pública, os juros poderão demorar mais para cair, afetando um crescimento que já será bem mais fraco que os 3% esperados para este ano. Para 2023, o FGV Ibre projeta 0,2% e o Bradesco, 1%.

 

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