sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Ruth de Aquino- Montagem de Lula como alvo é fotojornalismo?

O Globo

Admiro a Folha de S Paulo por seu jornalismo combativo. Assino, leio, tenho afeto por seus editores, colunistas, repórteres. Acho ousada e criativa a seleção de imagens nacionais e internacionais. Mas me incomodou a fotomontagem na capa do jornal de hoje. Lula sorrindo, cabeça baixa, ajeitando a gravata, e um vidro estilhaçado na frente, como se um tiro ou um projétil se dirigisse a seu coração.

A legenda explica que a foto foi feita com “múltipla exposição”. Ou seja, uma foto de dois ângulos diferentes, em dois tempos quase simultâneos. Minha primeira reação: foi um equívoco, num Brasil machucado pela violência, assolado por tantas fake news, em texto e imagem. Pode-se dizer, em defesa da Folha, que o jornal quis criar uma narrativa: a de que os golpistas de Bolsonaro miram mesmo em Lula. A foto construída alertaria para o real perigo que a vida de Lula corre. E o sorriso provaria que o presidente, símbolo do Poder maior e da democracia, resistiu. Mas...

A imprensa profissional precisa, mais que nunca, se apegar à verdade absoluta. Evitar ações que acirrem o risco de atentados e ações tresloucadas. Essa foto, junto a uma manchete sobre o confronto entre Lula e militares, não ajuda o esforço nacional para restaurar a normalidade democrática. Os atos terroristas infames expostos na TV Globo tinham como alvo principal o Supremo, o Senado e a Câmara. Os golpistas fanáticos pediam uma nova ditadura militar.

Conversei com a fotógrafa, Gabriela Biló, e ela me explicou. “Não foi montagem. Fiz a foto da trinca da janela, travei a câmera, virei-me em direção a Lula, esperei um gestual dele para a composição ideal, estava sorrindo, cliquei. Eu não vi um presidente sendo morto ali. A criação de arte está aberta a interpretações, a leitura não é unânime. E o fotojornalismo é Arte. Eu vi ali uma trinca na janela que tentou ser certeira mas não foi. A democracia, representada por Lula, foi trincada em seu coração. Mas resistiu. Essa foto é resistência”.

Biló é uma fotógrafa tão talentosa em Brasília que terá um espaço exclusivo na Bienal da UNE (União Nacional dos Estudantes), em fevereiro, na Fundição Progresso. Jovem, em ascensão, apaixonada por seu ofício. Entre suas fotos mais conhecidas, há Bolsonaro com a cabeça numa bandeja. E Bolsonaro fazendo arminha rumo à cabeça baixa de Sérgio Moro. Fotojornalismo não é só registro, diz ela. “É cheio de simbologias, é mais sobre a notícia que está por trás, e nunca é isento. Tem o posicionamento da câmera, o corte, a edição”.

Entendo a intenção de Biló, mas, a meu ver, um trabalho como esse é mais uma charge do que uma foto jornalística. O choque – meu e de tantos – se explica pelo trauma que todos estamos vivendo depois do pavoroso ataque terrorista de 8 de janeiro. É como se essa imagem incitasse a violência. Muita gente – eu inclusive – sentiu repulsa, pelo medo da morte. Mas também há quem ache a imagem genial e inovadora.

Consultei o fotógrafo Rogério Reis, que foi editor no JB e é admirador do trabalho de Biló. “Essa foto vai contra os princípios éticos do fotojornalismo. Não se publica, ainda mais nesse momento de fragilidade de ameaça fascista. Subverte o código da fotografia documental. Claro que um profissional pode interpretar a realidade seguindo seu juízo de valores. Mas o fotojornalismo tem que começar e se encerrar no capítulo da documentação, ainda mais num veículo de formação de opinião. A ‘foto construída’ nos remete a Man Ray nos anos 30, não é jornalismo. Existe ainda a foto técnica, com fusões, sobreposições. Mas no jornalismo não dá para colar uma foto na outra”.

Fotojornalismo é, na essência, um recorte da realidade. Mas o que é a realidade, quando tantos brasileiros ainda chamam a ditadura de revolução? Vivemos tempos movediços e a palavra também é sua, leitor.

 

4 comentários:

Anônimo disse...

A fotógrafa pode ser artista e excelente, mas ela e a Folha falharam ao decidirem publicar a imagem criada. Às vezes se erra, às vezes se acerta. Nesta, a fotógrafa e a Folha erraram! Criaram MAIS CONFUSÃO desnecessária num momento crítico da nossa Democracia!

Anônimo disse...

Tema e texto assertivos.
Cumprimento.

A foto e sua publicação realmente "acertivas" . Erradas.
Lamentável.

ADEMAR AMANCIO disse...

Não vi a foto,vou procurar.

ADEMAR AMANCIO disse...

Encontrei...