segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Promessas de reindustrialização exigem cautela

O Globo

O histórico de políticas industriais no Brasil é pródigo em prejuízos astronômicos e resultados pífios

A intenção de reindustrializar o país, lançada ainda na época da campanha eleitoral por Luiz Inácio Lula da Silva, ganhou status de mantra desde a posse do novo governo. “Reindustrialização” virou palavra corriqueira em declarações e discursos de diferentes autoridades. Se a meta do novo governo for fazer com que a participação da indústria na economia volte ao seu pico histórico, é melhor esquecer. A fatia hoje em cerca de 23% do PIB, de acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), teria de crescer a 48%. Isso não acontecerá. Ainda que o objetivo seja mais modesto, há bons motivos para ser reticente. A História brasileira está cheia de políticas industriais que tiveram resultados pífios e prejuízos astronômicos.

Uma das experiências mais desastrosas ocorreu com a confirmação de grandes volumes de petróleo nas camadas profundas de pré-sal na Bacia de Santos, entre São Paulo e Rio de Janeiro, levando os governos Lula 2 e Dilma 1 a lançar uma política de substituição de importações de navios e sondas. A lógica era a mesma dos governos militares. Por que importar se podemos investir na produção doméstica?

Não deu certo na ditadura, não daria nos governos do PT. Não bastasse a corrupção, bilhões foram incinerados em subsídios a empresas que não entregaram à Petrobras as encomendas no prazo e nas especificações pedidas. Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), Samuel Pessôa lembra que o Brasil tentou, sem sucesso, fazer uma indústria naval por longuíssimas sete décadas.

Um dos erros do discurso nacional-desenvolvimentista é supor que o país pode tudo, basta que o Estado invista. Não é assim. O Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), estatal criada em 2008 com a missão de produzir semicondutores no Brasil, consumiu R$ 800 milhões sem jamais ter atingido seus objetivos.

A melhor forma de gerar desenvolvimento é apostar nos setores em que há vantagens comparativas, mesmo que seja necessário importar todo o resto. É óbvio que o Estado pode, em certas circunstâncias, sanar imperfeições do mercado, mas é preciso ser muito seletivo e apostar apenas naqueles poucos segmentos em que a parceria com o setor privado tem mais chances de dar certo. É imperativo ter metas e mecanismos para a retirada do investimento público. O Brasil é famoso pelos subsídios temporários que duram para sempre. Uma vez concedidos, viram bandeiras perenes de bancadas sujeitas a todo tipo de lobby no Congresso.

Parte dos economistas lembra que há exemplos positivos de políticas de fomento. No início da pandemia, o governo americano apoiou o desenvolvimento de vacinas. O problema é achar que um projeto bem-sucedido é senha automática para novas apostas. O presidente Joe Biden parece estar nessa toada. Em 2022, aprovou no Congresso verba para subsidiar a indústria local de carros elétricos, entre outras iniciativas. No encontro que terá com Lula em fevereiro, Biden poderia perguntar sobre o pré-sal e aprender o que não deve ser feito em termos de política industrial.

É vital reduzir o número de armas em circulação no Brasil

O Globo

O recadastramento sob a responsabilidade da PF é o primeiro passo para reverter armamentismo

O Brasil começa um longo e urgente processo para desfazer a política armamentista dos últimos quatro anos. Entre as necessárias medidas a serem executadas pela Polícia Federal (PF) está o recadastramento das armas adquiridas a partir de maio de 2019, no início do governo Bolsonaro. O prazo é de dois meses, e a sociedade deve acompanhar de perto o desenrolar para cobrar o cumprimento de prazos e de metas.

Já foram suspensos os registros de clubes de tiros, que praticamente dobraram a partir de janeiro de 2019, de 1.055 para 2.061. Também foram interrompidas as permissões para novos CACs, sigla de Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador, o caminho pelo qual o governo anterior inundou o país de armas.

Bolsonaro flexibilizou até mesmo o porte, restrito a policiais e a poucas categorias relacionadas pelo Estatuto do Desarmamento. São emblemáticas as cenas da deputada Carla Zambelli (PL-SP), de pistola em punho em uma rua dos Jardins, região nobre de São Paulo, em 29 de outubro, véspera do segundo turno das eleições, atrás de alguém que alegadamente a teria ofendido. A deputada entregou a pistola à PF, em dezembro, por determinação do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal.

Em busca realizada neste ano em sua residência em São Paulo e no apartamento funcional que ocupa em Brasília, foram encontradas mais três armas registradas em seu nome. Para Gilmar Mendes, a posse e o manejo de armas pela deputada oferecem grave risco à ordem pública, como já demonstrado.

Quantos outros arsenais como o de Carla Zambelli, ou até maiores, existem? A pergunta poderá ser respondida pelo recadastramento. Apenas entre os CACs, cujo registro e acompanhamento cabe ao Exército, pelo Sistema de Gerenciamento de Armas (Sigma), havia, em meados do ano passado, cerca de 1 milhão de armas, o triplo do que existia no início do governo Bolsonaro. Outro milhão estava no Sistema Nacional de Armas da Polícia Federal (Sinarm), no qual os registros aumentaram em quase 190%. A existência de dois bancos de dados, sem intercomunicação e controle unificado, é um problema, na visão do Instituto Igarapé, organização voltada para o tema da segurança.

Como o recadastramento será feito pela PF e as informações ficarão sob sua alçada, a instituição deveria concentrar os registros de agora em diante. O Exército poderia dirigir sua atenção para outra frente: manter a responsabilidade, que não é pequena, de registrar e acompanhar o uso de toda sorte de explosivos.

O recadastramento poderá identificar o contrabando para a criminalidade. A preocupação com a disseminação até de fuzis, permitida pela legislação criada pelo governo anterior, persistirá. De alguma forma, o armamento pesado ou em excesso terá de ser recolhido.

Ainda a inflação

Folha de S. Paulo

Apesar de novo estouro em 2022, metas e autonomia do BC são sucessos a preservar

O Banco Central precisou divulgar carta aberta para expor os motivos de o IPCA de 2022, com variação de 5,79%, ter ficado acima da meta oficial de 3,5% com margem de desvio de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo.

Foi a sétima vez em que a autoridade monetária teve de cumprir esse ritual em 24 anos do regime de metas de inflação —o que, à primeira vista, poderia colocar em dúvida a eficácia de tal estratégia de política monetária. O saldo do mecanismo adotado desde 1999, porém, é amplamente favorável.

Conforme as explicações do BC, a variação dos preços estourou os limites no ano passado devido à herança do ano anterior, ao encarecimento global das commodities, agravado pela guerra na Ucrânia, e ao impacto da retomada dos serviços e do emprego após o pior da pandemia de Covid-19.

Ao listar as providências em curso para conter as pressões inflacionárias, o órgão não deixa de mencionar as incertezas relativas ao desequilíbrio orçamentário do governo —para o qual contribuíram, acrescente-se, Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Por uma questão de bom senso, o BC não buscou cumprir a ferro e fogo as metas para o IPCA de 2021, quando o índice marcou 10,06%, e 2022. Isso exigiria taxas de juros exorbitantes e produziria recessão brutal, na tentativa de lidar com fatores além do alcance doméstico.

Essa flexibilidade, já vista em outros momentos, não se confunde com leniência. Está claro para a sociedade o empenho em trazer a inflação de volta aos níveis desejados, ainda que em prazos maiores.

Ao longo de mais de duas décadas do regime de metas, a disciplina monetária só foi desrespeitada no primeiro governo da petista Dilma Rousseff (2011-2014) —e os resultados foram desastrosos.

Ainda há muito a fazer para que a moeda brasileira tenha estabilidade comparável à observada em países desenvolvidos, a começar pelas contas do governo. Entretanto é indiscutível que os aperfeiçoamentos institucionais promovidos desde o Plano Real fizeram enorme diferença.

Desde 1999, a inflação brasileira só chegou aos dois dígitos em três ocasiões (2002, 2015 e 2021), enquanto na vizinha Argentina, por exemplo, o descontrole está instalado há mais de uma década e a taxa beirou os 100% no ano passado.

O complemento necessário ao regime de metas é a autonomia do BC, hoje formalizada em lei no Brasil. Para uma efetiva política de combate à pobreza, o governo petista deverá superar equívocos do passado e perseverar no arranjo.

Tapioca e sorvete

Folha de S. Paulo

Cumpre apurar cartão corporativo de Bolsonaro, que evoca abuso passado sob Lula

A compra de uma reles tapioca se tornou o episódio mais conhecido de um escândalo envolvendo cartões corporativos —entregues a autoridades para despesas de governo— na segunda administração de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Em 2007, o então ministro do Esporte gastou R$ 8,30 (preço da época) no quitute e precisou explicar por que utilizou o cartão. Foi um engano, defendeu-se. Em depoimento a uma CPI no ano seguinte, argumentou que, antes mesmo de o assunto chegar à mídia, tinha devolvido o valor aos cofres públicos.

Não se imagina que, por conta própria, Jair Bolsonaro (PL) adote atitude parecida. Mas, agora que foram divulgados os gastos do ex-presidente com o cartão corporativo, espera-se que os órgãos de controle esmiúcem as planilhas e investiguem a pertinência das cifras ali registradas.

Motivos não faltam. Há, por exemplo, uma nota de R$ 109 mil num restaurante de Roraima especializado em marmitas. Também há R$ 13,7 milhões em hotéis, dos quais R$ 1,4 milhão num único local de Guarujá (SP), além de R$ 581 mil em padarias, onde algumas compras passaram de R$ 10 mil.

Em montante menor, mas nem por isso insuspeito, Bolsonaro despendeu R$ 8.600 em sorvetes —em lojas da mesma Brasília onde Orlando Silva se regalou com a tapioca.

A culpa não é do cartão. Criado em 2001 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o instrumento deu agilidade e facilitou a prestação de contas, antes feita por meio de notas fiscais.

Seu uso deve respeitar os princípios da administração pública, entre os quais legalidade, moralidade e eficiência, e pode ocorrer diante de cifras pequenas e de despesas eventuais, inclusive em viagens ou serviços especiais, ou quando o gasto precisar ser feito sob sigilo.

É difícil ver como essas condições se encaixam em dispêndios que somam ao menos R$ 4,7 milhões em dias nos quais Bolsonaro não tinha agenda de trabalho, assistia a jogos de futebol ou participava de motociatas.

Graças à agência Fiquem Sabendo, que usou a Lei de Acesso à Informação, os gastos do cartão corporativo podem ser examinados por todos. Sabe-se que o ex-presidente fez pagamentos de R$ 27,6 milhões em quatro anos, o que, se considerados valores corrigidos pela inflação, está abaixo dos padrões das administrações petistas.

Montantes, porém, importam menos que finalidades. Dar máxima transparência aos atos de governo, como se vê, é o meio mais evidente de prevenir e, se necessário, investigar desmandos.

2023 e suas múltiplas crises

O Estado de S. Paulo.

Choque da pandemia e da guerra cria risco só superado com cooperação global.

A década de 20 está sendo particularmente disruptiva na história humana. A crise pandêmica, acoplada com a guerra na Europa, resulta em uma confluência de vulnerabilidades socioeconômicas e tensões geopolíticas. Nesse cenário, em preparação para a cúpula anual de Davos, o Fórum Econômico Mundial mobilizou mais de 1.200 analistas de risco e especialistas da academia, negócios, governos e sociedade civil para avaliar, em seu Relatório de Riscos Globais, as atuais crises e os desafios a curto e médio prazos.

Em plena turbulência, o mundo parece estar no modo “sobrevivência”, com o foco canalizado no custo de vida, na polarização política e social, no fornecimento de energia e comida, no crescimento tíbio e em confrontos geopolíticos. Mas os choques relativamente inesperados da pandemia e da guerra atingiram uma geração já envolta em transformações aceleradas – como a da revolução digital –, cujos maiores desafios de longo prazo, como as mudanças climáticas, são os que ela está menos preparada para enfrentar.

Por isso, o Relatório fala em “um ano de policrises”, em que “os riscos estão mais interdependentes e reciprocamente danosos do que nunca”. O mundo enfrenta em 2023 uma série de riscos a um tempo “totalmente novos” e “espantosamente familiares”. Mazelas que pareciam controladas nesta geração – como inflação, crise do custo de vida, guerras comerciais, agitação social generalizada e até uma guerra nuclear – voltaram à cena. Os riscos são amplificados por desdobramentos relativamente novos, como níveis insustentáveis de dívida, uma nova era de baixo crescimento, baixo investimento e desglobalização, queda no desenvolvimento humano após décadas de progresso e a pressão das mudanças climáticas.

“As sequelas sanitárias e econômicas da pandemia rapidamente espiralaram em crises compostas”, diagnosticou a diretora da pesquisa, Saadia Zahidi. “As emissões de carbono se acentuaram, à medida que a economia global pós-pandêmica voltou a crescer. Comida e energia tornaram-se arsenais com a guerra na Ucrânia, impulsionando a inflação a níveis sem precedentes em décadas, globalizando a crise do custo de vida e abastecendo a ansiedade social. A mudança resultante na política monetária marca o fim de uma era econômica definida por acesso fácil a dívidas baratas e terá vastas ramificações para governos, empresas e indivíduos, ampliando a desigualdade dentro dos países e entre eles.”

Os entrevistados projetam alta volatilidade num futuro próximo, mas se mostram mais otimistas a longo prazo.

Retomar os rumos do desenvolvimento sustentável, contudo, exigirá integrar táticas defensivas e fragmentárias a estratégias que fortaleçam a resiliência para riscos mais permanentes e estruturais. A inter-relação entre impactos circunstanciais e vulnerabilidades crônicas, entre danos imediatos e riscos futuros, cria um cenário particularmente temerário. Como em um organismo vivo, um remédio extraordinário para um órgão agudamente debilitado pode impactar negativamente outros; o foco exclusivo nas urgências presentes pode reduzir a resiliência para adversidades futuras.

O Fórum divisa quatro princípios para orientar a redução de riscos: fortalecer a identificação e previsão de riscos; recalibrar a avaliação atual de riscos “futuros”; investir em preparação multifatorial; e reconstruir a cooperação na preparação para riscos. Este último ponto é decisivo para alicerçar os demais. Não à toa, o tema da cúpula deste ano é “Cooperação em um Mundo Fragmentado”.

Em uma era de choques concorrentes, cresce a importância da cooperação em níveis setoriais, bilaterais e regionais – por exemplo, no compartilhamento de dados ou financiamentos coordenados. Ainda mais urgente é resistir à tendência das nações de se fecharem. Exceto em casos extraordinários, limites a exportações ou reservas de mercado tendem a estimular desintegração e desconfiança, precipitando uma cascata de crises. Em tempos excepcionais é preciso relembrar o óbvio: crises globais só podem ser superadas com solidariedade global.

Polícia violenta e mal treinada é inconstitucional

O Estado de S. Paulo.

Alegações do governo do Estado do Rio de Janeiro contra o uso de ‘bodycams’ por suas tropas de elite são equivocadas. Polícia que age sem controle coloca em risco a vida da população

Quando uma operação policial terminou com pelo menos 23 mortos na Vila Cruzeiro, na cidade do Rio de Janeiro, em maio do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi acionado por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). No ano anterior, outra incursão policial no Jacarezinho, também no Rio, havia resultado em 28 mortes, na ação mais letal de que se tem notícia naquele Estado. Diante de casos tão assombrosos, que violam direitos e garantias previstos na Constituição, era preciso fazer algo. O relator da ação, ministro Edson Fachin, determinou que o governo do Estado do Rio de Janeiro elaborasse um novo plano de redução da letalidade das polícias fluminenses.

Em resposta ao pedido de Fachin, o governo do Rio de Janeiro apresentou, em dezembro de 2022, um plano genérico e incompleto, sem prazos e indicadores específicos. Diante disso, o ministro do STF proferiu nova decisão, tratando de um ponto específico que tem se mostrado muito relevante na diminuição da letalidade policial: a instalação de câmeras nas fardas e viaturas policiais. Em concreto, Fachin inquiriu a administração estadual do Rio de Janeiro a respeito do uso do equipamento pelo Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (Bope) e pela Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais da Polícia Civil (Core). Pediu um cronograma para a adoção das bodycams pelos policiais das unidades especiais.

O governador Cláudio Castro (PL), por meio da Procuradoria-geral do Estado do Rio de Janeiro, recorreu da decisão do STF. Mencionando pareceres da Polícia Militar e da Polícia Civil, alegou que o uso das câmeras corporais poderia pôr “em risco a vida de policiais e de terceiros, bem como o necessário sigilo das estratégias, táticas e, até mesmo, protocolos de atuação”, como noticiou o jornal O Globo.

São muitas as experiências, nacionais e internacionais, que contradizem as alegações das autoridades fluminenses. “Os batalhões de Choque e os Baeps (unidades da PM paulista ), que usam câmeras, assemelham-se muito ao Bope e à Core, e temos dados positivos. Tudo depende do grau de treinamento. Tropas bem preparadas não temem a implementação”, afirmou José Vicente da Silva, coronel reformado da PM paulista e ex-secretário Nacional de Segurança Pública.

No Estado de São Paulo, o uso de câmeras não só fez cair o número de civis e policiais mortos em serviço, mas, como informou o Estadão, reforçou a repressão à violência doméstica, ao porte de drogas e à posse ilegal de armas. Sem falar no uso de imagens para orientar o treinamento da tropa. Com tantas evidências positivas, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) reviu sua posição dos tempos de campanha eleitoral e hoje defende a iniciativa.

É preciso investir na formação dos policiais, especialmente em locais, como o Rio de Janeiro, com forte histórico de violência policial e de atuação descuidada dos agentes. Às vezes, carregar um pedaço de madeira, um guarda-chuva ou uma furadeira pode representar a sentença de morte perante um policial mal treinado.

Infelizmente, as alegações contra o uso de câmeras nas unidades especiais de segurança parecem evocar o raciocínio torto e inaceitável de que tropas de elite devem ter a liberdade de fazer coisas que as câmeras não poderiam registrar. Trata-se de grave equívoco. O papel da polícia é combater o crime dentro da lei. Não há dúvida de que, no Estado Democrático de Direito, há sigilos legítimos; por exemplo, na diplomacia. No entanto, não faz nenhum sentido encobrir a atuação de policiais diante da população civil. Uma polícia autorizada a agir nas sombras facilmente se converte em uma polícia fora da lei.

É sintomática a resposta do governo do Estado do Rio de Janeiro ao STF, resistindo a adotar um equipamento que tem se mostrado tão eficaz na proteção da vida e no aperfeiçoamento das ações policiais. A violência policial e a insegurança pública não são fenômenos casuais. São fruto de reiteradas escolhas, que violam a Constituição.

O contribuinte está mais indefeso

O Estado de S. Paulo.

MP que dá à Fazenda superpoderes contra o contribuinte no Carf é problemática em sua forma, motivação e conteúdo

O governo Lula reinstituiu, pela Medida Provisória (MP) 1.160/2023, o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), a última instância administrativa para contribuintes questionarem a validade de autuações fiscais. Vinculado ao Ministério da Fazenda, o Carf é formado por quatro conselheiros: dois indicados pela Receita e dois por setores econômicos. Originariamente, em caso de empate, prevalecia o “voto de qualidade”, ou seja, valia por dois o voto do presidente da Turma. Como ele é necessariamente um representante da Receita, na prática o voto de Minerva pesava sempre a favor do Fisco. Em 2020, esse modelo foi alterado: em caso de empate, a decisão passou a ser favorável aos contribuintes, conforme o princípio in dubio pro reo.

A medida é problemática em sua forma, motivação e conteúdo.

Segundo a Constituição, a edição de MPS exige relevância e urgência, sendo vedada em matérias de direito penal e processual civil. Muitos juristas afirmam que sanções administrativas, como as penas tributárias decididas pelo Carf, têm uma dimensão penal e que as leis disciplinadoras das funções e capacidades dos julgadores integram o sistema processual.

Ao justificar a MP 1.160/2023, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, alegou que o desempate prócontribuinte gerou perdas para os cofres públicos, que o novo Carf tem ignorado jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em favor da União e que seu modelo é fonte de corrupção. Ora, os casos de malfeitos identificados pela Operação Zelotes envolviam justamente conselheiros da Fazenda durante a vigência do voto de qualidade. Além disso, não há evidências de que as decisões do Carf favoráveis ao contribuinte sejam antijurídicas. De resto, o apetite arrecadatório não pode se sobrepor aos princípios de justiça que devem reger a atuação do poder público.

A decisão do Congresso pelo fim dos superpoderes do conselheiro da Receita, com o desempate a favor do contribuinte, foi questionada na Justiça e o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria pela constitucionalidade. O julgamento está suspenso.

A MP 1.160/2023 traz ainda outra grave disfunção, permitindo que, em caso de o Carf dar razão ao contribuinte, a Fazenda recorra à Justiça. Tal possibilidade ignora que o Carf é um órgão da Fazenda. Não faz sentido que a Fazenda acione o Poder Judiciário contra uma decisão que ela mesma proferiu. Trata-se de evidente violação do princípio da unidade da administração pública.

A complexidade do sistema tributário brasileiro é uma das principais causas dos altos índices de litigância judicial. Não há dúvida de que o modelo do Carf pode ser avaliado e discutido no âmbito de uma reforma tributária. No entanto, não é gerando desequilíbrio a favor do Fisco, por meio de mudança abrupta imposta por medida provisória, que se aprimora o seu funcionamento. A representação do contribuinte no Carf não pode ser de fachada, como mero meio de dar ares de legitimidade ao apetite arrecadatório do Estado.

Torres pode ter muito a dizer sobre golpe e depredações

Valor Econômico

Tão importante quanto intimidar golpistas é unificar o poder repressivo do Estado

Uma semana depois da depredação das sedes dos três Poderes, o mais ofensivo ataque à democracia desde 1985, o roteiro do curto-circuito na segurança no Distrito Federal se tornou mais claro, assim como seus responsáveis e os omissos no inexistente esquema de defesa. Ainda faltam respostas a todas as perguntas. O ex-ministro da Justiça, o bolsonarista Anderson Torres, secretário de Segurança do DF, preso no sábado ao desembarcar, vindo dos EUA, pode ter várias delas.

Na operação de busca na residência de Torres, a Polícia Federal apreendeu pelo menos um documento comprometedor, a minuta de um decreto presidencial que estabelece Estado de Defesa inédito, para intervir no Tribunal Superior Eleitoral com o objetivo de garantir a “lisura” do pleito, a ser executado por uma Comissão de Regularidade Eleitoral, chefiada pelo ministro da Defesa e mais seis militares, de um total de 17 membros. A minuta é prova de que um golpe foi cogitado para corrigir o resultado das eleições e declarar vitorioso o candidato Jair Bolsonaro. A pregação de Bolsonaro, desde que assumiu em 2018, foi de desconfiança nas urnas, fraudadas por princípio. Bolsonaro fez, desde que tomou posse, um ataque à democracia a cada 23 dias (O Globo, ontem).

As primeiras reações de Anderson Torres levantaram ainda mais suspeitas. Ele disse que o documento fora divulgado fora do “contexto” - qual é o contexto é tudo o que a investigação sobre sua conduta precisa conhecer. Houve uma trama grave para fraudar eleições e dar a Bolsonaro a vitória que não conseguiu nas urnas. De quem veio a ideia? Torres disse que recebeu o papel de alguém, mas, como ministro da Justiça, aceitou uma proposta de golpe contra o sistema democrático, não agiu e deixou os autores saírem assobiando por aí.

Afirmou que o material estava em uma pilha de documentos que seriam destruídos, eliminando prova de atos em si criminosos. O estranho é que papel-bomba como esse não tivesse sido incinerado antes. Ele pode servir de defesa prévia de Torres contra acusações futuras vindas do campo amigo.

Outra parte do “contexto” é que na sexta-feira, 6 de janeiro, houve aviso do setor de inteligência da Secretaria de Segurança Pública do DF sobre a possibilidade de atos violentos ocorrerem no domingo, dada a intenção de “tomada do poder” dos manifestantes. O aviso foi enviado ao gabinete de Torres, que embarcou para os EUA no dia seguinte. Fernando Oliveira, seu substituto na SSP, disse que tudo estava bem e que negociara com os manifestantes para que o ato fosse pacífico. Essa é um dos indícios de que o vandalismo que se seguiu não encontrasse qualquer reação relevante do aparato de segurança.

O mesmo documento, que não autorizava protestos na Praça dos Três Poderes, já aceitava a premissa mais que duvidosa de que seu propósito era assegurar “o direito constitucional de livre manifestação pública”, que os bolsonaristas radicais pisotearam a seguir, com júbilo. O governador afastado do DF, Ibaneis Rocha, em sua defesa, disse que havia um plano padrão e que houve “sabotagem”. Cenas de camaradagem entre PMs e depredadores mostram que houve mais do isso.

Outra parte do contexto é indicada pelo governador. O Exército não permitiu, nem mesmo após as depredações, que a PM entrasse nos acampamentos para prender manifestantes. Antes disso, se recusara a impedir a ocupação de território privativo dos militares, jamais permitida antes. Fez mais: deixou que cerca de 150 ônibus entrassem o Setor Militar Urbano, próximo do QG, para que iniciassem a deprimente destruição.

A reunião de bolsonaristas em frente ao QG foi objeto de nota inusual - as manifestações eram “democráticas”, mesmo que visassem o fim da democracia. Nem uma linha foi emitida pelas Forças Armadas após a barbárie radical correr solta, sequer a de praxe, de que os militares repudiam atos dessa natureza e se colocam sob o inteiro dispor das autoridades constituídas.

Há simpatia de parte do aparato policial e militar, inclusive das cúpulas, com o bolsonarismo radical. A saída institucional para isso tem de ser o progressivo controle civil sobre o aparato do GSI, Abin e setores da inteligência. A reação contra radicais, financiadores e mentores, se executada dentro da lei fortalece o governo para esses embates no interior da máquina estatal. Tão importante quanto intimidar golpistas é unificar o poder repressivo do Estado, para impedir que novas tentativas aconteçam.

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