domingo, 22 de janeiro de 2023

Dorrit Harazim - O desabrochar

O Globo

Ex-estagiária da Casa Branca conseguiu reerguer-se muito lentamente, sem trocar o nome que havia adquirido reconhecimento planetário

Mudando de assunto. Nesta semana, uma mulher madura de 49 anos reflete sobre o curso de sua vida, de sua história e da sociedade moderna que fez da humilhação alheia uma commodity. Por ocasião do 25º aniversário do escândalo que a arrancou brutalmente do anonimato, Monica Lewinsky faz uma avaliação serena de seu despertar para a ferocidade e a falta de alma humanas. Escreveu um texto sucinto de 25 tópicos para a Vanity Fair — única mídia que lhe estendera a mão quando ela mais precisava — e soa pacificada.

Recapitulando: em 1995, Monica era uma jovem californiana de 22 anos recém-saída da faculdade, que estagiava na Casa Branca. Apaixonou-se perdidamente pelo chefe sedutor, que, além de casado, também era o 42º presidente dos Estados Unidos — o democrata Bill Clinton. A tórrida relação clandestina, pontuada por nove encontros, durou 18 meses. Na manhã de 17 de janeiro de 1998, o affair explodiu no Drudge Report, um dos primeiros sites de política daqueles tempos. O escândalo reverberou com um mero clique no mundo inteiro, formando uma tempestade perfeita que juntava sexo e política.

— Fui a paciente número zero da perda de reputação, identidade e dignidade no palco global. Foi instantâneo — constatou mais tarde.

Chamada de “predadora” nas páginas do New York Times, de “periguete” no Wall Street Journal e de “devassa” nos tabloides, ela foi tratada como tóxica pelo Partido Democrata quando a investigação do caso quase defenestrou Clinton da Presidência. Nem mesmo feministas históricas da época, como Betty Friedan e Erica Jong, lhe deram acolhida — “bobinha”, “idiota”, escreveram, com desprezo.

Ela se viu traída pela melhor amiga, que passou a gravar suas confidências mais íntimas e desesperadas. Acuada, acossada e ferida, chegou a ser abordada por agentes do FBI num shopping center e levada para uma saleta sem janelas de um hotel das proximidades. Ali foi obrigada a ouvir as 20 horas de suas gravações íntimas, que acabaram anexadas ao infame relatório final da investigação oficial e foram tornadas públicas para o planeta inteiro.

— Passei a ser uma pessoa publicamente identificada com alguém que eu não reconhecia como sendo eu. Perdi meu eixo... Estava separada da minha verdade — escreveu.

À época, dilacerada entre a paixão e o medo, deve ter sido amargo ouvir Bill Clinton referir-se a ela como “aquela mulher” em depoimentos oficiais. Ela, em contrapartida, foi de uma retidão admirável ao longo desses 25 anos. Sempre deixou claro não ter sido vítima de abuso sexual por parte de Clinton. Sua relação com o presidente foi tão consentida quanto desejada por ela. O abuso que sofreu e quase a destruiu decorreu da relação de poder abissalmente desigual entre os dois e da misógina engrenagem política de Washington. Vale salientar também que, nos meses que se seguiram ao escândalo, ela recusou todas as ofertas para escrever um livro tell all que poderiam ter-lhe rendido o equivalente a R$ 38,5 milhões.

— Não me pareceu correto — diz apenas.

Conseguiu reerguer-se muito lentamente, sem trocar o nome que havia adquirido reconhecimento planetário. Decidiu que seria, para sempre, Monica Lewinsky. (Nos Estados Unidos a troca legal de identidade é feita em menos tempo do que o conserto de uma geladeira.) Jogou fora a boina preta de gamine usada nos tempos de Casa Branca, deixou para trás o famoso vestido azul manchado de sêmen presidencial e foi estudar psicologia social na London School of Economics. Formou-se. Aos 38 anos, sentiu-se apta a publicar um longo ensaio na primeira pessoa apropriando-se da história que lhe pertencia. Chegara a hora, diria Anaïs Nin, em que permanecer fechada como um botão se tornara mais doído do que correr o risco de desabrochar.

Monica Lewinsky desabrochou. Abaixo, algumas das 25 observações que publicou nesta semana:

— A culpabilização automática da mulher retrocedeu graças à pressão da sociedade e à adaptação da mídia. O que em 1998 era “O caso Lewinsky” ou “O escândalo Lewinsky” foi alterado para “O escândalo Clinton” ou “O impeachment de Clinton”.

— 25 anos atrás, na 105ª Legislatura dos Estados Unidos, havia apenas 65 mulheres e 67 congressistas não brancos. Hoje, o 118º Congresso é composto de 149 mulheres e 133 integrantes que se identificam como não brancos.

— Pensei que a tabloidização da nossa imprensa não poderia ser mais destrutiva do que foi. Estava enganada. Hoje está pior.

— Um simples ato de afago humano, ou palavra de alento, tem poder extraordinário.

— Por fim, não sei dizer isto sem soar terrivelmente piegas: é possível sobreviver ao inimaginável.

Faz bem mudar de assunto de vez em quando.

 

4 comentários:

Anônimo disse...

IMPERDÍVEL!! TEXTO MARAVILHOSO!!
Parabéns à colunista e ao blog que nos disponibilizou este texto ESPETACULAR!

Fernando Carvalho disse...

Monica Lewinsky poderia ter escrito o livro de um ponto de vista crítico quanto ao machismo e destinado os direitos autorais para causas nobres. Me lembrei de um milagre embora não me lembre do santo. Uma vez a igreja aceitou dinheiro sujo de uma doação por parte de uma organização criminosa. E o padre que decidiu aceitar a doação dizia "O diabo não vai gostar de saber o que faremos com esse dinheiro". Kkkk

ADEMAR AMANCIO disse...

Carácoles!

ADEMAR AMANCIO disse...

A moça ficou famosa e falada ao mesmo tempo.